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MULINHA DO MORRO

####PRÓLOGO

— AGORA VOCÊS VÃO LER MINHA HISTÓRIA

Eu não tenho nome bonito.

Não tenho tatuagem de anjo, nem pose de bandido de capa de livro.

Sou conhecido como Mulinha.

Filho da Mariazinha da Boca.

E agora, depois de muito tempo, eu consegui.

Ela, Tônia , a filha da dona Teresa, neta da Ditinha e Zé Maia que me chama de irmãozinho, aceitou ser minha voz.

E é por ela que eu vou falar tudo o que ficou entalado aqui do lado de cá.

Eu pedi, pedi muito.

Desde junho, eu tô aqui, chamando:

“Toninha, Toninha, me escuta.”

E ela dizia:

“Irmãozinho, esse teu cheiro de maconha, esse cheiro de droga tá me fazendo mal. Eu tô escrevendo outros livros. Quando eu terminar, eu prometo, eu escrevo tua história.”

Ela cumpriu.

Hoje ela tá aqui, escrevendo.

E vocês vão ler.

Mas não se iludam.

Isso aqui não é história pra dar like.

Não é bandido encantado se apaixonando por mocinha de favela.

O tráfico que vocês escrevem por aí, nos livros de mentira, não é o tráfico que eu vivi.

Eu nasci no Morro da Liberdade.

Mas de liberdade, aquele morro só tinha o nome pintado no muro.

Fui gerado no meio da fumaça, da pedra, da ilusão.

Minha mãe, Mariazinha, começou cedo: com 10 anos já fumava maconha.

Com 12, já cheirava.

E vendia o corpo pra pagar o vício.

Mariazinha não quis escola, não quis futuro.

E quem ofereceu o primeiro baseado pra ela foi lá na escola mesmo.

Um laranja, desses que ganha pra aliciar.

Primeiro é de graça, depois cobra.

E ela caiu.

Meus avós, seu Zé Pedreiro e dona Chiquinha, tentaram segurar.

Trabalhavam como burros de carga.

O velho levantava casa de doutor.

A velha pegava dois ônibus pra limpar casa de madame.

Enquanto isso, Mariazinha dizia que ia pra escola.

Ia nada.

Ia se perder.

Quando meus avós descobriram, deram uma surra pra ver se acordava.

Mas já era tarde.

Ela já tinha virado cachorra da boca.

Roubava tudo dentro de casa.

Quando apareceu prenha, sem saber nem de quem era, me botaram pra fora com ela.

E eu nasci.

Prematuro, mirrado, viciado antes de aprender a falar.

Com cinco anos, já era mula.

Levava mercadoria no bolso enquanto fingia ser criança.

Mariazinha morreu cedo.

Cheirou tanto pó, fumou tanta pedra, que o corpo não aguentou.

Vomitou na rua, sufocou no próprio vômito, doidona.

O ônibus veio e acabou com ela.

Acabou Mariazinha.

Mas o Mulinha ficou.

Meus avós foram embora, com vergonha.

Sumiram pra outro estado.

Eu fiquei bolando no morro, sem nome, sem dono.

Sabem como me chamavam? Mulazinha.

"Ei, mula, vem cá, leva essa carga."

Nunca fui bantdido encantado.

Eu era sobra.

Eu era o que sobrou da Mariazinha.

Com 17 anos, me apaixonei.

Mas quem ia querer um esqueleto igual eu?

Baixinho, metro e meio, mirrado, com o corpo furado pelo vício.

A própria Mariazinha me drogava, pra me mandar pra rua sem reclamar.

Eu não cresci.

Fiquei do tamanho da carga que eu carregava.

Pequeno.

E sabe o pior?

Quando o serviço foi feito comigo,

ninguém se preocupou onde o Mulinha foi parar.

Eu fui enterrado em pedaço.

Sem caixão.

Sem lágrima.

Sem nome.

Agora, aqui do lado de cá, eu não preciso de corpo pra falar.

E vocês vão ouvir.

Essa história não é pra vender ilusão.

É um aviso.

É um alerta.

Quem tem juízo, escuta.

Quem não tem, se perde.

Como a Mariazinha da Boca.

Como eu, Mulinha.

Agora vamos começar.

Porque do Morro ao Além,

minha história ainda não acabou.

Mas já vou avisando:

Isso aqui não é romance.

Não é uma historinha bonita de traficante tatuado virando príncipe.

O que eu vivi, o que eu vi, o que me arrancaram.

Isso não cabe na fantasia, o mundo real é cruel.

Vocês acham que sabem o que é o tráfico.

Vocês acham que entendem o morro.

Mas o que vocês conhecem é mentira vendida em papel bonito.

Eu sou o Mulinha.

Filho da Mariazinha da Boca.

Nasci no Morro da Liberdade —

Liberdade?

Aquilo nunca existiu pra mim.

Eu nasci viciado, mirrado, condenado.

Com cinco anos, eu era mula.

Com dez, eu era sobra.

Com dezessete, eu era nada.

Mariazinha me jogou no mundo,

mas ela também foi jogada.

Ela se perdeu porque ninguém quis perder tempo tentando salvá-la de verdade.

