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Além dos Passos

1

Olá, queridos leitores!

Que saudade eu estava de vocês!

Hoje começamos juntos mais uma história, daquelas que aperta o peito, arranca suspiros e nos faz acreditar, outra vez, que o amor pode florescer até nos corações mais improváveis.

Preparem o coração, se aconcheguem em um cantinho tranquilo e deixem que cada capítulo os carregue para dentro dessa trama, onde dores antigas e novos recomeços caminham lado a lado.

Obrigada por estarem aqui mais uma vez.

Espero que, ao final, cada um de vocês esteja sorrindo, suspirando e acreditando que para o amor, sempre há uma segunda chance.

Vou deixar aqui a baixo os cronogramas dos capítulos!

1°Dia de estreia: 4 capítulos liberados.

Segunda a sexta: 2 capítulos

Sábado e domingo: Folguinha da autora para adiantar os capítulos da semana, rs!

OBS: Como a estreia aconteceu hoje [sexta-feira], essa semana SOMENTE, irei disponibilizar 1 capítulo no sábado e 1 no domingo e depois, programação normal.

Boa leitura a todos!

Com carinho,

Débora ❤️

■1 ANO E MEIO ANTES■

■ANÍBAL■

O sol alaranjado contrastava o horizonte. As nuvens são pinceladas suaves no céu. Um avião monomotor corta o espaço com elegância. Dentro dele, Aníbal, 33 anos, confiante, sorrindo, com os olhos no painel de controle. Ao seu lado, Hellen, sua noiva, 29 anos.

Hellen: Estamos chegando? — grita por causa do motor.

Aníbal: Quase, depois dessas montanhas. — grita de volta.

Hellen: Você vai adorar a surpresa que eu te preparei!

Aníbal: Tenho certeza que vou!

Ela estende a mão e acaricia o rosto dele com ternura, amor. Uma cumplicidade silenciosa. Mas, num piscar de olhos, a tranquilidade se desfaz.

Alarme estridente e luzes vermelhas no painel.

Aníbal: Droga… Isso não...

O avião começa a tremer. Helen se agarra à lateral, o sorriso se desfazendo. O motor engasga. Aníbal força os comandos.

Hellen: O que tá acontecendo?!

Aníbal: Eu vou resolver! Fica calma!

Mas o controle escapa. O avião gira no ar. Uma asa se parte com um estrondo. A paisagem gira vertiginosamente ao redor deles. Gritos. Barulho de metal se partindo. Depois…

■ATUALMENTE■

CASA DE ANÍBAL

Aníbal abre os olhos, ofegante. Suor escorre pela testa. A respiração é pesada.

Aníbal: HELLEN? — grita.

NÃO, NÃO, NÃO! — soca as pernas ainda deitado.

■JANAINA E ANTÔNIO■

Ainda ofegante, Aníbal tenta se acalmar. Mas seu grito ecoou alto pela casa. A porta do quarto sJana a suaom pressa. Entra Jana a sua mãe, com uma expressão de angústia. Logo atrás, Antônio, seu pai, mais contido, mas igualmente preocupado.

Jana: Filho! Pesadelos de novo?

Meu Deus, você tá bem?

Ela se aproxima da cama, tentando tocá-lo. Ele vira o rosto, evita o contato.

Aníbal: Eu tô bem.

Já falei que não precisam vir toda vez.

Antônio: Você gritou no meio da madrugada, Aníbal. É claro que a gente veio.

Jana: Você sonhou com o acidente, não foi?

Silêncio. Ele aperta os olhos com força. A mandíbula trincada. Um nó preso na garganta. Jana segura sua mão com cuidado.

Aníbal: Eu matei ela!

Jana tenta conter as lágrimas. Antônio olha a cena, engolindo a própria dor.

Jana: Não foi sua culpa, filho!

Antônio: Um ano e meio, Aníbal. Você precisa tentar seguir… nem que seja um passo por dia.

Aníbal: Seguir? Com isso? — bate nas pernas imóveis com as mãos.

Vocês acham que é só levantar e esquecer?!

Jana se encolhe com o tom dele. Antônio se aproxima com firmeza.

Antônio: Não. Mas acha que ficar se afogando nesse quarto vai trazer a Hellen de volta?

Silêncio pesado. Jana olha Antônio, surpresa com a frieza. Aníbal vira o rosto.

Aníbal: Podem sair. Eu só quero ficar sozinho.

Relutante, Jana se levanta. Antônio segura sua mão. Eles saem devagar, fechando a porta. Sozinho novamente, Aníbal encara o teto.

Aníbal: Por que? Por que justo você? Por que tínhamos que sair naquele dia?

CASA DE APRIL

■APRIL■

■KALLY■

Silêncio na casa modesta, levemente iluminada por uma luz noturna azulada no corredor. Um choro suave começa a ecoar, vindo do berço no canto do quarto. April, 29 anos, exausta, mas ainda com doçura no olhar, desperta de seu sono leve.

Ela se senta lentamente na cama, passa a mão pelo rosto, os cabelos bagunçados. Veste um roupão e caminha até o berço da sua filha, Kally, 7 meses, se contorce em lágrimas, com as mãozinhas no ar.

April: Shhh, a mamãe já tá aqui, minha flor… já tá aqui…

Ela pega a bebê com cuidado, senta na beirada da cama. A bebê ainda chora baixinho, buscando o peito. April ajeita a roupa e começa a amamentá-la. Kally vai se acalmando aos poucos.

O relógio marca 3h27 da manhã. Na mesinha ao lado, frascos de vitaminas, fraldas e um bilhete rabiscado com lembretes do dia seguinte.

April: Você tá faminta, em! — Sussurra.

Eu te amo muito, minha florzinha!

Kally suga com calma, os olhinhos ainda úmidos fechando devagar. April observa a filha, os olhos cansados, mas repletos de ternura. Uma lágrima escapa. Ela suspira, pensativa.

April: Quem precisa de príncipe encantado quando se tem um amor assim, né?

Ela sorri triste. Ouvimos um trovão ao longe. A chuva começa a cair fina do lado de fora. April se levanta devagar com Kally já adormecida nos braços, e a coloca no berço com delicadeza.

Ela então caminha com cuidado até o quarto de sua mãe, Marisa, que dormia profundamente, como uma criança. Ela saiu devagar e foi até cozinha tomar um copo de água, escutando a chuva caindo de leve lá fora. Depois se deita novamente, abraçando um travesseiro.

...●...

■MARISA■

O relógio bate as 6h em ponto, April levanta ainda meio sonolenta, Kally seguia dormindo profundamente abraçada ao ursinho de pelúcia.

April vai até a cafeteira começar a preparar o café. Em seguida volta pro quarto pra se arrumar. Ela põe o uniforme, faz um coque alto, coloca os sapatos e volta pra cozinha. Ela se senta na mesa e toma o café tranquila, até que uma figura aparece no corredor.

April: Eu te acordei, mamãe?

Marisa: Quem é você?

April: Sou eu, mãe... a sua filha, sua April, não tá se lembrando de mim?

