O quarto estava na mais absoluta bagunça enquanto eu tentava arrumar minha mala para as férias. Deveria ter feito isso na noite anterior, mas havia chegado tão cansada que desisti antes mesmo de começar.
Agora, teria que dar tempo de qualquer jeito. Eu não podia perder o ônibus das oito, senão ficaria presa na rodoviária até as dez.
- Samantha\, isso está o caos. – minha amiga\, Taís\, colocou a cabeça para dentro do quarto.
- Obrigada por avisar. – comentei sarcasticamente\, sem me distrair.
- Disponha. – ela foi se sentar ao lado da mala – Por que não fez isso ontem?
- Porque sou uma idiota. – bufei\, finalmente achando que tudo que eu precisava estava dentro da mala – Já vou indo. Meu ônibus sai as oito.
- São sete e meia. – ela me avisou\, preocupada.
- Pois é. – com esforço\, fechei a mala e a coloquei no chão.
- Eu levo você. – Taís ficou em pé de um pulo – Você nunca vai conseguir se for com um táxi.
- Jura? – senti um peso saindo dos meus ombros – Eu amo você! – exclamei.
- Vamos. – ela revirou os olhos.
Taís ainda estava de pijama, mas não se preocupou em trocar. Os cabelos, volumosos e escuros, estavam presos em um coque alto bagunçado. Ela só se preocupou em pegar os óculos escuros que estavam em cima da nossa mesa da cozinha junto com as chaves do carro e do apartamento.
Nós morávamos juntas desde o começo da faculdade, sem nunca nos mudarmos. O lugar era pequeno, com dois quartos minúsculos e um banheiro claustrofóbico, mas era muito bem localizado e seguro.
Os outros apartamentos, ocupados em sua maioria por outros estudantes, estavam silenciosos. Isso era por ser sábado de manhã do inicio das férias, com certeza. A maioria deveria ter ido embora para casa na noite anterior, os que ficaram estavam dormindo profundamente.
As ruas também não estavam muito movimentadas, então Taís conseguiu me deixar na rodoviária as sete e cinquenta. Saltei do carro, aliviada pela primeira parte do dia ter dado certo, e peguei minha mala pesada.
- Muito obrigada! – agradeci\, me abaixando para poder olhar pela janela – Vejo você em breve.
- Não deixe de mandar notícias! – ela sorriu – Estarei entediada e sozinha. – suspirou\, dramática.
- Tenho certeza que não. – pisquei para ela.
A rodoviária, por outro lado, estava lotada. Precisei correr para conseguir entrar no ônibus a tempo. Agradeci mentalmente por ter comprado a passagem antecipadamente assim que me sentei no meu lugar – a última a embarcar.
Ao meu lado estava uma senhora de uns setenta anos, usando uma bolsa como apoio para a cabeça, dormindo profundamente. Pelo menos, eu não precisaria preencher o tempo com conversa fiada.
Estava morta de fome, mas comer em movimento estava fora de questão, então dormir era justamente a melhor forma de passar o tempo. Inclinei meu banco, tentei relaxar o corpo e, suavemente, comecei a adormecer.
Acordei assustada um tempo depois, com um som de celular tocando muito alto. Só percebi que era o meu quando a senhora ao meu lado apontou para o aparelho no meu bolso.
- Desculpe\, desculpe... – murmurei\, atrapalhada – Alô?
- Samantha? – a voz da minha mãe estava animada – Está no ônibus\, querida?
- Oi\, mãe. Sim. – passei a mão pelo cabelo\, tentando despertar – Que horas são?
- Oito e quarenta. – escutei ela se movendo do outro lado.
- Então já estou chegando. – fiquei mais alerta.
- Que maravilha. – escutei sons de louça batendo contra a mesa – Estarei lá para te buscar!
- Certo\, mãe. Até daqui a pouco.
- Até! – ela quase cantarolou.
Vinte minutos depois, numa incomum pontualidade, o ônibus parou na rodoviária da minha cidade natal. Levei um tempo até conseguir descer e pegar minha mala, então minha mãe já estava impaciente quando finalmente pude me aproximar dela.
- Ah\, como é bom ver você. – ela passou os braços ao meu redor.
Minha mãe era alta, vários centímetros a mais do que eu, e estava usando saltos. Era quase como se eu tivesse voltado a ser criança.
- Também estou feliz por estar aqui. – correspondi seu abraço com a mesma animação.
Ela me guiou até o carro, tagarelando trivialidades. Apenas reparei no quanto ela parecia bem dessa vez, de verdade, e não apenas para me mostrar que eu não precisava ficar preocupada.
Passamos por um período muito difícil. Meu pai nos deixou quando eu tinha quinze anos, sem grandes explicações ou brigas. Minha mãe ficou completamente perdida até descobrir que ele estava morando com outra mulher, então ficou completamente arrasada e sem entender.
