“Por que nós?”
Essa pergunta volta pra mim mais vezes do que deveria.
Na maioria dos dias, eu ignoro — faz parte do trabalho, certo? Fingir que não sinto. Fingir que não penso.
Mas mesmo depois de anos enfiada nessa base subterrânea, treinando, matando, seguindo ordens e sendo tratada como uma peça valiosa de um quebra-cabeça doente... ela sempre volta.
A pergunta.
Como uma maldição.
Sentei na beirada da cama, os pés descalços tocando o chão gelado do quarto branco demais. Tudo ali era limpo demais. Frio demais. Programado demais. A cama perfeita. A iluminação automática. A temperatura constante.
Perfeição fabricada. Quase inumana.
O despertador apitou às 06:00. Certinho. Como sempre.
Ignorei.
Às 06:01, ouvi o som familiar da digitação frenética da Aru no corredor. Mais uma madrugada hackeando a central. Ela dizia que fazia por diversão. Eu tinha minhas dúvidas.
Levantei, prendi o cabelo roxo num coque frouxo, vesti o uniforme preto básico e saí do quarto. O corredor me engoliu — longo, cinza, cheio de portas brancas. Algumas trancadas. Algumas que, em todos esses anos, nunca vi abertas.
06:05 — Cozinha da ala norte
A base era grande, moderna, gélida... mas a cozinha tinha um certo charme de lar improvisado. Alguém — provavelmente a Maya — pendurou cartazes de anime numa das paredes. A geladeira estava cheia de ímãs coloridos e post-its com ameaças bobas tipo “NÃO TOCAR NO CHOCOLATE DA ARU” (o que, obviamente, não impedia o Kai de tocar sempre).
Aru já estava lá, como sempre, com dois monitores holográficos, um fone enfiado num ouvido e um pacote quase vazio de biscoito de morango ao lado.
— Dormiu alguma coisa? — perguntei, me encostando na bancada.
— Três horas. O suficiente pra um reboot rápido — ela respondeu, ajustando os óculos. — E você devia ver isso.
Peguei uma maçã da fruteira (cara como um carro, provavelmente) e dei uma mordida. Aru abriu um holograma em tela cheia.
Missão classificada. Código vermelho.
— “Classificação Alfa-Vermelha. Acesso restrito. Autorização nível 7.”
— Nível 7? Nem o diretor do nosso setor tem isso.
— Exato. E o curioso é que está marcada como “cancelada”… mas continuam mexendo no código por trás.
Fiquei em silêncio. Meu instinto estava gritando.
— Já contou pra alguém?
— Só pra você. Mas se quiser, eu jogo no grupo da base como evento: “missão secreta que talvez mate a gente todxs – clique para participar”.
— Muito engraçada.
A porta se escancarou com um estrondo. Kai apareceu todo amassado, descabelado, com cara de quem foi arrancado de um pesadelo.
— Que porra é esse barulho de digitação desde as cinco da manhã?
— Bom dia pra você também, solzinho — disse Aru sem desviar da tela.
Maya surgiu logo atrás dele, impecável. Duas espadas de madeira nas costas, expressão de quem já fez 200 flexões antes do café.
— Você reclamando de barulho? — ela resmungou. — Ontem você treinou com fones ouvindo death metal russo no último volume.
— Me ajuda a entrar no clima, ué — Kai rebateu, enfiando a cara na geladeira.
Observei os dois. A dupla mais letal da base. Mercenários desde a infância, programados pra matar com uma frieza assustadora. Mas ali, na cozinha... pareciam dois adolescentes cansados demais pra funcionar sem café.
Parona apareceu por último, de jaleco, tablet na mão.
— Bom dia. E antes que perguntem: sim, temos exames hoje.
— Hoje é terça. Dia de folga. Nosso contrato diz três dias livres por semana — Kai disse, como quem defende os direitos trabalhistas da base.
— O contrato também diz que vocês não podem desmontar drones só pra ver como eles funcionam. Mas adivinha? — ela encarou Maya com um sorriso torto.
— Aquilo foi um experimento de campo! — Maya protestou.
Me servi de mais café, observando aquela cena caótica. Aquilo... era minha família. No sentido mais distorcido possível.
Todos nós éramos órfãos. Criados em instalações diferentes, depois reunidos pra formar essa equipe. Os “favoritos do sistema”. Com liberdade acima do normal. Com identidades múltiplas, acesso irrestrito, dinheiro o suficiente pra desaparecer — desde que a gente nunca perguntasse demais.