Marisa: Cadê a minha mãe?

April: Mãe, a vovó faleceu a muitos anos atrás, não lembra?

A campainha toca.

April se levanta para abrir, era a babá. Clara, era uma adolescente de 17 anos, de estatura média, pele morena clara e cabelos castanhos sempre presos em um rabo de cavalo. Os olhos, também castanhos, transmitiam calma e doçura. Tinha uma voz suave e uma postura tranquila, que refletia a paciência incomum para alguém da sua idade. Mesmo nos momentos mais desafiadores com Kally, ela mantinha a serenidade, lidando com tudo com um sorriso gentil e firmeza delicada.

Clara: Bom dia, April!

April: Oi, Clarinha, bom dia!

A Kally ainda tá dormindo, eu deixei as vitaminas dela na mesinha de sempre. E ela tá meio gripadinha então tem fazer a lavagem com soro.

Clara: Pode deixar.

Bom dia, Dona Marisa!

Marisa: Você não me é estranha!

Clara: Eu sou a babá da sua neta!

Marisa: Eu tenho uma neta?!

April: Sim, mamãe, a Kally, a minha filha.

Marisa: Eu posso conhecê-la?

April: Clara, você pode levar ela até o quarto?

Clara: Claro, vamos Dona Marisa!

Marisa: Onde eu tô? — perguntou enquanto era levada por Clara.

Clara: Essa é a casa da April, a senhora veio morar com ela... — Contou enquanto a levava.

Susana era a enfermeira responsável pelos cuidados de Marisa e tinha por volta dos 30 anos. Era uma mulher de aparência serena, pele clara, cabelos lisos e pretos cortados na altura dos ombros, sempre bem penteados sob a touca hospitalar. Tinha olhos verdes atentos, um olhar firme e uma postura discreta, mas segura.

April: Bom dia, Susana.

Susana: Olá, April!

Onde está minha paciente preferida?

April: No meu quarto, foi "conhecer" a neta...

Susana eu tô preocupada, ela está indo de mal a pior.

Susana: Infelizmente, April...

O Alzheimer não tem cura, não temos o que fazer.

April: Eu... eu tento ser forte, tento não chorar mas não sei até quando vou suportar.

Susana: Estamos juntas nisso, pra mim a sua mãe é mais que uma paciente, tenho um carinho muito grande por ela e claro por você também.

April: Eu sei, Susana!

Eu sei! — A abraça.

2

CASA DE ANÍBAL

A luz da manhã entra pela janela da cozinha. Aníbal está sentado à mesa, os olhos baixos, empurrando o pão com manteiga no prato. Ao seu lado, uma xícara de café já fria. A cadeira de rodas posicionada na mesa já é parte do cenário.

Jana está de avental, terminando de lavar a louça. Ela observa o filho. O silêncio entre eles é denso, incômodo.

Jana: Você não dormiu de novo… quer que eu faça aquele chá que te acalma?

Aníbal: Não. — responde friamente.

Jana seca as mãos e se senta de frente para ele. Por um instante, apenas observa o filho. Ele evita o olhar dela, mastigando sem vontade.

Jana: Eu liguei pra um médico ontem.

Aníbal revira os olhos lentamente, mas não diz nada.

Jana: É uma clínica especializada em reabilitação neuromuscular. Uma abordagem diferente.

Aníbal: Eles não têm mágica, mãe. Nem milagres. Minhas pernas não vão voltar.

Jana: Mas a sua esperança pode. E isso já é meio caminho.

Aníbal: Esperança não me ajuda a levantar da cama. Nem a tirar a culpa de cima de mim. — responde irônico.

Jana: Você não matou a Hellen.

Ele a encara com frieza. A tensão explode em silêncio por alguns segundos.

Aníbal: Você não viu o olhar da mãe dela. Eu vejo aquele olhar toda noite. Todo santo dia. Lembro dela me encarando naquela cama de hospital. depois de descobrir que a filha estava morta e mas, o que ela me disse depois... — chora.

■1 ANO E MEIO ANTES■

O quarto era silencioso, exceto pelo bip contínuo do monitor cardíaco. A janela estava entreaberta, deixando o cheiro de antisséptico se misturar com o ar frio da manhã.

Aníbal estava imóvel na cama, com tubos no nariz, marcas no rosto, o braço enfaixado e o corpo preso por faixas ao colchão. Ainda não tinha consciência plena da gravidade do seu estado.

Ele mal piscava. O olhar fixo no teto parecia ausente, como se os pensamentos estivessem presos a uma imagem que se repetia sem parar: o som do motor falhando, o grito de Hellen, a queda… e depois, o silêncio.

A porta abriu devagar. Passos firmes entraram no quarto.

■LEONOR■

Leonor: Assassino! — Gritou.

A voz cortou o ar como uma faca afiada.

Aníbal virou o rosto devagar. O impacto daquelas palavras foi como uma pancada no peito já ferido.

Ali estava Leonor, a mãe de Hellen, a mulher que o via como um segundo filho agora estava ali de frente pra ele o chamando de “Assassino”, com o rosto devastado, os olhos vermelhos de tanto chorar e um ódio que transbordava pelas narinas.

Aníbal: Dona Leonor…

Eu... eu sinto tanto. — Volta a chorar lembrando da cena.

Ela deu dois passos à frente, parando ao lado da cama, sem nenhuma pena da fragilidade dele.

Leonor: Sentir? Você sente? Você tirou minha filha de mim! Você a matou!

Aníbal tentou se erguer, mas o corpo não respondeu. O coração disparou.

Aníbal: O avião... Eu tentei salvar… eu não...

Leonor: Ela estava grávida, seu desgraçado!

O silêncio explodiu dentro do quarto.

Aníbal arregalou os olhos. A respiração falhou.

Aníbal: O quê?

Leonor: Grávida de quase três meses… E você destruiu TUDO!

As palavras entraram em sua mente como estilhaços. A imagem de Hellen voltou com força total. A risada dela, o vestido leve, a forma como segurava o estômago nos últimos dias…

Aníbal: Não… não... — sussurrou ele, as lágrimas começando a brotar, impotentes.

Leonor se aproximou até ficar bem perto do seu rosto.

Aníbal: Você não só matou minha filha. Matou o meu neto também. E quer saber o pior? Deus te puniu… porque agora você está aí. Sem andar. Sem sair da cama. Como um homem morto em vida.

E vai continuar assim ETERNAMENTE.

E então saiu, sem olhar para trás.

Aníbal ficou ali, sozinho, com o rosto coberto pelas lágrimas que não conseguiu conter. O quarto voltou ao silêncio, mas agora havia um peso novo, insuportável.

Ele não havia perdido apenas Hellen. Havia perdido um filho.

E a última coisa que ela teria lhe dito… teria sido uma vida.

■ATUALMENTE■

Jana engole o choro.

Aníbal: Eu matei o meu filho! Eu sou um monstro, e esse é o meu castigo.

Jana: Filho... a culpa não foi sua, você fez de tudo pra salvá-la...

Aníbal: Mas eu falhei, era melhor eu ter morrido.

