O vento frio cortava as ruas estreitas de Palermo naquela noite. O céu estava pesado, as nuvens escondendo a lua, e o som distante das ondas contra o cais era o único lembrete de que a cidade ainda respirava.
O carro preto, com vidros escuros e cheiro de couro caro, seguia pelas vielas com passos lentos e calculados, como um predador rondando a presa.
Eu estava no banco de trás, as mãos fechadas em punhos no colo, tentando controlar a respiração. Ao meu lado, meu pai — o homem que deveria me proteger — mantinha o olhar fixo na frente, sem ousar encarar-me.
— Ainda dá tempo de se arrepender — murmurei, minha voz carregada de um desafio que eu não sentia de verdade.
Ele soltou um riso amargo, sem humor.
— Não é questão de arrependimento, Chloe. É questão de sobrevivência.
Olhei para ele, incrédula.
— Sobrevivência sua, quer dizer. Porque a minha… você acabou de vender.
O silêncio dele foi resposta suficiente.
O carro parou diante de um portão de ferro alto, vigiado por dois homens armados. Um deles fez um gesto, e os portões se abriram lentamente, revelando uma mansão iluminada por tochas laterais, como se estivéssemos entrando em outro século.
O motorista saiu, abriu a porta e fez sinal para que eu descesse. O salto fino do meu sapato ecoou contra o piso de pedras, e a sensação de estar sendo observada me arrepiou a pele.
Dentro da mansão, o calor das lareiras e o aroma de madeira polida tentavam enganar os sentidos. Homens vestidos de preto se moviam como sombras pelos corredores, alguns carregando armas à mostra. Eu conhecia as histórias. Sabia quem era Lorenzo Moretti. O Dom. O homem que regia o submundo de Palermo com mãos de ferro e sangue.
Fomos conduzidos até uma sala ampla, onde um homem estava sentado atrás de uma mesa de carvalho maciço. A primeira impressão foi de poder absoluto.
Ele usava um terno preto impecável, a gravata frouxa como se não precisasse de formalidades para intimidar. O cabelo escuro caía levemente sobre a testa, e a barba bem aparada desenhava sua mandíbula forte. Mas foram os olhos que me prenderam — frios, de um castanho profundo, como poços onde se afogava sem perceber.
Lorenzo não se levantou. Apenas cruzou os dedos sobre a mesa e nos observou em silêncio, como quem já sabe que está no controle.
Meu pai se adiantou.
— Lorenzo… eu trouxe o que prometi.
Aqueles olhos desviaram para mim, percorrendo-me lentamente, como se me despisse ali mesmo. Meu corpo reagiu de um jeito que eu não queria admitir — um arrepio misturado a raiva.
— Então esta é a sua filha — a voz dele era grave, arrastada, com um sotaque italiano marcado que tornava cada palavra mais perigosa.
Meu pai assentiu, evitando contato visual.
— Como combinamos, ela… ela é sua.
Meus lábios se entreabriram, pronta para protestar, mas Lorenzo ergueu a mão, me silenciando sem esforço.
— Não fale, piccola. Não quero ouvir desculpas ou mentiras. A partir desta noite… você me pertence.
A frieza daquelas palavras me atingiu como uma lâmina.
— Pertencer? — minha voz tremeu, mas o sarcasmo escapou — Desculpe, mas não sou um cavalo de corrida para ser comprado.
Um sorriso lento surgiu nos lábios dele, como se minha ousadia fosse apenas mais um tempero para o jogo.
— Não, você é mais rara que isso. E é por isso que vou mantê-la comigo… e ensinar a você o significado de lealdade.
Ele se levantou, e por um instante percebi o quanto era alto, o porte dominante que fazia qualquer um recuar. Aproximou-se, parando tão perto que pude sentir o calor de seu corpo e o aroma amadeirado do perfume caro.
— Você vai me odiar… e vai me desejar. E quando finalmente entender o que significa ser minha… não vai querer outra vida.
Meu coração batia como um tambor. Eu queria gritar, queria cuspir na cara dele… mas algo naqueles olhos me mantinha imóvel.
Lorenzo se virou para meu pai.
— O acordo está selado. A dívida… está paga. Agora saia.