Fui para a faculdade com o coração apertado, com medo de deixá-la sozinha. Minha mãe era forte, e muito boa em demonstrar que estava bem e que eu deveria seguir com a minha vida. Mas eu era observadora e sabia o quanto ela se sentiria sozinha – o que realmente foi verdade pelos anos seguintes.
Mas, lá estávamos nós, entrando no seu carro, e ela parecia genuinamente feliz.
- O que aconteceu? – a interrompi.
- O que aconteceu...? – ela repetiu\, me olhando rapidamente.
- Você parece ótima. – elogiei – Alegre\, leve\, animada. – enumerei – Não que não fosse assim – me apressei em garantir que sua farsa continuasse em segredo -\, mas hoje parece ainda mais.
Ela riu, inesperadamente, e vi suas bochechas corarem. Definitivamente, alguma coisa havia mudado.
- Eu ia te contar mais tarde. – suas mãos deslizavam pelo volante\, ansiosas – Mas já que você está perguntando... Conheci uma pessoa. – sorriu\, radiante\, e me olhou mais uma vez rapidamente.
- Mãe! – exclamei\, alto – Isso é maravilhoso!
- Não é? – ela riu e eu a acompanhei.
Quase cinco anos depois do divórcio! Estava realmente na hora da minha mãe seguir em frente.
Ela parou em frente da casa e descemos. Respirei fundo, olhando para o lugar em que eu havia crescido. Era simples, mas eu sempre me sentia extremamente bem por voltar.
- Aposto que você ainda nem comeu. – minha mãe passou por mim para abrir a porta.
- Exatamente. – concordei\, já imaginando o que ela havia preparado.
Corri logo para a cozinha e vi a mesa preparada com tudo de que eu mais gostava, inclusive uns biscoitinhos caseiros que apenas a minha avó sabia fazer. Coloquei um na boca, sentindo-o desmanchar, de olhos fechados.
- Isso só é possível se... – falei\, de boca cheia.
- Samantha! – minha avó surgiu no corredor.
- Vó! – exclamei\, surpresa – Não acredito!
- Sua mãe me convidou. – ela veio me abraçar – Você está mais alta?
- Eu\, não. – encolhi os ombros.
- Bom\, eu devo ter encolhido. – ela estreitou os olhos.
Nesse momento minha mãe passou pela porta. Não deixei de reparar que ela estava com o celular na mão.
- Samantha. Noely. – anunciou – Eu chamei vocês duas aqui para casa porque queria apresentar meu novo namorado. – suas palavras exalavam felicidade – Ele tem uma casa maravilhosa e me convidou para passar as férias por lá. Quando contei que Samantha vinha para casa\, ele estendeu o convite a vocês duas.
Uau. Eu e minha avó ficamos totalmente sem palavras.
- Namorado\, Valentina? – minha vó questionou\, perplexa – Desde quando?
- Tem pouco tempo\, mãe. – explicou – Por vocês tudo bem? É uma casa grande\, afastada da cidade. Ele também gostaria que conhecessem o filho dele.
- Por mim tudo bem. – vovó deu de ombros e olhou para mim.
- Claro. – concordei\, levemente chateada por não aproveitar a minha casa\, mas disposta a colaborar com essa nova fase da minha mãe.
Depois disso, comi enquanto minha mãe separava as coisas que ia levar para a casa do namorado. Eu só esperava que o que estivesse na minha mala bastasse, já que ali eu não tinha mais nada que eu pudesse pegar.
Não eram nem dez horas quando nos acomodamos no carro para seguir viagem, mal tive tempo de dar uma olhada no meu antigo quarto.
Conforme nos afastávamos da cidade, pegando estradas da área rural da cidade, comecei a me preocupar com a possibilidade de estarmos indo em um sítio. Eu não me dava muito bem com a vida no campo, com certeza. Era uma garota da cidade, e não tinha nenhuma vontade de tirar leite da vaca e procurar ovos no galinheiro.
Poxa, tudo que eu queria eram férias tranquilas na casa da minha mãe.
- Nossa. – minha avó se segurou no banco enquanto o carro sacolejava – Quando tempo mais para chegarmos?
- Estamos quase. – minha mãe apertava o volante com força – Mais um pouquinho\, logo depois da curva... Lá está.
Me inclinei do banco de trás, entre as duas, para poder ver melhor. Avistei um muro alto com um portão totalmente fechado. Pelo menos não era uma cerca...
Minha mãe embicou o carro para o portão e apertou uma campainha.
- Sim? – uma voz de homem atendeu rapidamente.
- Sou eu. Valentina e a família. – ela respondeu\, levemente envergonhada.