Jana: Filho, eu sei que de onde a Hellen estiver, ela te deseja o melhor e sei que ela ficaria mal em saber que você não aceita uma ajuda que pode ser benéfica pra você.

Talvez… se você tentasse outra opinião… só uma vez. Se não der em nada, eu juro que nunca mais insisto.

Aníbal: Você não vai parar de me encher enquanto eu não for, né?

Ela nega com a cabeça.

Aníbal joga o guardanapo no prato, ainda irritado, mas vencido.

Aníbal: Tá bom. Eu vou. Só pra provar pra você que isso não serve pra nada.

Ela levanta e o beija na testa, com carinho materno.

Jana: Obrigada, meu filho. Você vai ver… pode ser o começo de algo bom.

Ela se afasta, e Aníbal a observa. Por trás da expressão fechada, um traço quase imperceptível de dúvida ou talvez… de esperança.

NA CLÍNICA DO DR. DOUGLAS

April, de jaleco branco bordado "April Guerra - Fisioterapeuta" cabelo preso em um coque apressado, caminhava pelo corredor da Clínica. Ela carrega uma prancheta, e seu rosto, apesar do cansaço, exala segurança e serenidade.

Ela entra numa ampla sala com equipamentos modernos de reabilitação. Barras paralelas, bicicletas ergométricas adaptadas, bolas de fisioterapia, esteiras com sistema de sustentação corporal e muitos outros.

Paciente 1 – Armando L. da Silva

Idade: 60 anos

Diagnóstico: Acidente Vascular Cerebral (AVC) recente

Objetivo terapêutico: Reeducação da marcha com apoio; melhora do equilíbrio e coordenação motora.

April se aproximou com um sorriso sereno. O senhor Armando, um homem de 60 anos com um ar orgulhoso e teimoso, já estava de pé entre as barras paralelas.

April: Bom dia, seu Armando. Dormiu bem?

Armando: Dormir eu dormi… levantar é que ainda não tá tão fácil. — sorriu ao vê-la entrando na sala.

Ela riu com ele, posicionando-se ao lado e ajustando levemente seu cotovelo.

April: Um passo de cada vez, lembra?

Ele respirou fundo e começou, os passos vacilantes, mas determinados. April acompanhava cada movimento com o olhar atento.

Armando: Vai anotando aí, doutora. Quando eu voltar a andar, vou dar uma volta de bicicleta lá em casa, como fazia antes.

April: E o senhor prometeu que vai me ensinar a pedalar, eu vou cobrar essa promessa!

 Armando: E vou ensinar da mesma forma que ensinei aos meus filhos. — caminha com mais segurança.

April: Está indo muito bem, seu Armando!

Ele caminhava com brilho nos olhos.

Paciente 2 – Maria C. P. Oliveira

Idade: 17 anos

Diagnóstico: Paralisia parcial por lesão medular incompleta (nível torácico)

Objetivo terapêutico: Estimulação postural; ativação de memória muscular.

April se agachou diante da jovem de 17 anos, de cabelos presos em tranças e fones de ouvido no pescoço.

April: E aí, Maria… pronta pra desafiar a gravidade?

Maria: Eu tô com medo, April!

E se eu cair?

April: Eu te seguro até o dia em que você mesma nem precise mais de mim.

A adolescente sorriu de lado. April a posicionou na esteira de suporte e ajustou cuidadosamente o colete de sustentação para ajudá-la a ficar em pé. Aos poucos seus pés tocavam o chão.

April: Vamos ativar sua memória muscular. Seu corpo ainda lembra o que é andar. A gente só precisa acordar isso junto.

Maria: Caramba… Eu... eu tô mesmo em pé?

April: Sim... E tá indo muito bem.

O olhar da menina encheu de emoção disfarçada. Pela primeira vez em meses, via o mundo de outro ângulo, literalmente.

Maria: Isso é incrível! Obrigada, April!

Ela sorri ao ver a emoção da menina.

Paciente 3 – Donato D. Moraes

Idade: 42 anos

Diagnóstico: Trauma raquimedular (coluna lombar) com paresia dos membros inferiores

Objetivo terapêutico: Estímulo da musculatura atrofiada; melhora da resposta neuromuscular

Na maca, Donato observava April preparar os eletrodos com desconfiança.

Donato: Você acha mesmo que isso adianta?

April não perdeu o tom calmo e gentil. Ajeitou a posição dos fios com cuidado.

April: Eu acredito em cada nervo, em cada músculo. — Ligou o aparelho. Os pequenos choques estimularam os músculos da perna.

Donato: Ei... eu senti isso. — Fala assustado.

April: Exatamente. Seu corpo ainda responde. Ele só precisa de tempo, paciência… e uma dose diária de fé.

Donato: É... Talvez você esteja certa.

April: Talvez? Eu tô sempre certa. — Brinca.

Aníbal chega na clínica em sua cadeira de rodas, empurrado por sua mãe, que carrega a pasta com exames e relatórios médicos. O ambiente é claro, moderno e acolhedor. Ele está visivelmente incomodado, tenso, com os braços cruzados e o olhar duro.

Jana: Olha só… não parece nem um hospital. Parece até um hotel.

Aníbal: Faltou só o champanhe pra acompanhar. — Diz irônico.

Um funcionário os acompanha até a sala de avaliação, onde o Dr. Douglas, dono da clínica, os aguarda com uma prancheta nas mãos e um semblante sereno. Ele cumprimenta os dois com simpatia e profissionalismo. Aníbal entra sozinho.

Dr. Douglas: Sr. Aníbal, vamos conversar um pouco, tudo bem? Não se preocupe com exames por enquanto. Quero ouvir você.

Ele cruza os braços, tenso.

Aníbal: Minha coluna está rompida. Já fui nos melhores especialistas, já ouvi de tudo. Só tô aqui pra fazer a vontade da minha mãe.

O Dr. o observa com empatia e paciência.

Dr. Douglas: Diferente dos outros, eu tô aqui pra escutar. Depois, se você quiser, a gente tenta fazer algo diferente.

Enquanto Aníbal é avaliado, Jana, sentada na recepção, resolve andar um pouco. Ela caminha por um corredor amplo, onde as salas têm grandes janelas de vidro que permitem ver as sessões em andamento.

Ela para ao ver uma fisioterapeuta ajudando um menino a andar entre barras paralelas. O menino, ainda cambaleante, dá passos firmes com auxílio de uma cinta e do apoio da profissional. É April, concentrada, encorajando o pequeno com uma firmeza doce.

April: Muito bem, Gabriel! Isso, mais um passo… eu tô com você. Confia no seu corpo. Ele tá acordando.

Jana observa, emocionada, os olhos marejando.

Funcionária da limpeza: A família o trouxe desacreditado. Ele é neuro divergente ou algo assim. Os médicos diziam que ele nunca sequer sentaria sozinho e hoje ele tá aí, dando os primeiros passos.

Ela olha surpresa para a funcionária.

Jana: E essa moça… é quem cuida dele?