Meu pai hesitou, me olhando por um segundo — talvez um resquício de arrependimento? Não. Apenas medo. Ele virou as costas e foi embora sem dizer nada.
As portas se fecharam atrás dele, e de repente, percebi: eu estava sozinha com o homem mais perigoso da Itália.
Lorenzo me encarou por alguns segundos, depois fez um gesto para um de seus homens.
— Leve-a para o quarto de hóspedes.
— Hóspedes? — soltei uma risada amarga.
Ele arqueou a sobrancelha.
— É temporário. Amanhã, você dorme na minha cama.
Enquanto era conduzida pelos corredores, senti a mistura de ódio e curiosidade me corroendo por dentro. Eu não sabia como, nem quando, mas prometi para mim mesma: meu pai pagaria caro por isso. E Lorenzo Moretti… eu ainda não sabia se seria meu carrasco ou meu aliado.
Mas no fundo, algo me dizia que ele seria os dois.
O sol de Palermo entrava pelas cortinas pesadas, projetando um brilho dourado no quarto luxuoso onde eu havia passado a noite. Luxo que não me iludia — aquelas paredes douradas eram só uma jaula mais cara.
O vestido justo da noite anterior estava sobre a poltrona, e no lugar dele, um robe de seda preta havia sido deixado sobre a cama. Suspirei, enrolando o tecido no corpo antes de sair para explorar o lugar.
Desci as escadas em silêncio, mas não precisei procurar muito. Lorenzo estava na sala de jantar, sentado à cabeceira de uma longa mesa, com um café expresso na mão e o jornal aberto. Ele levantou os olhos assim que me aproximei.
— Bom dia, piccola. Dormiu bem? — o tom carregava uma ironia quase imperceptível.
— Dormi como alguém que foi vendida como pagamento de dívida — retruquei, sentando-me sem ser convidada.
Um canto da boca dele se ergueu.
— Ainda com a língua afiada. Isso vai tornar as coisas interessantes.
— Não estou aqui para te entreter — respondi, servindo-me de café.
Ele inclinou-se para frente, apoiando os braços sobre a mesa.
— Está aqui para obedecer.
A frase caiu no ar como uma ordem velada. Nossos olhares se prenderam, e por alguns segundos, parecia uma disputa para ver quem desviaria primeiro. Eu não desviei.
— Então… quais são as regras do seu “reino”? — perguntei, cruzando as pernas de propósito, vendo o olhar dele descer por um instante antes de voltar aos meus olhos.
— Regra número um: não mente para mim. Regra número dois: não me desafia diante de outros. Regra número três… — ele parou, a voz ficando mais grave — não sai desta casa sem minha permissão.
— E se eu quebrar alguma dessas? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
O sorriso que ele me deu não tinha nada de caloroso.
— Então vai descobrir que minha paciência tem limites… e que meu jeito de ensinar lições não é suave.
Antes que eu respondesse, um dos homens de Lorenzo entrou apressado, cochichando algo em seu ouvido. Ele se levantou, a postura mudando para algo letal.
— Tenho negócios para resolver. Você vai ficar aqui.
— Não vai me dizer que negócios são esses? — questionei, meio por curiosidade, meio para provocar.
— Não é da sua conta… ainda.
Ele passou por mim, mas antes de sair, parou atrás da minha cadeira. Sua mão deslizou pelo meu ombro, apertando de leve. Um toque possessivo, quase ameaçador, mas com calor suficiente para fazer meu corpo reagir contra a minha vontade.
— Vou voltar antes do jantar. Esteja pronta. — a última frase soou mais como promessa do que como ordem.
Quando ele se foi, aproveitei para explorar a mansão. Os corredores eram longos, cheios de portas trancadas. No segundo andar, encontrei uma varanda que dava para o jardim. Foi lá que vi: dois homens arrastando outro, ensanguentado, em direção a um galpão nos fundos. Um dos capangas carregava um taco de beisebol.
Meu estômago se revirou, mas meus pés me levaram até lá sem pensar. Encostei-me discretamente na porta entreaberta. O homem amarrado estava ajoelhado, com o rosto inchado e sangrando.
Lorenzo estava na frente dele, tirando o paletó com calma.