Mas eu estava cheia de perguntas.
— Você vai jogar? — perguntei ao ver Aru abrir outra aba.
— Claro. Ranqueada antes da missão falsa que inventei pra quebrar o firewall deles. Um pouco de diversão na semana.
— Seu LoL ainda vai travar a rede inteira.
— Só se eu perder. Aí eu derrubo tudo de propósito.
Kai bufou.
— Nunca entendi esse jogo. Você gasta 40 minutos num mapa só pra perder porque o suporte ficou parado.
— ISSO. ISSO É O QUE ME IRRITA — Aru apontou com o biscoito. — Viu, Isa? Ele nem joga e já entendeu.
Ri.
Era nesses momentos que a gente parecia humano. Não no campo. Não nas reuniões. Mas ali — entre piadas, comida roubada e provocações. Por mais que o governo nos tratasse como ferramentas, nós éramos pessoas. E cada vez mais, eu sentia que algo não encaixava.
Lá fora, o mundo seguia ignorando tudo. Acreditando nas mentiras. E nós... nós éramos as engrenagens sujas que faziam tudo girar.
“Por que nós?”
“Por que ninguém sabe que existimos?”
“O que mais estão escondendo?”
Aru fechou o notebook.
— Ok. Entrei. A missão oculta é real. Nome do projeto: LUX. Mas não é uma missão comum... Isa, você precisa ver isso.
Ela jogou o holograma no centro da cozinha.
O arquivo era enorme. Fragmentado. Mas o pouco que dava pra ler já gelou meu sangue.
...> “Registro de desaparecimentos anormais: lactentes e crianças até 10 anos. Inconsistência em certidões de nascimento. Famílias eliminadas.”...
...> “Relatórios de corpos em fossas clandestinas. DNA incompatível com humanos. Modificações genéticas ilegais.”...
...> “Ameaça potencial: engenharia biológica fora de controle. Nível de risco: vermelho 7. Possível atuação de corporações dissidentes.”...
Me aproximei pra ver melhor. O holograma piscava — falha no sistema... ou tentativa de apagamento automático.
— Isso não é só mais uma missão — falei.
— Eu sei. Isso aqui é uma bomba — Aru respondeu.
Kai e Maya pararam. O caos virou silêncio.
— Repete isso — Maya pediu, chegando mais perto.
Aru respirou fundo.
— Encontraram fossas. Cheias de corpos. Jovens. DNA modificado. Tecnologia ilegal. O governo tá em pânico. Isso vai contra tudo que o “projeto humano padronizado” defende. A suspeita é de que alguma corporação rebelde esteja desenvolvendo super-humanos... e gente morreu no processo.
— Crianças desapareceram — completei. — Famílias sumiram.
— Isso é guerra — disse Kai.
Parona tomou o tablet da Aru, os olhos arregalados analisando os dados.
— Isso... essa sequência genética... isso não é natural. Nem as biofábricas do governo fariam isso. É... evolução forçada.
Meu estômago virou.
A vida inteira fomos treinados pra proteger a sociedade de ameaças. Hackers. Terroristas. Traidores.
Mas isso?
Isso era o próprio sistema tentando esconder que talvez… já tivesse perdido o controle.
— A missão foi criada pra investigar isso, certo? — perguntei.
— Sim — Aru assentiu. — E sabe o que mais? Cancelaram. Com a nota: “Risco extremo de exposição. Ameaça interna maior do que previsto.”
Maya franziu a testa.
— Cancelaram porque não têm como controlar. E se nem a gente serve pra isso...
— ...é porque preferem que a gente morra do que deixar rastros — completou Aru.
Kai chutou o chão, irritado.
— Querem que a gente vá... mas se der merda, vão dizer que nunca autorizaram.
Senti um nó no peito.
Por que nós?
Pensei de novo. Mas dessa vez, eu sabia a resposta.
Porque somos descartáveis.
Porque ninguém fora dessa base sabe que existimos.
Porque, pra eles...
Somos só armas.
22:09 — Zona industrial da cidade.(estrada do terreno abandonado)
O ronco velho da viatura ecoava entre galpões abandonados e placas enferrujadas. As luzes intermitentes dos postes mal iluminavam a estrada de terra batida.
Mais uma patrulha de rotina.
O policial do banco do carona esfregou os olhos, lutando contra o sono.
— Esse lugar tá morto. Como sempre.
O motorista deu um leve riso nasal.
— Tomara que continue assim.
