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Doce Submissão

Notas da autora!

Se você chegou até aqui, é porque algo dentro de você — uma curiosidade, um desejo ou uma saudade — te trouxe para essa história. Talvez você já me conheça. Talvez essa seja a nossa primeira vez. De qualquer forma, é um prazer imenso te ter aqui.

O meu nome é Nívea Naomi, sou autora de dark romance e praticante ativa do universo BDSM há mais de seis anos.

Escrevo com a pele, com as lembranças e com os impulsos que só quem já viveu na carne sabe descrever. E neste livro, te convido a mergulhar comigo numa experiência intensa, provocante, profunda — e, acima de tudo, consensual.

Essa leitura não será leve. Ela é sombria, explícita, marcada por tensão psicológica, erotismo sujo e dominação emocional. Mas ela também será construída para que você se sinta segura(o), acolhida(o), excitada(o).

 Nada aqui é gratuito — cada cena é pensada com intencionalidade, para explorar o que há de mais instintivo e carnal, sem deixar de lado o cuidado e o respeito.

Para quem não está familiarizado, BDSM é uma sigla que representa práticas eróticas que envolvem Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo. Mas, acima de tudo, o BDSM é um espaço onde confiança, comunicação e consentimento são pilares.

 É sobre entrega mútua e construção de vínculos profundos. É sobre prazer, sim — mas também sobre escuta, segurança e presença. Os praticantes chamam isso de SSC — são, seguro e consensual — ou RACK — risco assumido com consentimento. E é com essa consciência que essa obra foi construída.

Em Doce Submissão, você encontrará fetiches como:

— dominação psicológica

— submissão emocional e física

— controle orgástico

— castigos eróticos

— uso de brinquedos (plug, vibradores, algemas, entre outros)

— ordens, rituais, posições

— sexo anal

— spanking (palmadas)

— aftercare (cuidados pós-sessão)

— dirty talk e praise kink (elogios como estímulo erótico)

— cativeiro simbólico (com caráter sexual e consensual dentro da trama)

Tudo isso será retratado de forma visceral, suja e intensa, dentro da proposta de um dark romance adulto +18. Os personagens são imperfeitos. Os desejos, muitas vezes obscuros. E a linha entre prazer e dor, controle e entrega, será desafiada constantemente.

⚠️ AVISO DE GATILHOS

Esta história contém cenas que podem causar gatilhos emocionais, incluindo:

— cenas de sexo explícito e agressivo

— violência simbólica e física

— dinâmicas de poder desequilibradas (dentro de uma construção erótica)

— linguagem explícita e humilhação consensual

— momentos de tensão, medo e instabilidade emocional

— possessividade extrema e comportamento obsessivo

Se você é sensível a esse tipo de conteúdo, leia com cautela ou escolha outro livro. Não há problema algum em se afastar de algo que não te faz bem. Sua saúde mental e emocional deve vir sempre em primeiro lugar.

🛑 HARD LIMITS (o que NÃO aparece nesta história):

— violência sexual não consensual (abuso real)

— pedofilia ou menores de idade

— romantização de relações abusivas sem consciência narrativa

— apologia ao estupro ou à violência fora do contexto BDSM

Dedicatória

Para você que nunca se sentiu completamente à vontade em romances suaves. Para você que sente a pele arrepiar com ordens sussurradas, olhos dominadores e mãos firmes que sabem exatamente onde tocar. Essa história é um convite para se despir de medos, vestir sua curiosidade mais quente e deixar que as palavras te guiem até onde seu corpo pedir para parar — ou continuar. Aqui, o romance não é cor-de-rosa. É escuro, molhado e pulsante. Tem gemido, tem gozo, tem lágrima... e tem prazer. Muito prazer.

Leia com os dedos apertando os lençóis.

Leia com a mente aberta e o coração vulnerável.

Leia como se fosse você amarrada — ou amarrando.

Leia para se excitar.

E se emocionar.

Porque aqui, minha doce leitora — ou meu leitor curioso —, a entrega não é apenas sexual.

Ela é inteira. E pode muito bem começar... agora.

Com tesão, ternura e admiração,

Nívea Naomi 🖤💋

Fundação de concreto

Nova Iorque, 7h43 da manhã

Dizem que a arquitetura é a arte de dar forma aos sonhos — transformar linhas em abrigo, ideias em espaços, matéria em significado. Sempre acreditei nisso. E, por muito tempo, me agarrei a essa ideia como se ela fosse uma tábua de salvação. Como se construir algo sólido fora de mim fosse suficiente para acalmar as rachaduras internas que, vez ou outra, ameaçam romper a fachada.