— Você me roubou — disse ele, a voz baixa, mas tão carregada de ameaça que gelava o ar. — E na minha família… traição se paga em sangue.
O som do primeiro golpe ecoou no galpão. O homem gritou, e Lorenzo permaneceu impassível, cada movimento calculado.
Não consegui desviar o olhar — não sei se horrorizada… ou fascinada. Era brutal, mas havia algo magnético na forma como ele comandava a cena, como se nada pudesse tocá-lo.
De repente, seus olhos encontraram os meus na porta. Por um segundo, ele ficou imóvel. Depois, um sorriso lento surgiu.
— Leve-a de volta para dentro — ordenou a um dos guardas. — Ela ainda não está pronta para este tipo de lição.
Fui arrastada de volta, mas aquela imagem ficou na minha mente. Lorenzo Moretti não era apenas um homem perigoso. Ele era o próprio perigo — e eu estava presa a ele.
Quando voltei para o quarto, minhas mãos tremiam… mas não era só medo. Era algo mais. Algo que eu não queria admitir nem para mim mesma.
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O cheiro de comida italiana se espalhava pelo ar quando batiam à porta do meu quarto. Uma das empregadas entrou, carregando um vestido longo, vermelho, com um decote profundo.
— Ordem do senhor Moretti — disse ela, deixando a peça sobre a cama antes de sair.
Fiquei olhando para o tecido, como se ele fosse uma armadilha. Talvez fosse. Ainda assim, vesti-o.
O caimento era perfeito, marcando minha cintura e expondo mais pele do que eu gostaria. Passei batom e soltei o cabelo, não por obediência… mas porque eu sabia que aquilo chamaria atenção dele.
Quando desci, Lorenzo já estava sentado à mesa de jantar. O terno preto destacava ainda mais os ombros largos e a postura imponente. Ele me observou caminhar até a cadeira, um olhar lento e intenso, que me queimava por dentro.
— Vermelho — disse ele, com um leve sorriso. — Uma cor que exige coragem.
— Ou ousadia — respondi, servindo-me de vinho.
Ele inclinou a cabeça, avaliando cada palavra como se fosse parte de um jogo.
— Talvez as duas coisas.
O jantar começou em silêncio, apenas o som dos talheres e da lareira crepitando ao fundo. Até que ele largou os talheres e recostou-se na cadeira.
— Hoje cedo, você me seguiu.
Congelei por um instante, mas mantive a expressão neutra.
— Curiosidade.
— Curiosidade é perigosa no meu mundo, piccola.
— E obediência cega também — retruquei.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Ele não parecia irritado… mas algo em seu olhar me dizia que tinha acabado de anotar meu “desafio” para mais tarde.
— Levante-se — ordenou, com a voz baixa, mas carregada de autoridade.
Arqueei uma sobrancelha.
— Por quê?
— Porque eu disse.
Mantendo o queixo erguido, levantei-me lentamente. Ele contornou a mesa e veio até mim, parando tão perto que pude sentir o calor de seu corpo. Seu perfume amadeirado e o leve toque de fumaça no ar me cercavam.
— Você gosta de provocar… mas se continuar assim, vai descobrir como eu lido com insolência. — Sua mão subiu, tocando meu queixo e inclinando meu rosto para cima. — E aviso… não sou gentil.
Meu coração disparou, mas não recuei.
— Talvez eu queira descobrir.
O sorriso que ele deu não era amigável. Era faminto.
— Cuidado, Chloe… esse jogo pode te consumir inteira.
Antes que eu respondesse, ele se afastou, como se tivesse decidido me deixar com a curiosidade corroendo por dentro. Voltou para a cadeira e retomou o jantar como se nada tivesse acontecido. Mas o ar estava carregado, e cada vez que nossos olhares se encontravam, havia uma promessa silenciosa ali.
Após o jantar, ele me acompanhou até o andar de cima. Parou diante da porta do meu quarto, inclinando-se para falar próximo ao meu ouvido.
— Amanhã… você começa a aprender o que significa ser minha esposa.
Sua voz grave soou mais como ameaça e convite ao mesmo tempo.
Quando a porta se fechou atrás de mim, percebi que minhas mãos tremiam. Não era medo. Era antecipação. E isso me assustava mais do que qualquer arma que ele pudesse empunhar.
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