Mas a tranquilidade foi cortada pelo farol alto. Uma figura solitária surgia no meio da estrada. Parado. No escuro. Imóvel.
O motorista pisou no freio, fazendo a viatura ranger e parar alguns metros antes de atropelar o homem.
— Merda… — murmurou.
Era um jovem. Ou algo próximo disso. Cabelos azuis desgrenhados, pele pálida manchada de terra. Usava roupas largas — uma camisa branca, suja e amarrotada, que balançava com o vento fraco da madrugada. Calças igualmente largas, cobrindo parcialmente os pés descalços.
Mas o que fez os dois policiais se enrijecerem não foi o estado dele. Foram os olhos.
Vermelhos. Não como lentes. Não como reflexo. Mas como luz viva.
Um vermelho escuro, profundo, como carvão em brasa prestes a explodir em fogo.
O carona estendeu a mão até a arma.
— O que é isso...? Um tipo de aberração? Droga, ele tá encarando a gente!
O motorista pegou o alto-falante:
— Afaste-se da via! Último aviso!
Nada.
O homem não reagiu. Nem mesmo piscou. Apenas observava. O rosto sem expressão. Frio. Vazio.
A ausência total de emoção naquele olhar fazia algo instintivo gritar no fundo da espinha dos dois.
Aquilo não era normal.
— Saí da viatura. Vai precisar de contenção — disse o motorista, abrindo a porta com cautela pulando pra fora do carro.
Foi a última coisa que ele fez.
O homem se moveu.
Não correu. Não saltou. Apenas apareceu.
O som do osso quebrando veio antes mesmo do grito.
A mão do estranho agarrou o queixo do motorista com uma precisão cirúrgica — e então apertou.
O maxilar inferior se deslocou de forma grotesca, num estalo surdo, e a mandíbula inteira foi arrancada, pele e carne rasgadas com brutalidade.
O grito virou um chiado, depois silêncio.
O corpo caiu com um baque seco. Sangue quente esguichando do pescoço rasgado como uma fonte descontrolada.
O segundo policial gritou. Um som rouco, histérico, cheio de medo primitivo.
Tentou correr.
Conseguiu abrir a porta. Deu dois passos.
Não chegou ao terceiro.
O homem o alcançou pelas costas, como uma sombra se materializando no ar. Puxou-o para trás com uma força descomunal, prensando-o contra a lataria da viatura.
O policial tentou se virar, apavorado, mas uma mão fria segurou seu rosto.
Os dedos se abriram como garras.
E então veio o momento final.
Com uma força absurda, o homem puxou para cima e para os lados, rasgando o couro cabeludo, quebrando o crânio com estalos horríveis, enquanto o rosto do policial era destruído, como massa de vidro sendo esmagada.
Um som de gosma e estalos preencheu o ar.
O corpo tremia, espasmando, até cair mole no chão.
O homem se afastou dois passos. Suas mãos cobertas de sangue fresco. O peito subia e descia devagar. Não por cansaço. Mas como se estivesse se concentrando.
Não havia emoção em seu rosto. Nem satisfação. Nem fúria. Só... ausência.
A luz da viatura piscava, ainda ligada, pintando o cenário de azul e vermelho.
O terreno baldio estava em silêncio.
Só os corpos caídos e a respiração estável daquele ser.
Ele olhou para as próprias mãos ensanguentadas.
Depois ergueu os olhos para o céu nublado.
— hah... Não era o que eu queria.
O silêncio voltava, denso e pesado, como se o próprio ar estivesse com medo de se mover.
Dois corpos jaziam no chão de terra batida, sangue escorrendo em rios vermelhos que se infiltravam lentamente nas rachaduras do solo seco. A sirene da viatura piscava intermitente, jogando flashes azuis e vermelhos sobre a cena grotesca.
O garoto de cabelo azul permanecia ali, imóvel por um momento. O peito subindo e descendo de forma contida. As mãos pingavam sangue ainda quente.
Não parecia arrependido.
Mas também não parecia presente.
Seus olhos vermelhos estavam fixos na viatura. Como se... algo ali chamasse.
Ele caminhou devagar próximo ao carro. Os faróis iluminavam sua figura magra, com músculos tensos como cabos de aço, pele manchada por terra e sangue, roupas largas que pareciam roubadas de algum abrigo ou hospital.
Ele se abaixou, passou os dedos pela lataria, como quem toca algo estranhamente familiar.
A ponta dos dedos deslizou pelo capô... pela maçaneta... até o espelho retrovisor externo.
