O aroma de café fresco se espalhava pela pequena cafeteria na esquina da Rua Willow, misturado ao doce perfume de canela que Hanna insistia em usar no ambiente. A mistura era agradável e acolhedora, do tipo que fazia qualquer cliente esquecer, por alguns minutos, que estava na parte menos charmosa da cidade.
Hanna Moretti se apoiava no balcão de madeira envernizado, polindo xícaras com movimentos lentos. Observava o vapor subir das bebidas recém-servidas e se perder sob a luz suave das luminárias penduradas.
A vida ali era calma.
Quase calma demais para alguém que já teve o próprio nome sussurrado em becos escuros e registrado em arquivos de polícia.
O sino acima da porta tocou, e Cami entrou como um furacão, derrubando metade do vento frio da rua para dentro. Ela tropeçou no tapete de entrada, como sempre.
— Um dia ainda vou morrer aqui, — resmungou, ajeitando os óculos escuros enormes, mesmo sem sol. — Han, não dava pra tirar esse tapete assassino?
Hanna arqueou uma sobrancelha, sem pressa.
— Ele só mata gente desastrada. Coincidência?
— Engraçadinha. — Cami fez uma careta e largou a bolsa em cima do balcão. — Sabe o que mata mais que tapete? Ficar com essa cara fechada o dia inteiro. Um dia desses vai aparecer um cara gato e você vai espantar ele com essa cara de “não chegue perto ou morra”.
Hanna sorriu de canto, passando o pano na xícara.
— Primeiro: minha cara é ótima. Segundo: se aparecer um cara gato aqui, provavelmente está perdido.
Cami pegou um croissant do balcão sem pedir.
— Ou procurando encrenca. Você é uma ímã pra isso, mesmo aposentada.
Hanna riu baixinho, mas a mão dela roçou a cicatriz fina no antebraço, quase escondida pela manga da jaqueta. Uma lembrança silenciosa de noites em que correr de balas era rotina e confiança era artigo de luxo.
Três anos tentando acreditar que aquela vida tinha acabado.
Três anos sem ouvir o nome Vittorio Mancini.
Três anos sem ser A Raposa.
O sino da porta tocou outra vez.
Dessa vez, o homem que entrou fez Hanna endireitar a postura por instinto.
Ele tinha uns trinta anos, talvez menos. Alto, cabelos castanhos bagunçados, jaqueta de couro gasta, e olhos que carregavam pressa e preocupação. Olhou ao redor rapidamente, como quem mede saídas de emergência, e parou quando os olhos dele encontraram os dela.
Ele respirava fundo, como se tivesse corrido ou… fugido.
— Café duplo. Bem forte. — pediu com uma voz rouca, quase um sussurro.
Hanna preparou a bebida em silêncio, mas observou cada detalhe dele. Movimentos tensos, olhar atento demais. Velhos reflexos começaram a coçar no fundo da mente dela.
Quando colocou a xícara à frente dele, o estranho sorriu de leve.
— Obrigado… Han, né? Tá no crachá.
Hanna olhou para o adesivo colorido que Cami tinha colado na blusa dela semanas atrás. Sorriu de canto.
— É. E você é…?
— Ethan. — Ele tomou o café em um gole quase inteiro, como se estivesse com pressa. — Prazer.
Cami apareceu ao lado dele, sempre curiosa.
— Você parece que viu um fantasma, Ethan. Tá tudo bem?
Ele hesitou antes de responder:
— Por enquanto, sim.
Hanna sentiu um frio discreto na espinha. Porque na experiência dela, “por enquanto” nunca terminava bem.
O céu estava carregado de nuvens quando Hanna fechou a cafeteria naquela tarde. O cheiro de café ainda grudava em suas roupas, misturado ao leve aroma de canela que parecia fazer parte dela.
Cami já tinha ido embora, depois de reclamar por meia hora que “a vida noturna da cidade estava morta” e que precisavam “fazer alguma coisa emocionante”.
Hanna tinha rido, mas lá no fundo sabia que emocionante era uma palavra que ela evitava há três anos.
Caminhando até o pequeno mercado da esquina, ela sentiu o vento frio bagunçar os fios ruivos que escapavam do coque improvisado. Foi então que o viu.
Ethan.
Encostado no carro estacionado, com uma sacola de compras na mão e uma expressão que mesclava distração e alerta. Ele a notou e abriu um sorriso quase surpreso.
— Olha só… Han da cafeteria. Não sabia que você rondava por aqui.
— Eu moro a duas quadras daqui. — Hanna parou ao lado dele, espiando a sacola. — Cereal, refrigerante… e donuts. Vida saudável, pelo visto.
Ethan riu, erguendo a mão em rendição.
— Jornalistas sobrevivem à base de cafeína e açúcar. É estatística comprovada.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Então você é jornalista?
— Investigativo. — Ele olhou rapidamente para os dois lados da rua antes de voltar a encarar Hanna. — E você… é sempre tão curiosa ou só com clientes misteriosos?
Ela sorriu de canto.
— Eu só gosto de saber quando alguém vai dar dor de cabeça.
A conversa fluiu com uma naturalidade estranha. Ele tinha um humor fácil e, mesmo com a aparência cansada, conseguia arrancar risadas discretas dela — algo raro.