- Olá\, querida! – ele cumprimentou – Que bom que chegaram.
O portão se abriu e o meu queixo, literalmente, caiu. Após uma extensão de grama impecavelmente aparada, havia a maior casa que eu já tinha visto em toda a minha vida.
Abri a porta do carro, ainda espantada.
O chão em volta da casa era de pedra. A sala, toda de paredes de vidro, nos deixava ver um vulto de homem se aproximando. Havia uma piscina, tão delicada que parecia mais um lago – completamente diferente das piscinas em que eu costumava ir quando era criança.
- Valentina! – o homem saiu pela porta da frente\, sorrindo.
O olhei com atenção. Parecia estar na faixa dos sessenta anos, mas era forte e se movia com muita agilidade. O cabelo, embora branco, era volumoso e brilhante.
- Luiz Antônio! – minha mãe exclamou\, se apressando para dar um abraço animado.
Noely e eu trocamos um olhar. Percebi que minha avó estava tão espantada quanto eu.
- Essa é minha mãe\, Noely. – Valentina o puxou pela mão até nós – E a minha filha\, Samantha.
- É um prazer imenso recebê-las aqui. – notei que os olhos dele eram de um verde intenso – Sou Luiz Antônio.
- É um prazer. – minha vó deu um sorriso educado.
- É\, sim\, claro. – falei\, meio confusa\, quando percebi que todos olhavam para mim – É um lugar lindo.
O homem pareceu feliz com minha aprovação. Seu peito se ergueu levemente, os olhos passando pela propriedade, enquanto envolvia a cintura da minha mãe com um dos braços.
- Obrigado. É meu paraíso particular.
Fomos até o lado de dentro, que conseguia ser ainda mais impressionante. Tudo era de uma madeira escura, sólida e brilhante. Os sofás se espalhavam por todo o ambiente, que devia ser maior que todo o meu apartamento. Luiz Antônio indicou a cozinha ao fundo, mas não nos levou até lá.
Subimos pela escada até o andar de cima. Primeiro, havia um cômodo amplo, com prateleiras cheias de livros e mais sofás, poltronas e um tapete enorme e felpudo. A parede da frente combinava com o andar de baixo, totalmente de vidro, e deixava uma bela vista.
Em seguida ele nos guiou por um corredor cheio de portas, onde explicou que eram suítes.
- Podem escolher qualquer um. – explicou\, apontando – Menos o último\, que é meu quarto. – olhamos na direção – E esse aqui. – colocou a mão na primeira porta da direita. – É o do meu filho.
- É mesmo. – minha mãe comentou\, animada – E quando vamos conhecê-lo?
O homem deu um suspiro profundo, o que já me fez imaginar que o garotinho de ouro do papai não era muito simpático.
- Adam ainda não chegou.
Tudo aquilo era um pouco excessivo para mim, e eu também estava um pouco cansada da viagem de ônibus somada com a pressão dos dias anteriores.
- Bom\, vou ficar por aqui. – apontei para a primeira porta da esquerda – Se não houver problema. – acrescentei\, tentando soar mais educada.
- Claro que não\, querida. – Luiz Antônio fez um gesto despreocupado – Se acomode\, descanse...
Abri a porta e passei para o lado de dentro.
Bom, se eu tinha ficado chocada com o resto da casa, não saberia que palavra usar para aquele quarto.
A cama era grande, com uma cabeceira acolchoada e luzes presas dos dois lados – uma espécie de abajur, imaginei. Ao lado, havia uma janela que ia do teto ao chão, com uma cortina branca de um tecido muito suave. Claro que um tapete tomava a maior parte do local, que ainda tinha armários embutidos por toda uma parede, um sofá que combinava perfeitamente com a cama e uma escrivaninha.
Abri a porta que me levaria ao banheiro e, mais uma vez, fiquei maravilhada. Metade do comprimento do teto era de vidro, e logo abaixo dessa parte estava uma banheira de um material escuro por fora e branco por dentro. Mais ao fundo, estava o chuveiro, a pia e o vaso sanitário.
Certo, talvez não fosse tão ruim assim passar as férias longe da minha casa de infância.
A primeira atitude que tomei foi mergulhar na banheira, cheia com água quente e os sais para banho que estavam do lado. Fiquei lá até sentir todas as tensões musculares se dissiparem.
Claro que, assim que me sequei com a toalha mais macia do mundo, me lembrei que minha mala continuava no porta-malas do carro. Jamais que eu colocaria a roupa que usei a manhã toda, principalmente durante uma viagem de ônibus, depois de me perfumar toda.
Felizmente, havia um roupão branco pendurado em um suporte, e o vesti rapidamente.
