A sala de concertos estava cheia. Era uma noite comum para o público, mas especial para Isadora. Sentada na primeira fileira, ela ajeitava o vestido e os cabelos com nervosismo infantil, sem conseguir ficar parada. A mãe, Clara Fernandes — aclamada pianista, inspiração e porto seguro — estava prestes a subir ao palco. E, naquele dia, tocaria sozinha. Só ela, o piano de cauda e um vestido azul-escuro de cetim sob a luz morna do palco.
O silêncio caiu como uma cortina invisível. Clara caminhou com serenidade, mas quem a conhecia bem — como Isadora — perceberia a leve tensão escondida nos ombros erguidos, no passo um pouco mais contido.
Ela se sentou ao piano com a postura elegante de sempre, ajeitou o banco, passou os dedos pelas teclas sem pressionar, e antes de tocar, olhou diretamente para a filha.
Sorriu.
Um sorriso silencioso, íntimo, que parecia dizer tudo:
“Você está ouvindo? Essa é nossa.”
As primeiras notas fluíram delicadamente, como uma conversa entre almas.
O piano cantava, hesitava, voltava a respirar. Era uma peça autoral — melancólica, doce, cheia de passagens silenciosas e pausas que diziam mais do que muitas palavras.
Isadora sentiu o peito se aquecer. Era como se, naquele momento, só existissem ela e a mãe no mundo.
Mas então… algo mudou.
Pouco antes da metade da peça, Clara vacilou. Sua mão esquerda hesitou. O acorde seguinte saiu dissonante, quase desafinado. Ela parou. Respirou fundo. Levou a mão ao peito, como quem sente algo rasgando por dentro. Os olhos se apertaram com uma dor que parecia indescritível.
O público achou que fosse parte da interpretação. Alguns riram, surpresos, mas Isadora soube.
Clara tentou continuar.
Ainda tocou mais três acordes com a mão direita, teimando em seguir adiante.
O som ficou trêmulo. As notas, frágeis, pareciam implorar por ajuda.
E então, com um soluço preso na garganta, ela tombou sobre as teclas.
O corpo caiu como em câmera lenta.
O último som foi um acorde grave, acidental, arranhado e triste — como um lamento final.
Um grito veio da plateia. Gente correndo.
Mas Isadora não conseguia se mover.
Os olhos dela estavam fixos na mãe caída — metade sobre o piano, metade sobre o chão. O vestido azul-escuro agora se confundia com a escuridão do palco.
A luz, suave e dourada, continuava acesa.
Mas ali, naquele instante, a música parou.
E com ela, tudo dentro de Isadora também.
O som da sirene ecoou no teatro minutos depois, mas para Isadora, tudo já havia se calado por dentro. Ela não chorou naquele instante. Ficou imóvel, como uma pintura. Os olhos arregalados, as mãos presas no colo. O pai, Rafael, saiu correndo atrás dos paramédicos.Ela não se lembra de tê-lo seguido, nem de quem a conduziu até fora dali. Só se lembra do som — ou da falta dele.
A ausência da música parecia mais dolorosa do que o próprio grito.
Naquela mesma noite, ao chegar em casa, foi direto para o quarto.
Lá estava o piano. O mesmo da infância, onde Clara lhe ensinara a primeira canção.
Isadora fechou a tampa com força, desligou o rádio, jogou fora os CDs e o enterrou junto com o caderno de partituras, toda e qualquer possibilidade de ouvir de novo o que tanto amava.
No dia seguinte, ainda com os olhos secos e o corpo em modo automático, Isadora parou em frente ao pai com uma única frase:
— Eu preciso de um fone de ouvido e um celular.
Rafael hesitou.
— Mas você não quis um nunca, Isa..
Ela apenas apontou para o silêncio ao redor, depois para o peito.
— Agora eu quero.
Desde então, nunca mais tirou os fones.
Mesmo que não houvesse nada tocando.
Eles eram mais do que um escudo.
Eram a lembrança do que ela não queria mais ouvir.
Dois dias depois, no velório, Isadora ainda usava o mesmo vestido da apresentação.
Não por teimosia. Por esquecimento.
Ela observava o caixão fechado, cercado por flores que exalavam um perfume doce e insuportável.
Sentada num banco lateral da capela, com os fones encaixados firmemente, Isadora mantinha os olhos baixos.
Não chorava. Não falava. Apenas existia ali, como se seu corpo estivesse presente, mas sua alma ainda estivesse caída sobre o piano.
Pessoas vinham e diziam coisas que não faziam sentido:
"Ela era luz."
"Que Deus conforte vocês."
"A música dela viverá."
Mas Isadora não queria que a música vivesse.
Queria a mãe.
Queria a risada depois do jantar.
Queria a melodia que Clara cantava toda vez que penteava seu cabelo.
Queria as mãos da mãe apertando as suas no frio da noite.
E foi então que começaram os sussurros.
— Olha isso de fone, no velório da própria mãe.
— Nem uma lágrima.
— Parece uma pedra. Isso é falta de sentimento.
Eram tias, primas, vozes da família da mãe, gente que aparecia só em aniversários, e que agora se achava no direito de interpretar o luto dos outros.
Rafael tentou intervir com um olhar duro, mas não disse nada. Ele sabia que, se forçasse Isadora a tirar os fones, ela desmontaria. Ou se partiria de vez por dentro.