Deram a primeira ponta de maconha pra ela na escola.

Depois foi só descendo.

Cheirava, fumava, vendia o que tinha.

Quando não tinha mais nada, vendia o corpo.

Até morrer.

Vomitando, sufocando, esquecida no meio da rua.

E eu?

Eu fiquei.

Fiquei boleando no morro, sem nome, sem dono.

“Ei, Mulinha, vem cá.”

Mulinha pra lá, Mulinha pra cá.

Nunca fui bandido de capa de livro.

Nunca tive tatuagem bonita, nem mulher suspirando por mim.

Eu era a carga.

Eu era o que ninguém queria ser.

E quando o serviço foi feito comigo,

ninguém ligou.

Sumiram com o meu corpo como quem varre sujeira pra debaixo do tapete.

Não teve caixão.

Não teve vela.

Não teve lágrima.

Mas aqui, no Além, a gente não precisa de corpo pra falar.

E eu vou falar.

Não estou pedindo like.

Não estou pedindo piedade.

Só quero que vocês saibam o que acontece com quem nasce condenado.

Com quem não tem escolha.

AVISO AOS LEITORES

Este livro não é um romance de ficção.

O que você está prestes a ler é uma psicografia verdadeira.

As palavras não são minhas.

Eu, Tonia, sou apenas o instrumento escolhido por um espírito desencarnado, que viveu e morreu carregando uma história que o mundo nunca quis ouvir.

Ele é conhecido como Mulinha.

Filho da Mariazinha da Boca, nasceu e morreu no Morro da Liberdade — um lugar onde a liberdade nunca existiu.

Este livro não é bonito.

Não tem palavras doces, não tem bandido encantado, não tem mocinha apaixonada.

Aqui, você vai encontrar a realidade crua, suja, machucada.

É a novela de uma vida real que não existe mais, mas que precisa ser contada.

Eu não estou criando enredo.

Eu estou sendo um canal.

Cada linha que você ler foi soprada por ele, com dor, com verdade.

E a minha missão é dar voz àquilo que ele nunca pôde dizer em vida.

Não é para te entreter.

É para te acordar.

Quem sentir, vai entender.

Quem não sentir, vai rejeitar.

Mas ele não se importa mais.

Agora, do Morro ao Além, ele tem uma voz.

####MARIZINHA DA BOCA

A Verdade Sobre Mariazinha

A Mariazinha não era filha única, não.

Ela foi a última.

A caçula da família.

Os outros irmãos dela, tudo mais velho, tudo se casou cedo e sumiu.

Cada um foi cuidar da própria vida e esqueceram de quem botou eles no mundo.

A vida dos meus avós sempre foi de sacrifício.

O vô, Zé Pedreiro, sempre com as mãos rachadas de cimento,

e a vó, Chiquinha, escrava do balde, do pano de chão, das casas dos outros.

No morro, sobrevive quem trabalha.

Quem não trabalha, se lasca.

E eles trabalharam.

Trabalharam até não ter mais corpo.

Com 45 anos, minha avó já parecia uma velha de 70.

Com 50, meu vô já andava curvado como se tivesse 100.

Eles tentaram dar estudo pros filhos,

o estudo que eles nunca tiveram.

Mas nenhum quis saber, não.

Os filhos casaram cedo, se mandaram,

e largaram o peso nas costas da velha Chiquinha e do velho Zé.

Sobrou a Mariazinha em casa.

Chiquinha pedia pra Mariazinha cuidar dela mesma,

dar comida pra si,

esperar o Zé Pedreiro voltar pra casa.

Mas no morro, educação não vem da vizinhança.

Lá, ninguém se importa.

As vizinhas não tavam nem aí.

Mulher andava de sutiã na rua,

de shorte curtinho,

mulanbenta, falando besteira pros outros.

Se não ligavam nem pro próprio cheiro,

imagina se iam ligar pra uma menina largada na rua?

Mariazinha cresceu nesse cenário.

Chiquinha tinha que trabalhar,

porque se não fosse assim,

não tinha comida, não tinha luz,

não tinha como manter em pé o barraco de madeira onde eles moravam.

E Mariazinha?

Mariazinha foi aprendendo a viver no mundo.

No mundo errado.

Porque no morro, quem cresce sem ter quem segure,

é tragado pela rua.

E foi isso que aconteceu.

Às vezes, a vó Chiquinha tentava.

Tentava levar a Mariazinha junto pro trabalho, pra ver se a menina aprendia alguma coisa.

Mas Mariazinha não se comportava.

Teve uma vez, nas férias,

Chiquinha levou a Mariazinha pra casa da patroa.

Era a chance de ensinar, de mostrar que a filha podia ser diferente.

Mas não deu certo.

A patroa foi direta:

“Não quero a tua filha aqui, não, Chiquinha.

Essa menina não sabe se comportar.

Usa o banheiro e chama de privada,

deixa tudo sujo, e depois é você que tem que limpar.”

E o pior veio depois:

“Eu não sei pra quem essa menina puxou,

porque você é tão trabalhadora,

já está aqui há tantos anos,

mas essa menina não vai prestar pra nada, não.