Ninguém iria se incomodar se eu fosse assim até o carro buscar minha roupa. Minha mãe devia estar com o namorado no quarto dele – ou deles, melhor dizendo -, minha avó devia estar descansando na cama de seu próprio quarto e eu ainda não tinha visto nenhum empregado circulando.
Sem me preocupar em calçar nada, desci as escadas e atravessei a sala com passos rápidos, já imaginando usar uma roupa quentinha.
- Uau\, dessa vez meu pai se superou.
A voz me fez frear, assustada. Derrapei suavemente, por pouco não caí de costas, e vi o rapaz parado na porta da frente, provavelmente recém chegado.
Não precisaria nem de apresentações para saber que aquele era Adam. Além de ter traços muito parecidos com o pai – como os olhos verdes e o cabelo volumoso caindo em cachos suaves e loiros pela testa -, a postura era arrogante e os lábios, grossos e bem desenhados, estavam abertos em um sorriso malicioso.
- Adam\, meu filho\, você chegou. – Luiz Antônio apareceu no primeiro degrau da escada.
- É\, pai. – o outro olhou para ele suavemente\, antes de voltar a me encarar – Acho que esta é capaz de te causar um infarto.
Era isso mesmo que eu estava ouvindo?
- Escuta aqui... – comecei\, irritada.
- Adam. – o homem falou um pouco mais alto – Essa é Samantha\, filha da minha namorada.
Cruzei os braços na frente do peito, com raiva.
- Filha. – ele inclinou a cabeça para mim – É\, acho que essa passaria um pouco dos seus limites.
- Adam\, por favor. – Luiz Antônio começou a descer as escadas – Seja educado\, pelo menos.
- Desculpe\, madame. – ele sorriu para mim\, cínico – É um prazer tê-la em nossos aposentos.
Ele desviou de mim e subiu as escadas correndo, ignorando o pai no processo.
Uau. Menos de cinco minutos e eu já queria dar um soco naquele rostinho perfeitamente irritante.
- Algum problema\, Samantha? – o homem me perguntou\, provavelmente porque eu estava parada no pé da escada usando apenas um roupão.
- Minha mala. – apontei para o lado de fora – Eu esqueci... Já vou buscar. – acrescentei\, me apressando.
Peguei a mala e voltei para o quarto o mais rápido possível. Toda a sensação de relaxamento tinha se esvaído em uma velocidade recorde. Quantos dias minha mãe iria querer ficar?
Com esforço, e reclamando baixo para ninguém mais ouvir, coloquei a mala pesada dentro do quarto e abri o roupão. Será que havia a possibilidade de eu almoçar dentro do quarto sem parecer mal educada?
- Garota.
Dei um pulo, fechando o roupão com as mãos e me virando.
Deitado de lado, com a cabeça apoiada na mão, Adam me encarava com mais um daqueles sorrisinhos idiotas. Havia divertimentos em seus olhos.
- Creio que seu quarto fica do outro lado do corredor. – ele acrescentou\, apontando a porta.
- Merda. – sussurrei\, me virando para amarrar o roupão com força.
- Não precisa se apressar. – escutei os passos dele se aproximando.
Minha mão buscou a mala, mas Adam foi mais rápido.
- Deixa que eu levo para você. – ele abriu um sorriso torto e passou pela porta.
Eu estava longe de ser uma pessoa implicante, mas, decididamente, eu não simpatizava nem um pouco com aquele garoto. Com certeza seria impossível ficar no mesmo ambiente que ele por dias – minutos já parecia inconcebível.
- Prontinho. – ele colocou a mala no chão do meu quarto e olhou ao redor – É. Meu pai sabe mesmo decorar uma casa.
- É\, é mesmo linda. – respondi\, rabugenta.
- Está totalmente diferente da última vez que eu vim. – Adam não parecia ter pressa para sair\, e\, como a casa era dele\, cruzei os braços para não o empurrar para fora.
- Deixa eu adivinhar. – tentei controlar o sarcasmo – Você costuma viajar nas férias. Algum lugar da moda\, cheio de gente...
Para minha surpresa, Adam riu.
- Gosto de viajar\, claro. – ele me encarou\, ainda sorrindo – Mas esse não é o motivo disso estar diferente. Meu pai sempre muda tudo quando termina um relacionamento.
Franzi a testa.
- É\, é isso mesmo que você está pensando. – o tom de voz de Adam era crítico – Uma infinidade de candidatas a madrasta já passaram por aqui nos últimos anos. Sempre mais jovens\, bonitas... Ninguém fica muito tempo. – ele deu de ombros.
Senti um aperto no peito pela minha mãe. Esse tal de Luiz Antônio nada mais era do que um conquistador – provavelmente uma versão mais velha de Adam.
- Não se acostume com o luxo. – o garoto comentou antes de passar pela porta.
Me virei, pronta para dar uma reposta, mas tudo que vi foi a porta de seu quarto fechando.