Funcionária: Sim, ela é a April Guerra. Uma das melhores que tem aqui. Trabalha aqui à quase 2 anos. Ela quem cuida do Gabriel desde o primeiro dia que ele pisou nessa clínica.

Jana volta a olhar para April, impactada. Pela primeira vez desde o acidente de Aníbal, uma fagulha de esperança acende no seu peito. A imagem de April sorrindo para o paciente toma o centro da tela.

Depois de escutar Aníbal por um bom tempo, Douglas iniciou alguns testes motores e neurais.

O clima é mais silencioso agora, mais tenso. Jana é chamada à sala e se senta discretamente ao lado.

Dr. Douglas: Bom, eu vou ser honesto, baseado nas observações iniciais... O seu caso é complexo, Aníbal.

Aníbal: Tá vendo, eu disse pra você! — Olhou pra mãe.

Dr. Douglas: Mas não é definitivo! — continua.

Eu diria que você tem cerca de 35% de chance de recuperar a marcha com fisioterapia intensiva e tempo.

Aníbal dá uma risada seca, quase irônica. Olha para o chão.

Aníbal: Trinta e cinco não está nem perto de cem.

Jana: Mas também não é zero.

Douglas observa o contraste entre os dois. Jana está visivelmente comovida e determinada. Ela respira fundo, decide arriscar.

Jana: Dr. Douglas, eu vi uma fisioterapeuta trabalhando com um garotinho… a April. Segundo me disseram, ele não tinha chance de andar. Eu quero ela! Quero que que ela fique 100% responsável pela recuperação do meu filho.

Douglas franze o cenho, surpreso. Coloca a prancheta sobre a mesa com calma.

Dr. Douglas: Dona Jana, isso é… incomum. Nossos profissionais seguem escala rotativa, e a April tem outros pacientes. Além disso, é preciso ver se ela tem disponibilidade, e se quer aceitar esse tipo de acompanhamento exclusivo.

Jana: Eu pago o que for preciso!

Só quero dar ao meu filho a maior chance possível.

Ele a encara, avaliando a insistência dela. Depois, respira fundo e acena com a cabeça.

Dr. Douglas: Tudo bem. Vou conversar com ela, mas já deixo uma coisa bem clara entre nós, eu não posso forçar a April a absolutamente nada, a decisão final será dela.

Jana: Concordo.

Aquela manhã havia chegado ao fim, ela se despediu de Gabriel e respirou fundo, tirando as luvas. As suas costas doíam um pouco, mas o coração estava leve. Aquele lugar, para ela, era mais que um trabalho. Era onde ela ajudava pessoas a se reencontrarem consigo mesmas. Ela vai até à pia, lava as mãos, respira fundo e se encosta na parede. Os seus olhos se fecham por um instante. Um suspiro longo escapa. O seu celular vibra. Mensagem de Clara.

📱💬 Clara: Olha quem comeu tudo!

📱💬April: Que lambança maravilhosa!

Já já eu chego aí!

Ela guarda o celular e se levanta pra ir até à sala de Douglas.

Ela dá algumas batidas na porta e coloca o rosto para dentro, feliz e radiante.

April: Doug, eu tô indo almoç...

Aí, perdão! Não sabia que estava com paciente.

Dr. Douglas: April! Estávamos falando de você, entra, vem cá.

April: Boa tarde! — Sorri para Jana e Aníbal.

Jana: Boa tarde, querida!

Aníbal nem sequer a olha nos olhos.

Dr. Douglas: April, esse é o Aníbal Ferreira, o nosso novo paciente e essa é a mãe dele, Dona Janaina.

April: É um prazer conhecê-los. — Sorri.

Jana: Senhorita, April... Eu vou direto ao ponto, não gosto de rodeios, eu vi a forma que você trabalhou com aquele garotinho e ali senti um aperto bom no meu coração.

Não sei, a forma que você faz o seu trabalho... me transmitiu um alívio enorme na alma.

April: Obrigada, fico feliz com isso!

Jana: April... Eu gostaria que você fosse a Fisioterapeuta particular do meu filho e trabalhasse única e exclusivamente para a recuperação dele.

April arregala os olhos, surpresa, mas mantém a postura.

April: Eu?!

Jana: Sim, querida! Quando vi você e vi como foi a evolução daquele garotinho, meu mundo se encheu de esperança.

April: Eu agradeço muito, senhora. Mas exclusividade não é muito comum. E eu tenho outros pacientes, não posso deixá-los na mão.

Jana: Querida... — Ela se levanta e segura na sua mão.

Eu te imploro.

Aníbal: Mãe, implorar é para os fracos, com certeza tem outras fisioterapeutas mais experientes que ela aqui!

Jana: Mais eu quero ela!

Eu vou te pagar o triplo do que ganha aqui!

April: Eu... Eu posso pensar com calma?

Jana: Claro! Olha... esse é número de telefone da minha casa, pode ligar a hora que for.

April: Eu prometo pensar com carinho, senhora.

Jana: Obrigada, querida!

Tenha um ótimo dia!

April: Vocês também!

Jana puxa a cadeira de Aníbal e vai embora com ele.

Dr. Douglas: April... Eu aceitaria a oferta!

April: Doug, mas é os meus pacientes?

Dr. Douglas: Nós podemos passá-los para outros profissionais, temos muitos.

Mas no caso do Aníbal, a mãe dele quer você!

April: Eu não sei!

Dr. Douglas: Pensa, você precisa desse dinheiro, precisa manter a casa, os medicamentos e as consultas da sua mãe e as coisas da sua filha! Ela tá crescendo e você sabe mais do que eu que uma criança custa muita caro!

Só eu sei quantas vezes você deixou de alimentar para colocar as coisas em casa pra sua mãe e sua filha.

April: Esse dinheiro cairia bem pra mim! Eu poderia comprar medicamentos melhores pra minha mãe!

Mas... também não quero te deixar na mão.

Dr. Douglas: April, pensa em você, não em mim!

E mais, mesmo você sendo a Fisioterapeuta particular dele, ele é registrado como paciente aqui da clínica!

Vou te mostrar o histórico clínico dele, se quiser pensar.

April: Eu aceito ver a ficha.

Se eu acreditar que posso fazer alguma diferença… então aceito o desafio.

Douglas faz um leve sorriso de aprovação. Fecha a pasta sobre a mesa e entrega a ela.

Dr. Douglas: É assim que se fala!

April: Nossa! Lesão medular grave!

Tenho que ativar as células neuromusculares e aí ele teria que passar por uma cirurgia, tudo isso em um pequeno período de tempo!

Dr. Douglas: Tá vendo, você já sabe perfeitamente o que deve fazer.

E aí? Vai aceitar o desafio?

April: Sabe que eu adoro um desafio! — Pega o celular e disca o número do telefone da casa de Jana.

📱Empregada: Casa da família Ferreira!

📱April: Boa tarde, eu sou a April Guerra, sou fisioterapeuta! A senhora Janaina me passou o contato.

📱Empregada: Ela não está, ainda não chegou.

📱April: Imaginei, poderia por favor falar que eu ligarei novamente, umas 19h?