Meu nome é Eva Santiago. Tenho vinte e quatro anos, recém-formada em Arquitetura pela Universidade de Columbia, com louvor e sem luxo. Entrei com bolsa integral, permaneci graças a incontáveis madrugadas em claro e saí com calos nas mãos e olheiras permanentes. Enquanto alguns colegas passavam os verões estagiando em escritórios familiares em Paris ou Milão, eu segurava três empregos e ainda dava um jeito de entregar as pranchas de projeto com perfeição quase obsessiva. Acordava cedo demais, dormia tarde demais, comia mal e sonhava alto. E mesmo assim, não foi suficiente para arrancar dos meus pais mais do que um aceno de cabeça e um comentário sem entusiasmo do tipo “era o mínimo, Eva”.

Eles nunca disseram que estavam orgulhosos. Talvez nunca digam. Cresci ouvindo que ser boa não bastava — eu precisava ser impecável. E mesmo quando era, ainda assim não parecia suficiente.

Ser a filha do meio vem com uma maldição silenciosa. Não sou a primogênita, sobre quem recaem as maiores expectativas sociais e o peso das tradições. Tampouco sou o caçula, cercado por permissividades e desculpas prontas. Sou a que fica no intervalo — aquela que deve ser exemplo, equilíbrio, o ponto de apoio quando tudo ao redor ameaça ruir.

Minha irmã mais velha, Camila, é o retrato da mulher perfeita em moldura de vidro. Casou cedo, com um homem influente, bonito, que posa para colunas sociais como se a vida fosse um comercial de perfume. O que ninguém vê são os hematomas invisíveis que ela carrega na alma. O controle, o silêncio, a tensão em cada respiração quando ele está por perto. Ela tenta manter a imagem impecável, porque escândalo é inaceitável para quem pertence a uma “boa família”. Ela sorri nas festas, usa vestidos caros e evita falar demais. Nunca diz que está infeliz, mas eu a conheço bem demais para acreditar em seus silêncios.

Já Mateo, meu irmão mais novo, é o oposto de tudo o que meus pais esperavam. Rebelde, inconstante, com talento para se envolver com as pessoas erradas e aparecer com mais dívidas do que explicações. Tem um coração enorme, que ele tenta esconder sob sarcasmo e tatuagens mal pensadas. Já tentou de tudo — música, gastronomia, criptomoedas, um canal de vídeos sobre teorias da conspiração — e fracassou em todos com igual intensidade. Meus pais dizem que ele é uma decepção. Eu sei que ele só está perdido. Mas não posso salvá-lo.

Assim, entre o casamento de fachada da minha irmã e o caos adolescente prolongado do meu irmão, sobrou para mim o papel da filha que não dá trabalho. A que estuda. A que se comporta. A que sempre diz “sim, senhor” e “obrigada, mãe”. A que aprendeu a apagar a própria dor para não pesar o ambiente. A que só chora no chuveiro.

Mas mesmo dentro desse papel, sempre tive ambição. Desde criança, eu via os prédios da cidade como promessas. Linhas verticais que pareciam me convidar a subir. A ser mais. A construir algo maior do que a história que me foi dada. Por isso, desde os quinze anos, eu sabia que queria ser arquiteta. E não qualquer arquiteta — queria deixar minha marca no mundo. Queria projetar espaços que mudassem vidas.

Durante a faculdade, segui esse propósito como se fosse um mantra. Fui a primeira a chegar e a última a sair do ateliê. Pegava os piores horários de estágio, aceitava tarefas que ninguém queria e ainda revisava os projetos dos outros para ganhar algum dinheiro extra. Fiz maquetes à mão com precisão cirúrgica, estudei cada autor, cada movimento, cada mas, porqueão porque me pediam, mas porque eu precisava ser impecável. Porque talvez, se eu construísse algo perfeito o suficiente, meus pais olhariam para mim da mesma forma que olham para os prêmios na estante do meu cunhado — com orgulho.

A ligação veio numa manhã cinzenta, quando eu estava organizando currículos numa mesa de cozinha emprestada no apartamento minúsculo que divido com duas amigas. Um número desconhecido. Uma voz polida, profissional. Meus dedos tremiam enquanto anotava o endereço e o horário da entrevista.