Me controlei para não bater a minha porta, depois me troquei e joguei o roupão longe. Naquele momento, tudo que eu queria era pegar minhas coisas e voltar para casa.
- Samantha? – minha mãe bateu suavemente na porta antes de entrar – E então? É legal\, não é?
- É tudo muito chique. – me sentei no colchão macio.
- O que foi? – Valentina se aproximou. Me conhecendo bem\, já tinha notado algo de errado.
- Conheci o Adam. – reclamei.
- Ah... – ela riu – O Luiz me disse.
- Mãe... – gemi – Será que realmente isso tudo... – gesticulei ao redor – É o que você quer?
Valentina sorriu, de um jeito compreensivo, e se sentou ao meu lado.
- Entendo que tudo isso pareça muito diferente da nossa realidade.
- Não\, mãe... – ela continuou me encarando – Bom\, sim. É. Mas não é exatamente...
- Filha. – ela colocou a mão na minha perna – Faz anos que eu não encontro alguém legal. Francamente\, não me importo com o dinheiro e o luxo. Mas é bom ser mimada\, sabe?
Eu queria dizer o que Adam tinha falado, mas não consegui. Minha mãe, depois de anos de solidão, parecia realmente feliz ao lado de Luiz Antônio e animada para passar um tempo comigo e com Noely naquela casa.
- Sei que você só que o meu melhor. – prosseguiu – Mas eu realmente estou muito feliz.
- Que bom\, mãe. – dei um pequeno sorriso.
- Enfim... – ela bateu com a mão no colchão e ficou em pé – Eu vim te chamar para o almoço em família.
- Almoço em família. – repeti\, morrendo por dentro.
Quando cheguei ao andar de baixo com minha mãe, Luiz Antônio e Noely já estavam acomodados em uma mesa que ficava em um canto na sala. Uma empregada colocava uma travessa fumegante em cima da mesa, o que já foi suficiente para minha boca salivar.
- Adam não vem? – minha mãe perguntou\, inocentemente.
- Adam é um mistério. – Luiz Antônio respondeu monotonamente.
Começamos a comer. Parecia a melhor comida da minha vida, já que eu era uma péssima cozinheira e Taís não ficava muito atrás. Por alguns minutos, esqueci todo meu incômodo e aproveitei. Até, claro, Adam resolver aparecer.
- Olha só\, até parecemos uma família feliz. – se aproximou\, nos encarando um a um.
- Adam\, não começa. – o pai o repreendeu.
Noely olhava para ele tentando controlar o olhar de desagrado, o que não estava funcionando. Mas minha mãe queria que o filho do namorado gostasse dela, então sorriu e tentou ser gentil.
- Oi\, Adam... Eu sou Valentina.
O rapaz revirou os olhos enquanto puxava uma cadeira. Acho que minha mãe não viu isso, então continuou com o semblante agradável.
- É um prazer finalmente conhecer você.
- É. Oi. – ele respondeu\, sem se preocupar em olhar para ela\, enquanto se servia.
O clima ficou tenso. Senti minha mãe buscando uma explicação para a hostilidade gratuita, minha avó se controlando para não se intrometer e até mesmo Luiz Antônio tentando não entrar em uma discussão com o filho na nossa frente.
- Estou satisfeita. – empurrei a cadeira para trás – Obrigada pelo almoço.
Dei as costas antes que alguém me chamasse de volta, mas assimilei o olhar curioso de Adam.
A melhor politica das férias tinha se resumido em ficar no quarto e me isolar. Livros não faltariam nessa incrível jornada.
Quando acordei na manhã de domingo, estava totalmente relaxada. A cama era mesmo espetacular.
Me levantei e abri as cortinas. O dia estava nublado e ventando, ótimo para eu ter uma desculpa para ficar o dia todo no quarto – que era o que eu tinha feito no resto do sábado, com exceção apenas do jantar, onde tive que aguentar Adam e seu mau humor e as tentativas da minha mãe de se aproximar.
Amarrei o cabelo em um coque, coloquei um moletom por cima do pijama e desci as escadas para o café da manhã. Através da janela de vidro, vi minha avó sentada em uma esteira na beira da piscina, ao lado de minha mãe e do namorado. Os três pareciam absortos em uma conversa e nem prestaram atenção em mim. Ótimo.
- Olha só quem apareceu. – Adam estava sentado na mesa\, apenas de camiseta e uma calça de moletom.
Suspirei em resposta. Sem ninguém ao redor, eu não precisava fingir que o tolerava.
- Estou com a impressão de que não gosta de mim. – ele me olhava com divertimento.
- Só quero comer. – peguei um pão e comecei a passar a faca.
- Por que não fala um pouco sobre você enquanto isso? – ele sugeriu\, escorregando na cadeira.