E então, parou.
Se olhou.
O reflexo no espelho vibrava levemente com o motor ainda ligado.
Os olhos vermelhos encararam de volta.
Frio. Vazio. Inumano.
Mas por um segundo, uma faísca.
Como se ele estivesse vendo seu próprio rosto pela primeira vez em anos. Como se não reconhecesse mais aquela expressão. A pele. O sangue. O olhar.
Como se estivesse... se perguntando quem era.
Ele levou a mão até o ombro direito, puxando a gola da camisa larga.
Ali, tatuado na pele pálida, em traço simples e militar:
|||007
Três barras. Um número.
Sete.
Ele encarou a marca por longos segundos. A respiração mais lenta agora. Como se aquele número pesasse em seu corpo.
Como se contasse uma história que ele não conseguia lembrar — mas sentia nos ossos.
Uma história feita de dor, de experimentos, de ordens. De isolamento, e transformação.
A luz do espelho piscou. Um barulho ao longe — talvez um trem, ou uma sirene distante.
Ele abaixou a manga da camisa, cobrindo o número.
Depois voltou o olhar para os corpos dos policiais. Nenhuma emoção.
Se virou.
E caminhou para dentro do terreno baldio, passos firmes e silenciosos, como um animal noturno retornando para seu esconderijo.
Atrás dele, a viatura ainda apitava. Mas ninguém viria a tempo de entender o que aconteceu ali.
Não completamente.
Afinal, o que restaria para contar... já tinha sido arrancado.
!
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
23:02 — Periferia da Zona Industrial.
— Certeza que é por aqui? — perguntou Lucas, tentando manter a voz firme. Ele segurava a lanterna do celular como se fosse uma arma.
— Uhum — respondeu Gabi, andando na frente com passos decididos demais pra quem estava usando uma saia curta e tênis de plataforma.
— A Clara falou que viu a viatura passando por esse terreno. E o lugar é perfeito pro nosso vídeo de terror fake. Cem mil views garantidos.
— Ai, ai, ai... por que eu vim... — murmurou Carol, agarrada ao braço de Rafa como se ele fosse um escudo humano. Ela tremia mais do que o LED da câmera do celular.
— A gente podia ter feito o vídeo numa casa abandonada como todo mundo!
— Silêncio! — Gabi parou. — Escutaram isso?
Os quatro ficaram imóveis. O vento balançava as folhas secas pelo chão, e um poste de luz piscava como se fosse parte do cenário de um pesadelo barato.
— Nada. Vamos logo — disse Rafa. — Fazemos o vídeo, editamos uns sustos falsos e vazamos. Quero dormir hoje.
Eles andaram por mais alguns metros até que a luz dos celulares refletiu em algo metálico.
A viatura.
— Uau... isso tá com a porta aberta? — Lucas murmurou.
— Espera... tem sangue? — Carol recuou imediatamente. — Gente... a gente devia ir embora. Sério!
— É encenação, idiota — disse Gabi, rindo
. — Deve ter alguém gravando uma série de YouTube. Sangue falso, cadáver de mentirinha...
—AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHH!!!
O grito de Carol cortou o ar como uma lâmina.
Todos viraram ao mesmo tempo — e então viram.
Os corpos.
Caídos um ao lado do outro, no chão de terra. Um deles sem mandíbula. O outro com o rosto dilacerado. O sangue ainda fresco, brilhando à luz da lanterna. Os olhos arregalados, a expressão de puro pânico congelada no último segundo de vida.
Lucas vomitou.
Rafa ficou pálido como papel.
Carol, aos prantos, tremia tanto que o celular caiu da mão dela.
— I-isso não é maquiagem... — ela choramingou.
— CORRE. AGORA! — Gabi gritou, puxando os outros.
Os quatro correram pela trilha tortuosa de volta ao bairro, tropeçando, gritando, com os celulares tremendo na mão. O vídeo que gravaram sem querer — cheio de gritos, imagens tremidas, e um breve vislumbre dos corpos — viralizaria no dia seguinte.
O vídeo era tremido, granulado, claramente gravado às pressas. Mostrava uma estrada deserta, uma viatura largada, luzes piscando no escuro. Vozes adolescentes em pânico, correndo pela cena. A câmera parou sobre dois corpos de policiais. Um deles jazia com a mandíbula arrancada, a língua pendendo como uma fita molhada. O outro tinha o rosto... ausente. Carne retalhada por garras ou algo pior. O cheiro de medo parecia atravessar até a tela.