📱Empregada: Claro, como a senhora disse que se chama?

📱April: April! Sou April Guerra.

📱Empregada: Certo, eu passo o recado.

📱April: Obrigada! — Desliga.

Dr. Douglas: É assim que se fala!

Seus pacientes vou repartir entre os outros profissionais, mas não se preocupe, depois que você terminar o seu serviço com o Aníbal, você pega elas de volta.

Jana: O quê você achou da fisioterapeuta?

Aníbal: Normal...

Jana: Muito bonita, né?

Aníbal: Achei ela meio sem sal, não sei, antipática.

Jana: Antipático é você, viu que sorriso lindo ela tem e que serenidade no olhar!

Você tinha que ter visto ela trabalhando com o garotinho, era lindo de se ver.

Tomara que ela aceite a proposta que eu fiz!

Aníbal: Não sei não, ela não parecia nem um pouco segura.

Jana: Você é um pessimista, Aníbal!

CASA DE APRIL

April: Oi, minha princesa! — Abre a porta de casa!

Kally gargalha ao ver a mãe na entrada e engatinha até ela.

April: Vem com a mamãe, minha princesa! — A pega no colo e a beija.

E o meu beijo? Cadê?

Kally baba seu rosto, como se a estivesse beijando.

Clara: Oi, April! Ia dar banho nela agora.

April: Pode deixar, eu dou banho nela hoje.

E a Susana?

Clara: Foi levar sua mãe pra dar uma volta e aproveitar o sol.

April: Que bom, faz bem pra ela!

Clara: A gente almoçou já tem um tempinho, então a comida já deve tá fria, quer que eu esquente pra você?

April: Se você puder, eu te agradeço muito, Clarinha!

Clara: Imagina! Vou lá pra você.

April: Obrigada, Clara!

E você, mocinha, pro chuveiro!

Você tá com cheiro de feijão batido com ovos.

CASA DE ANÍBAL

Aníbal é levado pra dentro da casa com a ajuda de Tiago, o motorista da família.

Jana: Obrigada, Tiago.

Tiago: Por nada, senhora. — Se retira.

Ofélia: Dona Janaina, a Fisioterapeuta ligou.

Jana: A April?

Ofélia: Sim, ela disse que retornaria a ligação às 19h.

Jana: Se ela vai retornar é porque, pretende aceitar!

Aníbal bufa e revira os olhos.

3

O relógio batia 18h57, e Jana já estava ali, colada ao telefone, esperando a ligação de April.

Aníbal: Isso é ridículo!

Antônio: O quê está fazendo?

Jana: Esperando a ligação da fisioterapeuta.

Antônio: Fisioterapeuta? — Olhou pra Aníbal.

Aníbal: Eu só aceitei pra provar pra ela que isso não vai funcionar.

Jana: Xiiii, fiquem quietos! Já está quase dando 19h!

Aníbal: Como eu estava dizendo, isso é uma perda de dinheiro.

Aquela mulher, seja lá como se chama, parece jovenzinha demais.

Jana: Algo me diz que você vai engolir as suas palavras.

O telefone toca.

Jana: Xi, fiquem quietos!

📱Jana: Alô!? — Antônio correu pra perto do telefone pra escutar a conversa.

📱April: Olá, Dona Janaina, sou eu a April!

📱Jana: Olá, querida! Estava esperando pela sua ligação.

📱April: Liguei pra avisar que começamos amanhã de manhã. Quero observar a movimentação dele, os reflexos, e preparar um plano de trabalho.

📱Jana: Perfeito, a que horas?

📱April: 8h30 é um bom horário?

📱Jana: Sim, está ótimo.

Vou te passar o endereço, tem onde anotar?

📱April: Sim, pode falar!

📱Jana: ************

📱April: Perfeito, as 8h30 eu tô na porta da sua casa.

📱Jana: Obrigada, até amanhã!

📱April: Tchau!

Jana: Ela vem às 8h30.

Antônio: Que voz doce a dessa moça.

Aníbal: Isso é uma idiotice. — Sai da sala.

CASA DA APRIL

April: Algo me diz que eu vou entrar na toca do lobo.

Clara: April, a pequena mamou direitinho, chorou um pouco, mas já está mais calma. Tá no quarto com a sua mãe e a Susana.

April: Obrigada, Clarinha! Já pode ir se quiser.

Clara: Até amanhã!

April: Tchau. Vai com Deus.

Susana: April, sua mãe tá brincando com a Kally!

Tem que ver a cena é de aquecer o coração!

April: Imagino!

Susana: April, a tarde enquanto a sua mãe estava dormindo eu aproveitei pra fazer mais algumas pesquisas sobre o Alzheimer e descobri que estão fazendo um tratamento experimental na Europa.

April: Você diz como se a Europa fosse logo Alô na esquina, Susana! — Responde ironicamente.

Susana: Eu sei que não é, mas pensa!

Se esse tratamento funcionar lá fora, em breve ele chega aqui, podemos ter esperanças.

April: Susana, vamos ser honestas, se for o caso de funcionar, demoraria anos para chegar aqui e se chegar, custaria milhões e eu não tenho como pagar esse valor. — Suspirou.

Eu vou lá ver a minha mãe, até amanhã, Susi!

Susana: Até amanhã, mais tenha fé!

Vai dar tudo certo!

April: Vai! Se Deus quiser, vai!

Depois de liberar a Clara e Susana, April ficou sozinha com as duas: sua bebê e sua mãe. Duas gerações que dependiam dela e que, de formas diferentes, ela amava mais do que qualquer coisa.

Kally estava no tapete do quarto da avó saculejando os brinquedos,

Marisa estava de pé, mexendo em roupas antigas, com o olhar perdido. Ela se assusta ao ver April ali, em pé na porta.

Marisa: Quem é você? O que está fazendo aqui?

April sentiu o coração apertar. Respirou fundo.

April: Sou eu, mãe… sua filha, April.

A mulher a olhou com desconfiança, depois sorriu, e agiu como se dissesse algo bonito a uma estranha.

Marisa: Você tem os olhos da minha filha. Ela é bonita… Tão doce.

Como é o nome dela? — Se perguntou.

April apenas sorriu, com os olhos marejados. Colocou a mãe na cama e pegou a filha no colo. contou uma história que nenhuma das duas ouviram até o fim e foi para o quarto com a filha nos braços. Sentou-se na cama e a colocou no berço, ela se apoiou no mesmo e chorou em silêncio, como fazia quase todas as noites. Cansada. Triste. Mas resistindo.

April: Por que? — Sussurrou.

Por que eu tenho que passar por isso?

Por que a minha mãe? Por que? — Olha através da janela.

Em que momento ela começou a me esquecer?

...■Flashback ON■...

A luz amarela do fim de tarde entrava pela janela, aquecendo a cozinha pequena e simples, mas cheia de vida. Uma panela borbulhava no fogão, espalhando cheiro de manjericão fresco pelo ar.

April, chega do estágio com o jaleco nos braços, tira os sapatos perto da porta. Estava cansada, mas sorria ao ouvir a música suave que vinha do radinho velho no canto da pia.