Continuei concentrada no pão.
- Olha\, você é a hóspede. – Adam prosseguiu – Você deveria ser simpática com os donos da casa.
- Escuta aqui. – perdia a paciência – Ai! – soltei a faca e o pão. Havia um corte na palma.
Olhei para o sangue escorrendo, não parecia ser muito grave, mas eu não gostava de ver sangue e isso já foi suficiente para me fazer sentir uma vertigem.
- Deixa eu ver isso. – Adam surgiu ao meu lado\, tocando minha mão com a sua.
- Me deixa. – reclamei\, ligeiramente mole\, puxando a mão.
- Não seja idiota. Eu sou médico. – ele passou a outra mão ao meu redor e começou a me levar em direção ao lavabo.
Quando nossos pais entraram na casa, eu já estava sentada no sofá com um curativo e bebendo um copo de água enquanto esperava as mãos pararem de tremer. Adam não tinha precisado fazer nada elaborado, nada que eu não pudesse fazer sozinha.
- O que aconteceu? – Luiz Antônio perguntou quando me viu sentada com seu filho em pé\, milagrosamente calado.
- Ela se cortou. – Adam deu de ombros.
- Meu Deus. – minha mãe se aproximou – Você está bem?
- Não foi nada\, mãe. – forcei um sorriso.
- Mas você está pálida feito um papel. – seu rosto estava preocupado.
Vi Adam se afastando por trás dos dois, novamente com aquele seu olhar entediado.
- Não gosto de ver sangue. – respondi\, um pouco tarde demais – E ainda não tinha comido nada.
- Então vamos comer. – Luiz Antônio me ofereceu a mão.
Enquanto eu comia, sentia um estranho desconforto – o tipo de desconforto quando se sabe que tem que fazer uma coisa que não quer. Eu precisava agradecer ao Adam por ter cuidado do corte.
Claro que eu enrolei o máximo que pude. Conversei com minha avó do lado de fora, respondi perguntas sobre a faculdade e a rotina dividindo o apartamento com Taís, vi minha mãe e o namorado andando pela propriedade de mãos dadas... Até uma chuva fininha começar a cair.
Voltamos todos para o lado de dentro. Minha avó descobriu as maravilhas de uma televisão moderna e foi procurar um de seus filmes antigos para assistir, minha mãe e Luiz Antônio foram se sentar em outro sofá, bem juntinhos e conversando em voz baixa. Resignada, subi as escadas.
A porta do quarto de Adam estava aberta, não totalmente, apenas uma fresta. Na minha mente, seria menos estranho apenas abrir a porta do que bater e chamar o seu nome – e não tenho nenhuma explicação para isso.
O quarto estava escuro e silencioso. Vazio. Será que nós não o tínhamos visto sair mais cedo?
Olhei ao redor, curiosa. Nada estava fora do lugar. Eu imaginaria que um garoto como ele teria revirado tudo em apenas algumas horas, mas apenas a cama dava sinais de uso.
Nesse momento, andando até mais perto da cama, escutei a porta do banheiro se abrindo. Me virei, já arrependida por aquilo, e me deparei com Adam vindo na minha direção.
- Ai\, meu Deus! – rapidamente me virei porque ele não estava vestindo absolutamente nada.
- O que está fazendo no meu quarto? – a voz dele apenas demonstrava uma leve irritação.
- Eu só queria... – gaguejei\, cobrindo os olhos com as mãos – Agradecer. Agradecer pela ajuda mais cedo.
Escutei o som de sua respiração e o guarda-roupa abrindo.
- Não foi nada. – o eterno mau humor estava presente – Pode abrir os olhos.
Abri com cuidado, um de cada vez. Adam estava parado, com as mãos apoiadas na cintura, vestindo apenas uma calça preta. Sua testa estava franzida com os fios de cabelo molhado espalhados.
- Você é muito estranha. – comentou.
Revirei os olhos.
- Era só isso mesmo. – marchei para a porta – Agradeço\, mas agora vamos voltar a manter distância.
- Ei... – ele andou até mim rapidamente – Você não gosta de mim.
Continuei olhando para ele, com a mão na porta.
- Eu não sei porquê. – continuou quando percebeu que eu não diria nada.
- Como não sabe? – sussurrei\, instintivamente – Você me disse que seu pai troca de namorada como troca de cueca.
- E...?
- Como assim “e”? – usei a mão para empurrar um pouco a porta\, fechando-a – Não é bem o tipo de homem que eu quero para minha mãe.
Ele cruzou os braços na frente do peito.
- Meu pai não vai fazer nenhum mal a sua mãe. Ele vai cuidar dela\, fazer todas as vontades\, mimos e o que mais achar que ela precisa.
- Até encontrar algo melhor. – completei\, azeda.