Mas como nada dura para sempre, a minha paz também não durou, e eu senti isso quando papai avisou que queria todos reunidos durante o café da manhã.

Meu pai estava sentado à cabeceira, com sua expressão de sempre: séria, contida, e ligeiramente entediada com tudo que não envolvesse política ou futebol. Ele só olhava para mim quando alguém mencionava a faculdade — e mesmo assim, seu olhar não passava da superfície, como se estivesse avaliando uma parede recém-pintada: bonita, funcional, mas nada surpreendente.

Camila chegou com o marido, Marco, vinte minutos atrasada, com um vestido de seda azul-marinho que não escondia o quanto ela havia emagrecido nas últimas semanas. Ela carregava um sorriso artificial preso no rosto, como um grampo de cabelo que já não serve, mas você insiste em usar. Marco entrou como sempre entra: falando alto demais, rindo demais, apertando as mãos com força suficiente para marcar território.

Ele me chamou de “a arquiteta da família” e piscou, como se o apelido tivesse algum charme. Eu sorri de volta com todos os dentes e engoli o desconforto. Camila ficou em silêncio. Não tocou na comida.

Mateo apareceu no meio da refeição, esbaforido, com o boné virado para trás e um hematoma roxo no maxilar. Mamãe soltou um suspiro alto, como quem já espera o pior. Papai nem ergueu os olhos.

— O que foi agora? — perguntei, sem conseguir disfarçar a irritação.

— Nada demais, só uma briga besta — respondeu ele, afundando-se na cadeira como um adolescente reprovado. — Com um cara idiota no bar.

— Que bar, Mateo? Você está em condicional, pelo amor de Deus — disse Camila, deixando o garfo cair no prato com um estrondo. Marco imediatamente a olhou, como se ela tivesse cometido um crime por falar mais alto que o aceitável.

— Não foi nada, já falei — ele rebateu. — O cara encostou na Jéssica, eu fui tirar satisfação. A polícia chegou, mas nem me levaram.

Mamãe levou as mãos ao rosto e murmurou uma prece. Papai olhou para o teto, como se a culpa fosse das telhas. Eu senti o nó na garganta apertar.

— Você tem ideia do que poderia ter acontecido? — sussurrei, tentando manter o tom baixo. — Se te pegam, se te levam de novo, não vai ter ninguém pra...

— Chega, Eva — cortou meu pai, sem me encarar. — Já basta.

Foi nesse momento que Marco limpou a garganta e disse, com a naturalidade de quem comenta o tempo:

— A gente podia resolver isso com uma internação. Ou um tratamento intensivo, sei lá. Ele precisa de algo sério.

Camila congelou. A tensão entre os dois era palpável. A taça de vinho dela tremeu levemente na mesa.

— Eu disse que ele está bem — ela afirmou, em voz baixa, mas firme.

— Você diz isso há dois anos, amor.

Ela o fuzilou com os olhos. Mamãe mexia o guardanapo como se fosse uma toalha de altar. Papai continuava imóvel, como se não estivesse ali.

— Eu cuido do meu irmão — Camila declarou. — Do jeito certo.

— O jeito certo não está funcionando.

O silêncio que se seguiu foi tão espesso que dava para cortá-lo com uma colher. Eu me levantei para pegar mais água e fugir por trinta segundos do clima que ameaçava desabar como concreto mal curado. Quando voltei, ninguém falava. Camila estava com os olhos fixos no prato, Marco mexia no celular, e Mateo tamborilava os dedos na mesa, nervoso.

Aquela era a minha família. Um campo minado coberto por porcelanas e bons modos. E eu, como sempre, tentando ser o cimento que mantém tudo de pé.

Foi só no final da refeição, quando os ânimos haviam baixado e mamãe insistia para que levássemos potes de lasanha para casa, que me lembrei de dizer:

— Eu tenho uma entrevista segunda-feira.

Todos pararam por um instante.

— Em um escritório grande. Bem grande.

Meu pai ergueu as sobrancelhas, surpreso, talvez pela primeira vez naquela tarde.

— Grande quanto?

— D'Angelo & Marchand Architects.

Mamãe sorriu, breve, como se quisesse que eu soubesse que, apesar de tudo, estava satisfeita com a notícia.

— Vai com roupa sóbria — ela disse, automática. — Não exagera no perfume.

— Leva currículo impresso — completou meu pai.

Camila me olhou e, por um segundo, seus olhos brilharam.