Mas, entre uma piada e outra, Hanna percebeu algo fora do lugar.
Um carro preto estacionado do outro lado da rua. Vidros escuros. Motor ligado.
Hanna sentiu o corpo reagir antes da mente: músculos tensos, sentidos em alerta.
Ela conhecia aquele tipo de carro.
Conhecia aquele tipo de espera.
Ethan percebeu a mudança sutil no olhar dela.
— Tudo bem?
— Tá. — Hanna desviou o olhar rapidamente, tentando parecer casual. — Só achei que conhecia aquele carro.
Ele seguiu o olhar dela, mas o veículo arrancou devagar, sumindo na esquina.
Por fora, Hanna manteve a calma. Por dentro, sentiu a velha adrenalina que não sentia há anos.
Conversaram mais alguns minutos, e então ele se despediu.
— Obrigado pela companhia improvisada. — Ele sorriu de lado. — Quem diria que eu ia encontrar a barista mais carrancuda da cidade duas vezes no mesmo dia?
— Sorte sua. — Hanna respondeu, mas seus olhos ainda estavam na rua. — Até mais, Ethan.
Ela voltou para casa com aquela sensação incômoda de estar deixando algo escapar.
Naquela noite, a chuva caiu fina, tingindo a cidade de reflexos laranjas e azuis.
Hanna estava em seu sofá, lendo um livro que não conseguia prender sua atenção, quando o celular vibrou.
Uma mensagem de Cami:
"Han… liga a TV agora."
O coração dela acelerou antes mesmo de alcançar o controle remoto.
No noticiário local, a foto de Ethan apareceu ao lado da legenda:
“Homem desaparece após deixar supermercado no centro da cidade.”
Hanna soltou o ar devagar.
— Eu sabia… — murmurou para si mesma, sentindo o peso do passado bater à porta novamente.
E pela primeira vez em três anos, A Raposa começou a acordar dentro dela.
A chuva não dava trégua. Pingos escorriam pela vidraça da sala de Hanna, acompanhando o ritmo acelerado do coração dela.
O rosto de Ethan ainda estava estampado na tela da televisão, acompanhado de uma foto de má qualidade capturada por câmeras de segurança.
Horário da gravação: trinta minutos depois de ele ter se despedido dela na rua.
Hanna desligou a TV, respirando fundo.
Três anos.
Três anos tentando ser outra pessoa.
Mas havia algo dentro dela que jamais morreu — o instinto.
Abriu uma caixa de madeira guardada embaixo do sofá. Dentro, luvas de couro, uma chave de grifo que escondia uma lâmina, e um celular antigo com números que ela jurou nunca mais discar.
Hanna passou os dedos sobre tudo, sentindo a familiaridade quase reconfortante.
— Parece que eu não tenho escolha… — murmurou.
Vestiu a jaqueta de couro preta que não usava desde que largou a máfia. Olhou seu reflexo no espelho do corredor: a Hanna da cafeteria parecia ter desaparecido, e A Raposa voltava a existir.
A primeira parada foi no beco dos fundos do supermercado, onde Ethan havia sido visto pela última vez.
O lugar estava quase deserto, exceto por uma luz amarela piscando e o som distante de buzinas.
Hanna caminhou devagar, olhos atentos, sentidos despertos. O cheiro de lixo molhado e óleo queimado trouxe lembranças que ela preferia esquecer.
No chão, marcas de pneus frescas. Um rastro duplo que parecia de van ou SUV.
Ela se agachou para examinar e sorriu de canto.
— Clássico sequestro em movimento. Discreto, mas não invisível.
Enquanto analisava, ouviu passos pesados atrás dela.
Girou o corpo rapidamente, mãos em posição de defesa.
— Calma, Raposa. — A voz era grave e carregada de ironia.
Do fundo do beco, um homem surgiu, coberto por uma capa de chuva escura.
Hanna precisou de apenas dois segundos para reconhecê-lo.
Bruno “Galo” Ferreti.
O mesmo idiota que já havia tentado pegá-la no passado, sempre falhando de forma cômica.
Ele sorriu, mostrando dentes amarelados.
— Achei que tinha virado dona de casa. Mas olha só… o instinto nunca morre, né?
— Galo… — Hanna deu dois passos para trás, corpo pronto para lutar. — Você tá me seguindo ou só apareceu pra levar outro fora?
Ele riu, coçando a cabeça.
— Só vim avisar que você devia ficar fora disso. O garoto não é problema seu.
— E mesmo assim vocês o levaram. — Ela estreitou os olhos. — Vittorio mandou, não foi?
Galo hesitou, e isso foi resposta suficiente.
Mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, um farol de carro iluminou o beco, e ele recuou.
— Cuida da sua vida, Raposa. Senão a próxima foto na TV vai ser a sua.
O carro arrancou, levando o capanga com ele.
Hanna ficou sozinha, com a adrenalina pulsando nas veias.
Agora ela tinha duas certezas:
A máfia de Vittorio estava por trás do sequestro.
Ela não ia descansar até encontrar Ethan.
De volta à rua, o reflexo da cidade molhada nos olhos verdes de Hanna não mostrava mais uma simples dona de cafeteria.
Mostrava uma predadora em movimento.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!