- E daí? – Adam deu de ombros – Não é sempre assim?
Soltei um som entre chocada e surpresa.
- Então acha que as pessoas são descartáveis?
- Acho que pessoas se unem por interesses. – ele continuava firme.
- Está dizendo que minha mãe é interesseira? – precisei me controlar para não elevar a voz.
- Você é mesmo esquentadinha. – ele sorriu\, se divertindo – Eu não disse isso.
- E o que disse? – cruzei meus braços também e cheguei mais perto.
Agora estávamos tão próximos que eu podia sentir o cheiro de perfume caro exalando de seu corpo.
- Eu disse interesses em comum. – falou lentamente\, como se eu tivesse algum problema para entender – Sua mãe está tendo benefícios\, com toda certeza. Coisas caras\, passeios\, a temporada nessa casa... – enumerou – E meu pai deve ter os interesses dele. Sei lá\, companhia\, ou coisas que você provavelmente não vai querer me ouvir dizer.
Senti meu rosto esquentar. Eu queria tanto dar um tapa naquele rosto irônico.
- Você não vale a pena. – dei as costas e saí pela porta.
A chuva durou a tarde toda. No almoço, para minha alegria, Adam não apareceu. Mas vi minha mãe e Luiz Antônio cheios de carinhos e não consegui deixar de lado as coisas que ele havia dito. Será que era verdade? Aquele homem apenas usava as mulheres pelo tempo que lhe era conveniente?
Também passei algumas horas com Taís no telefone, tentando expressar minhas preocupações, mas ela só queria saber como Adam era.
- Em quantas línguas vou ter que aprender a falar “babaca” para você entender? – reclamei.
- Certo\, mas é um babaca bonitinho? – eu escutava o som das panelas da cozinha e quase podia ver os detalhes do nosso apartamento.
- Possivelmente. – rolei no colchão\, para ficar de barriga para cima.
- Possivelmente já é o bastante para mim. – algo chiou do outro lado.
- Sério\, Taís. – suspirei – Se não fosse tão importante para Valentina\, eu voltaria para o apartamento hoje mesmo.
Ela fez silêncio por um instante.
- Samantha\, acho que você deveria relaxar. – seu tom mudou\, ela estava tentando me dar um conselho – Sua mãe é adulta e\, você sabe\, talvez Adam tenha razão.
- Não acredito que estou ouvindo isso. – reclamei\, incrédula\, me sentando.
- Não exagere. – ela prosseguiu\, cuidadosamente – A relação pode ser vantajosa para os dois.
Respirei fundo para não rebater.
- Olha... – Taís continuou\, provavelmente reconhecendo que eu estava irritada – Só estou dizendo que eles podem muito bem ter tudo combinado e você estar sofrendo por nada. Deixa sua mãe viver.
Minha irritação suavizou um pouco.
- Talvez. – cedi.
- Deixa rolar mais um pouco antes de pensar em se intrometer. – Taís finalizou.
- Vou fazer isso. – concordei.
- E agora eu vou comer.
- Bom apetite. – sussurrei\, finalizando a ligação.
Coloquei o celular de lado e me levantei para olhar pela janela. A chuva tinha se intensificado um pouco, deixando tudo de um tom meio cinza. Mesmo assim o lugar era bonito e aconchegante.
Desejei que Taís estivesse certa, que minha mãe estivesse apenas tendo uma relação leve com Luiz Antônio e que, quando acabasse, ela não saísse machucada. Não era a mesma situação do meu pai, agora ela era mais velha, mais experiente.
- Já que você não bate\, também não vou bater. – Adam passou pela porta\, sem nenhuma espécie de aviso.
- Isso é incrível. – me virei\, cruzando os braços – Não concordamos em ignorar a existência um do outro?
- Quando falamos sobre isso? – ele franziu a testa\, se aproximando.
- Foi um acordo não dito. – o observei se aproximando\, decidindo que Taís o acharia muito bonito. Balancei a cabeça afastando a ideia rapidamente.
- Bom\, eu não fiz acordo nenhum. – ele parou bem na minha frente – Meu pai resolveu jantar fora hoje. Sua mãe vai\, sua avó vai... – Adam exalava impaciência – Ele me fez vir perguntar se você quer ir.
Interagir com Adam em um restaurante chique? Não, muito obrigada.
- Não\, obrigada. – me virei e fui até a escrivaninha\, onde estava minha bolsa – Tenho algumas coisas para resolver e prefiro ficar.
- Tudo bem. – ele se virou e saiu sem fazer perguntas.
Pouco depois meu celular vibrou com uma mensagem de Valentina.
“Estamos prontos para ir. Tem certeza que não quer? Ainda estamos esperando sua avó descer.”
Suspirei, encarando a tela.