April: Mãe, você tá ouvindo essa músicade novo?

Marisa: Essa música é pra dias bons. E hoje eu acordei feliz.

April foi até ela e a abraçou pelas costas, apertando os olhos, como quem queria guardar aquele momento numa caixinha.

April: Obrigada por estar comigo todos os dias!

Marisa pousou a colher e se virou para encará-la. Os cabelos presos num coque malfeito, os olhos brilhando.

Marisa: Sorte a minha, filha. Eu olho pra você e vejo um mundo que eu nunca tive. Uma mulher forte, que vai curar tanta gente por aí.

April desviou o olhar, meio encabulada.

April: Às vezes eu acho que não vou dar conta. Tem paciente que me olha como se não acreditasse em nada…

Marisa: Você só precisa fazer o que sempre fez: dar o seu melhor, mesmo quando ninguém tá olhando. E lembrar que, pra quem sente dor, um gesto de carinho cura mais do que remédio.

Elas se abraçaram ali mesmo, cheirando a tempero, a caderno velho, a casa.

April: Me promete que vai estar aqui quando eu me formar?

Marisa: Eu vou estar em cada aplauso, em cada lágrima, em cada canto do seu coração. Sempre.

O seu pai já não está aqui conosco em vida, mas está em nossos corações.

April: Você tem razão! Sempre que vou atender algum paciente e estou com medo, eu sinto um alívio e sei que é ele que está comigo.

A música no rádio aumentava levemente, e as duas começaram a dançar, ali mesmo na cozinha, como se o mundo não existisse fora dali.

...■FLASHBACK OFF■...

April: Filha... se um dia eu esquecer quem é você... você me lembra em! — Sorriu, vendo a pequena Kally respirar profundamente enquanto dormia.

...■...

O sol ainda era tímido quando April fechou a porta de casa, vestida com uma calça jeans escura, blusa branca e o jaleco dobrado em mãos. Antes de sair beijou a testa de Kally, ainda dormindo no berço, e deixou um bilhete para a babá, que chegaria dali a pouco. Em seguida, cumprimentou Susana, que cuidaria de Kally até Clara chegar e se despediu da sua mãe.

No caminho até o ponto de ônibus, guardou o papel com o endereço no bolso da frente da mochila.

Dois ônibus e quarenta minutos depois, ela chegou ao bairro nobre onde ficava a casa. Uma fachada elegante, portão de ferro, um jardim bem cuidado.

Ela apertou a campainha. Segundos depois, um segurança apareceu e anunciou sua chegada a Jana. Ela apareceu com um sorriso gentil, vestida de forma elegante.

CASA DE ANÍBAL

Jana: Bom dia, April! Fico feliz que tenha aceitado a minha proposta.

Entra, por favor.

April: Bom dia, senhora!

Com sua licença...

April entrou, observando o ambiente ao redor com discrição. A casa era silenciosa, mas aconchegante.

Jana a conduziu até uma sala com grandes janelas que davam para o jardim dos fundos. Ofereceu café, que April recusou educadamente.

Jana: Sente-se, querida.

O Aníbal ainda está no quarto. Mas achei que seria bom a gente conversar um pouco antes… sobre ele.

April: Acho importante. Principalmente por quê não costumo trabalhar em domicílio.

Jana hesitou, depois falou com voz mais baixa, como quem carrega peso demais.

Jana: Ele era… cheio de planos. Teimoso, sim, mas generoso. Depois do acidente… ele se perdeu. Se trancou nesse mundo de revolta e autopiedade. E... perdeu também a noiva. Eles iam se casar na semana seguinte.

April: Luto e dor são difíceis de superar... Mas a recuperação exige disposição. Ele tem alguma?

Jana: Nenhuma. Ele vai te provocar. Vai tentar te afastar. Mas não desiste fácil. Por favor.

April manteve os olhos nos dela, sem piscar.

April: Eu não fujo de paciente difícil, dona Jana. Mas eu não faço milagres. Só trabalho com quem quer caminhar comigo. E se ele não quiser, infelizmente eu não posso forçá-lo a nada.

Jana sorriu, emocionada, como se enxergasse pela primeira vez uma fresta de esperança.

Antes que pudesse responder, ouviram um barulho lento e pesado no corredor. A voz grave de Aníbal ecoou da entrada da sala. Puxando a cadeira.

April se levantou e se virou devagar, sem perder a postura. Quando os seus olhos encontraram os dele, sentiu exatamente o que Jana quis dizer com “vai tentar te afastar”. Mas ela não recuou.

April: Bom dia, Aníbal!

Aníbal: Você parece inexperiente demais pra pessoa que vai me levantar dessa cadeira.

April: Vou te provar que você está equivocado.

Você parece ser o tipo de paciente que pensa que perdeu tudo. Vamos ver se está mesmo certo.

April colocou alguns equipamentos básicos no chão e colchonetes. Jana observava de longe, mas logo se retirou, deixando apenas os dois.

Aníbal estava sentado na cadeira de rodas, braços cruzados, expressão entediada. April parou de frente para ele, segurando uma prancheta com anotações.

April: Vamos começar deixando uma coisa clara, Aníbal... meu trabalho não é te agradar. É te preparar físicamente para uma cirurgia complexa. E o que vamos fazer aqui, todos os dias, é trilhar esse caminho. Com ou sem sua boa vontade.

Aníbal: Olha só... determinada. E qual é o plano milagroso, doutora?

April: Milagres não fizeram parte da minha grade curricular acadêmica, embora eu acredite que funcionem.

Mas hoje, vamos usar somente fisiologia, paciência e consistência.

Você tem 35% de chance de voltar a andar. Isso significa que há esperança, mas exige esforço. Muito esforço. E esse esforço começa com uma rotina que vai te parecer inútil no começo.

Aníbal: E é.

April: Não é. Vamos começar com fortalecimento de tronco e membros superiores. Você precisa ter controle total do seu corpo acima da lesão. A cada movimento que recuperar, seu cérebro cria novas conexões.

Depois, passamos para a estimulação dos membros inferiores com eletroestimulação, alongamentos passivos e resistência progressiva. Aos poucos, vamos ensinar o seu corpo a lembrar.

Aníbal: Meu corpo já esqueceu.

Você vai perder tempo.

April: O único que perde tempo aqui é quem desiste antes de tentar.

Depois vem o mais importante: treinos de equilíbrio, marcha suspensa com suporte, barras paralelas. Se o corpo responder... se a medula tiver espaço... a cirurgia pode ser indicada. Mas só se você estiver forte o suficiente para aguentar o pós-operatório.

Aníbal: Isso é inútil.

April puxa um colchonete e o posiciona no chão.

Hoje vamos começar com os exercícios respiratórios e mobilização ativa do tronco. Pode continuar achando tudo inútil enquanto trabalha comigo. Mas vai trabalhar.

Aníbal: Você é bem mandona. — Diz irritado.

April: Obrigada. Levo isso como elogio.

Vamos lá, Aníbal. Sente-se na beirada da cadeira. Hoje começa o primeiro passo de um longo caminho.