— Você vai conseguir. Você merece.

Mateo apenas murmurou:

— Que inveja.

E, por um momento, eu deixei que aquilo me aquecesse por dentro. Mesmo que fosse breve. Mesmo que tudo estivesse por um fio, como sempre. Eu me permitiria acreditar que talvez aquele fosse o início de algo diferente.

Gravidade e outros desastres

Azar é uma palavra que me acompanha desde cedo, como uma sombra malcriada que se diverte em me empurrar em direção a situações absurdas. E sabe o que é pior? Faz uma semana que sai da casa dos meus pais para tentar ser independente.

Sim, deixei a mansão, funcionários e dormidas até mais tarde para morar num apartamento simples, num bairro bem duvidoso, onde os vizinhos me olham como se eu fosse um ser de outro mundo e as câmeras 24 horas ficam na porta de casa, sentadas em cadeiras de balanço.

Eu não sou do tipo que tropeça uma vez por mês. Eu tropeço em mim mesma, nas calçadas, em sacolas de papel e, se estiver tudo tranquilo demais, provavelmente derrubo um copo d’água em cima de algum equipamento eletrônico de alto valor.

Por isso, quando acordei naquela manhã de domingo com o despertador me xingando em volume máximo e percebi que tinha esquecido a roupa no varal — e que havia chovido à noite — eu já sabia que algo estava no ar.

Tentei contornar o caos. Botei o tênis velho, amarrei o cabelo em um coque torto e saí para o mercado, convencida de que seria só uma ida rápida para comprar leite, café e papel higiênico. Coisas básicas. Sobrevivência. Mal percebi que estava com uma meia de cada cor até chegar ao caixa.

Até aí, tudo bem. Quer dizer… quase tudo bem. Foi quando a sacola de papel — aquela ecológica, que promete ser resistente e falha no momento mais crucial — decidiu se dissolver na calçada da esquina, bem no meio da rua movimentada, que percebi: era um daqueles dias.

O litro de leite rolou direto para os pés de um desconhecido. O pacote de papel higiênico saiu saltitando pela calçada como se estivesse fugindo de mim. E o pote de café instantâneo se espatifou no chão como se quisesse encenar uma morte dramática.

As pessoas me olhavam como se eu fosse um experimento social mal-sucedido. E ali estava eu, abaixada, tentando resgatar minha dignidade junto com os últimos rolos de papel higiênico, quando ouvi a voz.

Aquela voz.

— Eva Santiago...

Ergui os olhos devagar, já temendo o universo. E CLARO.

Era Lucas.

Meu ex-namorado. O motivo de eu ter bloqueado playlists inteiras. Estava parado ali, com a mesma jaqueta de couro cafona, aquele sorrisinho de quem se acha irresistível, e um café caro na mão.

— Só faltava você —, murmurei, como quem invoca uma praga.

Ele arqueou uma sobrancelha, visivelmente satisfeito com o encontro.

— Pra salvar o seu dia?

Respirei fundo, peguei o último rolo de papel que ainda lutava pela liberdade e me levantei.

— Não. Pra desgraça ficar completa.

Ele soltou uma risada alta demais. Algumas pessoas olharam. Eu quis desaparecer.

— Você sempre foi dramática, Eva.

— E você sempre foi... Você — retruquei, secando a mão na calça. — O que é pior.

Ele me ofereceu o café, como se isso apagasse anos de decepção e sarcasmo passivo-agressivo. Recusei com um olhar.

— Ainda está com aquela banda de rock que só tem três músicas no Spotify? — perguntei, recolhendo o que sobrou da minha tentativa de fazer compras.

— A gente tem cinco agora, e...

— Que ótimo. Mais duas que ninguém pediu.

Ele riu de novo. E por um segundo, apenas um segundo, eu quase ri também. Porque ele sempre teve esse talento irritante: fazer piada no meio do desastre. Talvez por isso eu tenha gostado dele no início. Ou talvez porque, na época, eu ainda acreditava que amar alguém bastava.

— Você continua igual — ele disse, por fim, dando um gole no próprio café. — Feroz, sarcástica, e meio amaldiçoada.

— E você continua com esse ego inflado achando que tudo gira ao seu redor.

— Às vezes gira.

Revirei os olhos, abracei o leite sobrevivente como quem abraça um troféu e comecei a me afastar.

— Foi bom te ver — ele disse atrás de mim.