“Não, mãe. Tenho algumas coisas pendentes da faculdade para entregar até amanhã. Não quero me preocupar. Oficialmente, as férias começam amanhã.”
“Tudo bem, teremos outras oportunidades. Se precisar, é só ligar.”
“Divirta-se.”
Deixei alguns minutos passarem, por precaução, depois resolvi descer e procurar alguma coisa para comer. Luiz tinha contado no almoço que a empregada morava nos fundos, em uma casa separada, e que folgava aos domingos. Oficialmente, a casa era todinha minha.
Passei pela porta misteriosa da cozinha e descobri que era imensa e bem equipada. Tudo muito moderno. A despensa era enorme e cheia de coisas. Separei alguns chocolates para comer como sobremesa e encontrei os ingredientes para fazer um macarrão – que era uma das poucas coisas que ficava tolerável quando eu cozinhava.
Coloquei a água para ferver em uma panela e abri a geladeira de duas portas em busca de queijo.
- Vê se não queima a outra mão. – a voz me surpreendeu.
Me virei, o coração aos pulos, e vi Adam parado na porta com o quadril apoiado no batente.
- O que está fazendo aqui? – fechei a geladeira.
- Assistindo você explorar a cozinha. – ele se moveu na minha direção.
- Pensei que tinha ido jantar. – dei as costas\, indo colocar o macarrão dentro da panela.
- Se você se sentiu confortável para negar\, eu também podia. – escutei ele se aproximando.
Me concentrei no que estava fazendo por alguns instantes, enquanto me preparava psicologicamente para ter que lidar com Adam, e quando me virei ele estava picando tomates.
- O que está fazendo?
- Colaborando. – respondeu sem me olhar.
- Esse macarrão é meu. – reclamei.
- Agora é nosso. – ele me olhou rapidamente – Vai\, para de ficar tão na defensiva.
Deixei meus ombros relaxarem.
- Certo. – cedi.
Pouco depois, Adam estava ralando queijo em cima dos nossos pratos. O aroma estava incrível, e meu estômago roncou de expectativa.
- Vamos. – ele disse\, pegando seu prato.
- Vamos onde? – segurei o meu com cuidado porque estava quente.
Ele não respondeu, então o segui, me controlando para não reclamar.
Adam foi até o sofá e se acomodou com uma coberta que estava jogada lá. Em seguida ligou a televisão.
- Esse é o grande plano? – fiquei parada.
- Senta aí. – ele bateu com a mão livre ao seu lado.
Me sentei, não sem antes dar um suspiro insatisfeito, no canto mais distante dele possível. Comecei a comer antes mesmo dele parar em um filme qualquer, de terror.
Minutos depois de terminar de saborear o macarrão – que estava incrível, preciso confessar que o molho de Adam era surreal -, eu estava encolhida no canto tentando não pular de susto a cada evento ridículo do filme.
- Toma. – Adam me jogou alguns dos chocolates que eu tinha separado. Eu nem mesmo tinha visto ele colocar no bolso – Você está com frio? – franziu a testa\, me olhando pela primeira vez desde que sentamos.
- Não. – respondi\, orgulhosa\, colocando um chocolate na boca.
Escutei a risada dele enquanto se aproximava um pouco para jogar a ponta da coberta em cima das minhas pernas. Um calor agradável me envolveu.
- Então talvez esteja com medo do filme. – sugeriu\, sussurrando.
Ignorei o comentário, mantendo meus olhos fixos nas cenas absurdas que arrancavam tremores involuntários de mim. A cada vez que acontecia, eu via os lábios de Adam se repuxarem em um sorriso.
Soltei um grito quando a porta da sala abriu.
- O que foi? – Noely perguntou\, alarmada.
- Ah\, nada. – respondi\, me levantando.
Adam estava rindo, jogando a cabeça para trás.
Nossos pais apareceram atrás de minha avó, de mãos dadas e sorrindo.
- Que bom que está acordada! – Valentina disse assim que me viu.
- Adam? – Luiz pareceu surpreso por ver o filho perto de mim.
O rapaz apenas suspirou e se virou no sofá com um sorrisinho cínico.
- Que bom que estão acordados! – minha mãe exclamou\, animada – Temos novidades?
- Novidades? – repeti\, encarando o rosto animado de minha mãe e do namorado. Minha avó parecia neutra\, talvez até pensativa.
Notei que Adam ficou sério, mais atento do que costumava ficar. Talvez ele estivesse sentindo a mesma coisa que eu. Uma vibração diferente, uma onda de alegria mais intensa do que a do dia anterior, uma mudança em...
- Nós vamos nos casar! – Valentina ergueu a mão\, exibindo um anel de noivado extravagante.
- O quê? – Adam e eu falamos ao mesmo tempo.
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