Chiquinha, eu sinto muito de dizer.”

Chiquinha ouvia tudo calada.

Porque ela precisava daquele dinheiro.

Precisava pagar a conta de luz do barraco.

Precisava colocar arroz no prato.

Precisava ajudar o Zé Pedreiro a manter o teto de madeira em pé.

Então, Chiquinha engolia o choro e seguia.

E Mariazinha?

Mariazinha voltava pra rua.

Com 10 anos, ela estava sozinha no mundo.

E foi na escola que tudo começou a descer mais fundo.

Os mulinhas, os aviãozinhos da boca,

os pequenos que já carregavam a malícia no bolso,

chegaram nela.

“Deixa de ser besta, Mariazinha,

vem aqui, experimenta isso.

Isso aqui vai fazer tu vai viajar.

Vai te levar pra onde tu quiser.”

E a Mariazinha, cansada de ouvir sermão,

cansada de ser vista como nada,

aceitou.

A primeira viagem foi boa.

Porque é assim que eles fazem.

A primeira tragada é leve,

é ilusão.

É a isca.

E Mariazinha mordeu.

####Zé pedreiro e Chiquinha

A vida no barraco sempre foi dura.

Chiquinha e Zé Pedreiro trabalhavam feito condenado,

mas nunca deixaram faltar o básico.

O básico, Toninha. Não era luxo, era só o essencial pra sobreviver.

Mas um dia, Chiquinha começou a notar que as coisas dentro de casa estavam sumindo.

Panela, roupa de cama, até um ventilador velho que mal funcionava.

O Zé Pedreiro chegou um dia e falou:

“Alguém tá levando nossas coisas, Chiquinha.”

E ela respondeu:

“Mas quem, Zé? O povo aqui é tão lascado quanto a gente.”

Foi então que a vizinha apareceu.

Chegou com aquela cara de quem vem dar notícia que machuca:

“Chiquinha, abre teu olho.

A Mariazinha, a tua filha ela tá se perdendo.

Começou na maconha, mas agora tá no pó.

E tá levando as coisas de dentro da tua casa pra trocar por isso.”

Chiquinha ficou sem chão.

“E é só agora que vocês vêm me dizer isso?”

A vizinha respondeu:

“Eu só fiquei sabendo agora.

Quem sabia antes, não falou nada.

Mas eu sou tua amiga, Chiquinha.

Se fosse um filho meu, eu ia querer que você me avisasse.”

E ela ainda jogou a real:

“Mas eu não sei se vai dar jeito, não.

Dizem que já faz tempo que isso tá acontecendo.”

Chiquinha engoliu o choro e esperou a Mariazinha chegar.

Mariazinha já tava com quase 15 anos,

magrela, com os olhos vermelhos,

os ossos saltando debaixo da pele.

Quando Mariazinha entrou,

Chiquinha perguntou direto:

“É verdade o que tão falando, Mariazinha?

Que tu tá cheirando pó, fumando maconha,

e levando as coisas da nossa casa pra trocar por isso?”

Mariazinha riu de lado.

“Só agora vocês perceberam?

Vocês acham que essa minha magreza é de quê?

Que meu olho vermelho é de dormir demais ou de não dormir nunca?”

O Zé Pedreiro tentou botar respeito:

“Não fala assim com tua mãe, menina.

A gente trabalha feito condenado pra não deixar faltar nada pra você,

e você vem me dizer uma coisa dessas?”

Mariazinha não se abalou.

“Mas falta tudo, pai.

Falta tudo.

Foi lá na escola que me ofereceram.

Eu gostei.

E eu não vou parar.”

Foi ali que Chiquinha perdeu as forças.

Mas reagiu com o que tinha:

“Você vai parar com isso agora!”

E desceu o braço na Mariazinha.

Bateu com raiva, com tristeza, com desespero.

Mas Mariazinha estava longe demais.

Ela cuspiu as palavras:

“Eu não vou parar!

E pra completar,

tô prenha.

E nem sei quem é o pai.”

O silêncio cortou o ar.

O Zé Pedreiro respirou fundo, encheu o peito e disse:

“Então você tá fora daqui.

Eu não vou trabalhar feito um condenado pra sustentar uma vagabunda.”

Mariazinha encarou de volta, sem medo:

“Pois eu vou pra lá.

Eles vão cuidar de mim.”

Falava dos homens da boca.

Sabia que lá, pelo menos, teria um canto e o que cheirar.

Zé Pedreiro olhou pra Chiquinha,

cansado, derrotado, e falou:

“Minha velha,

chegou a hora da gente ir embora.

Nossa filha se perdeu.

Nossos outros filhos não querem saber da gente.

Vamos voltar pra nossa terra.

Lá, pelo menos, a gente tem parente.

Se a gente morrer, tem quem enterre a gente.

Aqui, a gente não tem ninguém.”

E assim foi.

Eles arrumaram o pouco que sobrou e foram embora.

Sumiram do morro, levando a dignidade que ainda lhes restava.

Mariazinha ficou.

Ficou embuchada,

sozinha,

e com a alma já vendida.

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