Ele hesita... mas se move. Com dificuldade, mas se move. Ela observa sem comemorar. Era só o começo.

Jana mexia no chá quando o marido apareceu na cozinha. Ela estava com semblante esperançoso.

Antônio: Bom dia.

Jana: A fisioterapeuta. A April. Tem algo nela… Ela me lembra Hellen, sabia? Não no rosto. No jeito. Na forma como fala. Ela é doce mais é durona.

Antônio: Isso é bom?

Jana: Ela é determinada. Não se assusta com nada. Aníbal vai odiá-la no começo. Mas… ela pode fazer a diferença.

Antônio: Se ela conseguir quebrar o orgulho dele… talvez consiga mover as pernas também.

Bom, eu não vou me despedir do nosso filho pra não desconcentra-lo.

Aníbal: Feliz agora? — Diz contorcendo o rosto de desconforto.

April: Quase.

Quero a respiração diafragmática. Inspira pelo nariz… segura… solta pela boca. De novo.

Ele bufa. Faz de má vontade.

April: Você pode continuar sendo difícil ou pode me ajudar a te ajudar.

Garanto que se você tiver boa vontade, terminamos mais rápido e você não vê a minha cara pelo resto do dia.

Aníbal: Tem uma opção C?

April: Tem. Cirurgia com risco altíssimo de dar errado porque você não aguentou nem o pré-operatório.

Ele a encara. Os olhos dele têm algo entre ódio e cansaço. Mas respira fundo. E faz de novo.

April: Melhorou. Agora, movimentos laterais de tronco. Para um lado... segura... volta pro centro... outro lado...

Aníbal se inclina com dificuldade. Um gemido escapa. Ela o segura com firmeza, sem pena.

April: Eu estou aqui. Mas você vai ter que se jogar no desconforto.

Aníbal: Você fala como se soubesse o que é perder tudo.

April não responde. Endurece o olhar.

April: Só mais duas repetições.

A sessão continua com alongamentos passivos dos membros inferiores, April manuseando as pernas dele com delicadeza técnica, enquanto explica o porquê de cada movimento. Aníbal desvia o olhar para o teto.

Aníbal: Isso aqui é humilhante.

April: Não. Isso aqui é coragem. Humilhante seria desistir.

Ele engole em seco. Não responde. Depois de quase uma hora, ela anota os dados na prancheta.

April: Por hoje é só.

Amanhã, vamos avançar mais.

Aníbal: Você vai voltar?

April: Todos os dias. Até você se colocar de pé.

Ela se levanta, pega as suas coisas e o coloca de novo na cadeira.

April: Até amanhã, Aníbal!

Jana: Já vai, querida...

April: Sim, dona Jana!

Mas amanhã tem mais.

Não vou forçá-lo tanto, esse processo tem que ser lento ao menos no início.

Jana: E o que achou, Aníbal?

Aníbal: Odiei! — Sai com a cadeira.

Jana: Desculpe por isso!

April: Não se preocupe, eu estou acostumada, isso sempre acontece no início.

Amanhã eu volto no mesmo horário.

Jana: Tá bom, querida.

Eu já avisei o segurança pra deixar você entrar direto.

April: Perfeito, até amanhã, dona Jana!

Jana: Adeus!

CASA DE APRIL

A porta se abre. April entra devagar, sem fazer alvoroço.

Clara: Oi, April! Voltou cedo.

April: Voltei, Clarinha.

E a Kally?

Clara: Tá no berço, vim cortar umas frutinhas pra ela.

April: Perfeito, dá pra ela e depois pode ir. Não tenho mais nenhum trabalho hoje.

Clara: Sério?

April: Sim, vou aproveitar o dia inteiro com a minha pequena e com a minha mãe.

Clara: Eu vou lá cortar as frutas então e vou deixar alguns lanchinho separados pra você dar a ela durante a tarde.

April: Obrigada, meu anjo.

Susana: E aí, April?

April: Susi, eu quero sair com a minha mãe a bebê, você pode arrumar ela por favor?

Susana: Ela acabou de tomar banho, eu tava indo justamente pegar o pente lá no banheiro.

April: Eu vou vê-la, rapidinho.

Susana: Claro, vai lá.

Ela entra com cuidado. Marisa está sentada na poltrona, olhando pela janela, perdida.

April: Oi, mãe. Voltei.

Marisa vira-se devagar, o olhar vago.

Marisa: Você é uma das enfermeiras? Pode me trazer um copo d’água?

April congela por um segundo. Engole seco.

April: Sim. Já trago pra senhora.

Ela sai do quarto. Na cozinha, serve a água com mãos trêmulas. Respira fundo, enxuga uma lágrima antes que caia. Volta sorrindo.

April: Aqui está.

Ela pega o copo com delicadeza.

Marisa: Você parece uma moça boa. Tem filhos?

April força um sorriso.

April: Tenho sim. Uma menininha.

Marisa: Então você sabe… o quanto a gente ama. Mesmo quando não lembra mais direito.

April se emociona, fecha os olhos por um instante. Em seguida, se aproxima, beija a testa da mãe.

April: Vamos passear?

Marisa: Eu gosto de sair e comer na rua, aquelas comidas gostosas e bem feitas.

April: Ok, então vamos fazer isso!

Ainda tá cedo pra gente almoçar, mas vamos dar uma volta e depois vamos a onde você quiser.

Susana: Achei o pente!

April: Deixa ela mais linda do que ela já é, Susana.

Susana: Assim vai ser!

NO PARQUE

As árvores balançavam preguiçosas com o vento ameno. O céu estava pintado de rosa e laranja.

April empurrava devagar o carrinho de Kally por uma calçada ladeada por flores. Ao lado, Susana estava de mão dadas a Marisa, que vestia um suéter lilás e um lenço no pescoço.

Kally balbuciava sons doces e dava gritinhos suaves, batendo os pés no ar. April olhava a filha e sorria com ternura, depois voltava os olhos para a mãe, que observava as árvores como se as estivesse vendo pela primeira vez.

April: Olha só, mãe… lembra desse parque? Você me trazia aqui depois da escola, com pão de queijo na bolsa e uma garrafa pet suco de pacotinho.

Marisa não respondeu. Seu olhar estava preso ao horizonte, calmo, mas distante.

Susana: Ela parece mais tranquila quando está na rua. Acho que o vento ajuda… ou talvez seja o cheiro de natureza.

April: Quando ela ficava muito estressada, eu a arrastava pra fora de casa. Ela fingia que odiava, mas voltava sorrindo.

Kally deu um gritinho mais alto, e Marisa se virou.

Marisa: Essa menininha… parece alguém…

April: Parece comigo, mãe.

Ela é a Kally. Sua neta.

Marisa franziu um pouco a testa, como quem tentava escavar lembranças escondidas.

Marisa: Kally…

Seu avô ficaria tão feliz em te conhecer, minha menina bonita.

Ele adorava crianças, queria ter muitos filhos, mas eu tive complicações no parto da sua mãe...