— EU FALEI PRA NÃO VIR! — gritou uma das garotas, a voz oscilando entre o medo e a culpa, quase um soluço.
Aru pausou o vídeo com um pedaço de pipoca quase na boca. O estalo foi abafado pela tensão.
— Edição horrível — murmurou, franzindo o nariz como se sentisse o cheiro da cena. — Quem grava um massacre com 30 FPS e lente suja?
Fiquei em silêncio, braços cruzados. O cenho franzido entregava mais do que qualquer palavra. Maya, ao meu lado, não piscava. Os dedos apertavam o assento como se pudesse se segurar no presente. Kai tamborilava na mesa com os nós dos dedos, inquieto. Parona abriu um relatório no tablet, olhos frios e precisos, como bisturis.
— O vídeo vazou ontem. Foi bloqueado rápido, mas viralizou antes. A polícia isolou a área. E... a gravação foi enviada pra gente por engano. Com um relatório marcado como classificação fantasma.
— Fantasma? — Maya inclinou o corpo para frente, a testa franzida, o olhar ainda na tela congelada.
— Material que não devia existir — respondeu Aru, agora largada no sofá como se aquilo fosse só mais um dia comum. Equilibrava a tigela no peito. — Mas existe. E o sistema não consegue mais fingir que não.
O silêncio caiu denso como névoa de chumbo.
Rebobinei o vídeo. O corpo sem rosto pulsava na tela. As marcas eram precisas. Não era vandalismo. Era... técnica. Força bruta com intenção.
— Isso não é um ataque comum — falei, mais pra mim mesma do que pra eles.
— Nem é o primeiro — Parona deslizou o dedo pela tela do tablet. — Três registros semelhantes nos últimos seis meses. Mesmo estilo. Nenhuma solução.
— Agora o governo está assustado — Aru completou com um meio sorriso irônico. — Estão tentando apagar pegadas... e cogitam jogar a gente no buraco de novo.
Kai bufou, cruzando os braços.
— Claro. Quando o buraco é fundo demais, jogam a corda pros invisíveis.
— Se for pra morrer, que seja com estilo — Aru levantou a pipoca num brinde silencioso. — De skin lendária equipada.
Me aproximei da tela. Algo naquela brutalidade parecia ensaiado. Treinado. Um predador que conhecia cada ponto fraco do corpo humano. E que sabia aproveitar.
— E se não for humano? — Maya sussurrou, tão baixo que mal parecia uma pergunta.
Parona hesitou antes de responder:
— Oficialmente, "mutantes" são teoria da conspiração. Mas o governo... não descarta totalmente. Eles fingem.
— E agora querem que a gente investigue o que nem eles conseguem rastrear — resumi, firme.
Na tela, um último aviso piscava:
...> Solicitação de ativação dos agentes especiais. Aguardar confirmação do Conselho Central....
Respirei fundo. Mais uma vez, lançados no escuro. Mais uma vez, só nós.
— Se é pra investigar o impossível, faremos do nosso jeito — falei, sem hesitar.
Kai assentiu devagar. Maya olhou pra mim e concordou com um movimento de queixo. Parona já acessava os canais seguros. Aru esticou os braços como quem acorda de um cochilo.
— Vai ser divertido. Ou fatal. Um dos dois.
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
O corredor era longo, limpo, sem janelas. As luzes brancas zumbiam como insetos nervosos. O prédio parecia desconfortável com a nossa presença ali de madrugada. Seguíamos em silêncio, todos uniformizados de preto com detalhes prata. No peito, o símbolo do governo. No ombro, a insígnia branca da nossa unidade.
Kai ajeitou a gola, visivelmente incomodado.
— Detesto esse traje. Me sinto num velório.
— Tecnicamente, você está — comentou Aru, sem perder o ritmo da caminhada. — Velório do bom senso.
Maya deu um empurrão de leve no ombro de Aru. Eu seguia à frente, rosto impassível, mas olhos atentos a cada canto.
A porta de aço se abriu com um suspiro hidráulico.
A sala do Comando Superior era escura, iluminada por hologramas e monitores. Três figuras sentadas em cadeiras elevadas, rostos cobertos pelas sombras. Vozes distorcidas.
— Equipe Orbe Sombra. Obrigado por comparecerem prontamente — disse Alfa.
— Como se tivéssemos escolha — murmurei para Kai, quase sem mover os lábios.