— Duvido — respondi, sem virar. — Mas obrigada pela parte que me toca.

Voltei para casa com os cabelos bagunçados pelo vento, a sacola improvisada num pedaço de caixa de cereal e a sensação de que, mesmo nos piores dias, eu ainda sabia como manter a língua afiada.

Azar ou não, eu ainda era Eva Santiago. E isso, no fim das contas, me dava uma estranha forma de controle. Mesmo quando tudo o mais estava desmoronando.

Subi os dois lances de escada do prédio antigo com o leite sob o braço, o papel higiênico esmagado contra o peito e a alma pingando sarcasmo. O prédio não tinha elevador, os corredores cheiravam a desinfetante vencido e o aquecedor fazia um barulho que me dava a impressão de estar dividindo apartamento com um trator em crise existencial. Mas ainda assim… era meu.

O apê tinha dois quartos minúsculos, uma sala que mais parecia um corredor ampliado e uma cozinha onde mal cabiam duas pessoas sem dançarem um tango acidental. Ainda assim, havia algo libertador em girar aquela chave, empurrar a porta com o quadril e entrar no meu espaço — mesmo que, naquele momento, ele estivesse cheirando a café queimado e derrota emocional.

Larguei as compras, se é que podiam ser chamadas assim, na bancada da cozinha, respirei fundo e olhei ao redor. A luz da manhã entrava torta pela janela com venezianas quebradas, e uma das plantas que eu tentava desesperadamente manter viva parecia estar escrevendo sua carta de despedida.

Suspirei.

Liberdade vinha com contas, barulho dos vizinhos e a constante dúvida se a torneira da pia estava ou não conspirando contra mim. Ainda assim, não havia ninguém dizendo que cor de cortina eu devia ter. Ninguém me perguntando se já tinha enviado meu currículo para os contatos “certos”. Ninguém medindo meu valor por quantas vezes apareci sorrindo em jantares sociais fingindo ser alguém que eu não era.

Meu celular vibrou. Mensagem da Vanessa.

“Tô levando croissants e café decente. Você merece um pouco de dignidade depois da sua tragédia matinal.”

Sorri. Vanessa tinha o timing emocional de uma santa pagã: sabia exatamente quando aparecer e quando sumir. E sempre trazia carboidratos, o que automaticamente a colocava no topo da minha lista de seres humanos preferidos.

Dez minutos depois, ela bateu na porta com um sorriso largo, óculos escuros exagerados e uma sacola de padaria francesa que custava mais do que meu mês de aluguel dividido por três.

— Então... soube que o universo resolveu dar mais uma rasteira? — ela disse, entrando sem pedir licença, como sempre.

— O universo e o Lucas. Juntos, como uma banda vinda do inferno.

Ela gargalhou, já tirando os croissants da embalagem e colocando o café numa caneca minha com estampa de esquilo que ela odiava.

— E o papel higiênico? —

— Um morreu atropelado. Dois fugiram. Um sobreviveu.

— Você é uma heroína.

— Ou uma piada ambulante.

Nos sentamos no chão da sala, porque o sofá ainda não tinha chegado e a única coisa que separava a gente do piso gelado era um tapete que ganhei da minha irmã. Ainda assim, havia algo poeticamente certo naquele momento: duas amigas, croissants, risadas e uma cidade inteira lá fora, esperando a próxima oportunidade de nos testar.

Vanessa me olhou com mais ternura do que ironia dessa vez.

— Você sabe que fez a coisa certa, né? Sair da casa dos seus pais, buscar o seu espaço...

— Às vezes parece burrice — admiti. — Outras, parece liberdade.

— É os dois. Mas é sua burrice. Sua liberdade. E isso muda tudo.

— Mas por que não está num lugar melhor? Não entendo isso.

— É o que eu pude pagar no momento com minhas economias. Eu não quero depender dos meus pais à vida toda, sabe? Eu não quero ser como os meus irmãos que conquistam as coisas com base no dinheiro dos nossos pais. Quando sai, eu vim em busca da liberdade, e de nunca ouvir um "tudo que você tem hoje, foi construído com o meu dinheiro".

Sorri. Mesmo que meu dia tivesse começado com desastre e ex-namorado, ainda assim, ali estava eu. Com meus erros, meus acertos e meu croissant amanteigado.

Independente. Azarada. Mas firme.

E, no fundo, talvez isso já fosse o início de algo melhor. Mesmo que eu ainda não soubesse o quê.

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