Quase morremos, mas Deus foi tão bom que nos salvou, a sua mãe a mim.

Devido às complicações eu fiquei impossibilitada de dar outros filhos ao seu avô, mas nos não nos importavamos, porque Deus nos deu a sua mãe e ela é a melhor filha do universo e sei que assim como ela foi uma boa filha pra mim, você também será uma boa filha pra ela.

April: Mamãe...

Marisa: Eu te amo, filha! Mesmo que as vezes eu caia no esquecimento e em alguns momentos não me lembre de você, eu te amo.

April: Eu te amo mais! — A abraça por alguns minutos enquanto as lágrimas rolam.

Marisa: Por que você está me abraçando? — Pergunta confusa.

E quem é você?

April: Eu sou a April, estamos caminhando no parque antes de almoçar. — Sorri secando as lágrimas.

Ela assentiu com a cabeça, voltou a dar as mãos pra Susana e continuou observando o parque.

April: Essas palavras...

Eu nunca vou esquecer essas palavras!

Susana: Mesmo que dure pouco… ela se lembra de você e tem consciência de que está doente.

April: Lembrança dela é um milagre pra mim.

Caminharam mais alguns metros.

Susana: Sabe, April… eu não digo isso como sua funcionária, mas como mulher. Você é uma rocha. Cuida da sua mãe, da sua filha, dos pacientes… E ainda sorri.

April abaixou o olhar, com a voz mais baixa.

April: Eu sorrio porque, se eu parar pra chorar, talvez não consiga voltar.

Susana não respondeu, apenas estendeu a mão e a segurou com firmeza por alguns segundos.

April: Mas hoje… hoje eu tô feliz. Só de ver as duas aqui, nesse céu bonito… já valeu tudo.

E naquele instante, com o som dos pássaros ao fundo, Kally deu uma gargalhadinha pura, e Marisa voltou os olhos pra ela outra vez.

April apertou os olhos para não chorar.

Porque mesmo sem palavras, aquilo era amor. E ela sabia reconhecer o amor, mesmo nos fragmentos. Elas chegaram ao restaurante. Era um lugar simples, com mesinhas de madeira, toalhas floridas e cheiro de comida caseira no ar. Um lugar pequeno, quase escondido numa rua calma do bairro. Um daqueles lugares onde os donos sabem o nome dos clientes e o arroz vem sempre fresquinho.

April ajeitou o carrinho de kally ao lado da mesa, enquanto Susana ajudava Marisa. Uma garçonete simpática veio até elas com um sorriso caloroso.

Garçonete: Olá, April! Hoje temos frango assado com quiabo e a farofa que sua mãe sempre pedia. Querem?

April: Pode trazer. E um suco de acerola pra mim. E você, Susana?

Susana: Eu vou querer o mesmo. Por favor.

April se sentou entre a mãe e a filha. Olhou para Marisa, que alisava a toalha como se estivesse sentindo a textura pela primeira vez.

April: Mãe, lembra desse lugar? Você adorava a farofa de banana daqui.

Marisa: Eu gosto de farofa!

April sorriu. Kally balbuciava sons e batia nas bordas do carrinho com as mãozinhas, querendo atenção.

April: Alguém tá com fome também, né, pequena? — Pegou a bolsa dela.

Olha, a Clara preparou um almoço delicioso pra você!

Susana: Quer que eu peça alguém pra esquentar.

April: Pode ser, obrigada.

Enquanto Susana ia até o balcão com o potinho da bebê, April se inclinou sobre a mesa e passou os dedos pela mão da mãe.

April: Hoje foi um bom dia, né? Só nós três… como sempre foi.

Marisa olhou pra ela e, por um breve instante, seus olhos pareceram se fixar. Não disse nada. Apenas sorriu com doçura.

As lágrimas de April quase vieram, mas ela respirou fundo. A vida era assim agora: feita de segundos de pequenas vitórias.

Susana voltou com a comidinha de Kally.

Susana: Você ama aviões, né, baby?

Então olha o aviãozinho.

Kally abriu a boca e comeu com vontade a comida feita por Clara.

April: Quer que eu dou pra ela?

Susana: Não se preocupe, eu amo ajudar a Clara a alimentá-la.

A garçonete chegou com os pratos fumegantes.

Garçonete: Aqui está. E, dona Marisa, o cozinheiro mandou um beijo. Disse que sente falta da senhora rindo alto no balcão.

Marisa: Eu ria alto? — Perguntou com um brilho nos olhos.

April: Ria. E ria muito!

Elas começaram a comer juntas, entre conversas leves, risos suaves e o barulho dos talheres. Por uma hora, não havia doença, nem passado, nem dor. Só havia comida quente, carinho silencioso e quatro mulheres felizes almoçando juntas. No fim, April pagou a conta e foram saindo.

April: Susi, eu vou precisar ir na clínica, quero conversar com o Doug.

Você pode ir pra casa com a minha mãe, eu vou levar a Kally comigo e quando eu voltar você pode ir pra casa. Não tenho mais trabalhos hoje.

Minha dedicação vai ser 100% voltada ao meu novo paciente.

Susana: Certo, te esperamos em casa.

April: Tchau!

April pediu um carro de aplicativo e enquanto esperava, começou a fechar o carrinho da filha. O carro chegou e a ajudou a se acomodar com a neném e o carrinho.

... ■...

NA CLÍNICA

O sol da tarde atravessa as persianas da sala de Doug, criando listras de luz sobre a mesa de madeira clara. April bate na porta. Ele levanta os olhos da papelada.

Doug: Você voltou viva, pelo menos.

Isso já é um sinal.

Oi, Kally! Veio acompanhar sua mãe? — A pegou no colo a abraçou com carinho.

April: Quando ele se aproxima, a energia daquela casa se torna como a de um campo minado. Ele vai ser… um completo desafio.

Ela se joga na cadeira em frente à mesa. Doug sorri com o canto da boca, já imaginando o que viria.

Doug: De 0 a 10, o nível de antipatia?

April: Uns 12.

E olha que estou sendo generosa.

Doug: Foi grosso?

April: Grosso, irônico, amargo… Ele olha pra mim como se eu fosse só mais uma idiota otimista querendo salvar o mundo. Mas…

Doug: Mas?

April: Eu vi nos olhos dele. Ele tá perdido. Ele não acredita mais em nada, nem em si mesmo. É como trabalhar com um homem que já se declarou morto por dentro.

Doug: E mesmo assim, você quer seguir?

April: Eu preciso seguir. Dei a minha palavra a mãe dele. E se tem uma coisa que a vida me ensinou... é que quando alguém está na beira do abismo, o que salva não é pena. É persistência.

Doug: Você vai mudar a vida dele, April.

April: Ou ele vai me enlouquecer.

Doug: Tá vendo, Kally, a sua mãe não confia nela mesma, mas você é eu estamos aqui pra provar a ela que ela está errada.

Kally gargalha.

April: Eu vou tentar. De verdade.

Doug: Então vá. Faça o que você sabe. E se ele tentar derrubar, você se levanta e o ajude a se levantar também. Como sempre fez.

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