O chão se abriu, revelando uma mesa holográfica. A projeção brilhou: imagens flutuantes como lembranças que não queríamos revisitar.
— Caso classificado como Nível Sete. Sigilo absoluto — disse Sigma. — Apoio investigativo e contenção preliminar.
Kai arqueou uma sobrancelha.
— Que gracinha de eufemismo pra "se virem com o desconhecido".
As imagens mudaram.
Fotos das fossas. Corpos. Jovens. Olhos brancos. Veias saltadas. Pele rígida. Unhas negras. Dentes caninos longos. Costelas quebradas de dentro pra fora.
— Modificação genética — disse Delta. — Mas não da forma conhecida. Alguns tinham quatro tipos diferentes de sangue.
Aru arregalou os olhos.
— Isso... isso é um bug biológico. Não devia existir.
— E ainda assim existiu — Parona apertava os lábios, os olhos fixos no relatório como se pudesse espremer mais verdades dele.
Todos colapsaram. Morreram de dentro pra fora. Falência sistêmica. O corpo rejeitou as mudanças.
— Implodiram — Maya murmurou, num tom tão baixo que parecia um eco.
Mais imagens. Um coração negro. Ossos deformados.
— Motivo? — Kai perguntou, direto.
— Implantes genéticos clandestinos. Origem desconhecida. Não sabemos quando começou.
O gráfico apareceu: trinta anos atrás. Crianças desaparecidas entre 1995 e 1998. Casos arquivados.
Parona lia tão rápido que parecia absorver as palavras pelos olhos.
— Todos ligados ao Hospital Ravel.
— Fechado após um incêndio. Nunca investigado — Sigma completou.
A imagem voltou à viatura. Massacre. Nenhum rastro.
— O assassino... sumiu. Como se nunca tivesse existido.
— Ou foi treinado pra isso — falei.
Três corpos frescos. Veias azuis como galhos mortos. Corações em câmara fria. Silêncio.
— Queremos acesso total — pedi, firme.
— Está liberado. Vocês estão oficialmente no caso Lux
Nos entreolhamos. Nenhum de nós sorriu.
— Nome sem graça — resmungou Kai.
Ao sair da sala, todos sabíamos: não era uma nova missão.
Era um recomeço. De algo que começou muito antes de a gente nascer.
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
ele caminhava pela beira da estrada como uma sombra esquecida. O céu era cinza, e a cidade seguinte se estendia à frente como uma promessa envenenada. O casaco preto colava ao corpo esculpido, e mesmo sujo de poeira, sangue seco e desgaste, seu físico chamava atenção onde passava. As pessoas olhavam — algumas por desejo, outras por puro instinto de alerta. Mas ninguém sabia o que realmente estavam vendo.
Ele desviou de um carro de carga, olhos vermelhos escondidos sob a aba do capuz. Já havia aprendido a andar entre eles. Já havia sentido o calor de mãos humanas, já havia ouvido risos ao redor de praças. Tentou uma vez sentar num banco público. Ninguém se sentou ao lado. Um cachorro latiu sem parar. Um homem bêbado vomitou a três passos de distância, mesmo sem olhar pra ele.
— Você não é daqui, né? — sussurrou uma mulher, numa noite chuvosa, quando ele tentou comprar pão com moedas enferrujadas.
Ele apenas olhou. Ela recuou, sem saber por quê.
A fome era constante. Não por comida. Mas por carne viva. Era como uma febre que começava nos ossos e subia até os dentes. Resistiu. Queria resistir. Mas duas semanas antes, no beco atrás do hotel abandonado, ele cedeu. queria vomitar depois, as mãos ainda vermelhas. O gosto de sangue humano não era amargo como esperava. Era doce, quente, viciante. E pior: necessário.
“Você foi feito assim”, dizia uma voz na cabeça.
Passos ecoaram na estrada, e ele parou.
Dois homens de preto se aproximaram, roupas táticas, armamento discreto. Sete não se moveu. Reconheceu o símbolo no ombro deles — a serpente cruzando um DNA quebrado.
— Sete. — Um dos homens falou com calma. — Já faz sete meses.
o garoto não respondeu. O vento balançava os fios do seu cabelo. A cidade estava perto. Mas não perto o suficiente.
— O Pai quer ver você. Disse que está na hora.
Os olhos vermelhos dele brilharam.
Nenhuma escolha. Nenhuma fuga.
Apenas o sistema. Apenas o Criador.
E ele...
Ele estava com fome..
Para mais, baixe o APP de MangaToon!