— Ela precisa de tempo, Clarice — sussurrou uma das tias. — Isso aí não é normal. Vai ficar surda de tanta fuga.
Mas Isadora escutava tudo, mesmo sem música, porque, no fundo, os fones nunca foram para ouvir. Foram para não ouvir.
E naquele momento, ela decidiu:
Se todos só conseguissem medir dor pelo barulho que ela fazia…
Então o silêncio seria sua melhor resposta.
Os dias seguintes se arrastaram como sombras longas num corredor estreito. A casa, antes cheia de acordes e cheiros de bolo no forno, agora era só eco e poeira.
Rafael tentou manter a rotina, fazia café demais, lia um jornal em silêncio e evitava olhar para o piano.
Já os tios, primas, vizinhos, vinham cheios de boas intenções.
— Você precisa reagir, Isa.
— Sua mãe não ia querer te ver assim.
— Tira esse fone, menina. Vamos conversar um pouco.
Mas Isadora não queria conversar.
O fone era o único lugar onde o mundo parava de gritar.
Mesmo sem música, ela os usava o tempo todo.No café da manhã, no sofá da sala, até no banho, com medo que o silêncio vazasse por baixo da porta.
— Isso não é saudável — disse a tia uma tarde.
— Ela está fugindo — murmurou outra, achando que Isadora não escutava.
Mas escutava tudo e era por isso que usava os fones, para não ter que ouvir a mãe não estar ali.
Quatro anos depois
O piano continua no quarto, coberto por uma manta cinza, intocado, como um túmulo particular.
Isadora agora tem 17 anos.
Vai à escola com fones de ouvido grandes, roupas neutras, mochila pesada e passos calculados.
Ninguém sabe que ela compõe letras escondidas em um caderno azul. Ninguém sabe que ela ainda sonha — mas não permite escutar os próprios sonhos.
Ela prefere não se apegar a ninguém, nem as palavras doces e as músicas bonitas.
Porque tudo que é bonito…
Pode parar de tocar no meio da apresentação.
A escola parecia sempre a mesma para Isadora: corredores acinzentados, barulho abafado pelos fones, carteiras rangendo e professores falando como se estivessem muito longe.
Ela sentava na última fileira da sala, ao lado da janela, onde o sol batia suave. Lá era seu abrigo invisível.
— Alunos, atenção. Temos um novo colega — anunciou a professora de Literatura, com um sorriso que tentava ser leve.
O murmúrio começou.
Isadora não olhou, estava desenhando formas repetitivas no canto da folha, fingindo interesse, mas então ouviu uma voz.
— Oi. Eu sou o Luan.
Ele falava baixo, quase como se cantasse, contra a própria vontade, Isadora ergueu os olhos. O garoto era magro, tinha cabelo castanho bagunçado e uma pulseira de couro no pulso. Vestia uma camiseta preta com o nome de uma banda que ela conhecia: “Versos em Fúria” — um grupo alternativo de MPB que Clara ouvia em vinil.
Por reflexo, seu peito apertou.
A professora apontou a carteira vaga ao lado dela.
— Pode se sentar ali, Luan.
Isadora prendeu a respiração.
Luan sentou, deu um sorriso tímido e abriu seu caderno, havia rabiscos, letras de música e símbolos feitos à caneta azul.
Isadora desviou o olhar, mas o som da cadeira arrastando, da mochila abrindo e da voz dele ecoando em sua direção atravessaram os fones.
— Gosta de música? — perguntou.
Ela fingiu não ouvir, virou o rosto para a janela, deixando os fones cobrirem qualquer som que pudesse vir dele.
Durante toda a aula, ele tentou puxar conversa, falando de música, de letras, até de bandas que gostava. Ela não dava atenção. O silêncio dela era um muro, mas ele parecia não se importar.
No intervalo, Isadora caminhava pelo pátio, evitando os grupos barulhentos. Luan se sentou sozinho na Praça dos Ecos, tirou o violão da mochila e começou a tocar.
Era uma música simples, sem pretensão, mas cheia de sentimento — como um sussurro para quem quisesse ouvir.
Isadora parou a alguns metros, os olhos meio semicerrados, ela conhecia a melodia escolhida a primeira que sua mãe ensinará aos seus 8 anos de idade após várias insistência da mesma para aprender a tocar alguma coisa. Ela não queria estar ali, mas a melodia parecia tocar algo esquecido dentro dela e sem perceber, ela ficou ali até o final da música, imóvel e silenciosa.
Ao voltar para a sala, Luan a esperava na porta.
— Gostou da música? — perguntou com um sorriso tímido.
Ela hesitou. Então balançou a cabeça em silêncio.
— Sei como é difícil deixar o mundo entrar de novo. A música, pra mim, nunca foi só pra fugir. É pra se reencontrar — disse ele, olhando nos olhos dela.
Isadora olhou para Luan e fez sinal que saísse da frente.
— Você não precisa falar nada agora. Só quero que saiba que estou aqui — continuou ele, com calma.
No fim do dia, já em seu quarto, Isadora abriu o caderno azul de letras, folheou as páginas com letras que ninguém nunca tinha ouvido, palavras guardadas a sete chaves. Em cima da mesa, uma folha do caderno de Luan repousava: rabiscos, acordes, versos.
Ela tocou aquela folha com o dedo, hesitando.
Na manhã seguinte, Luan tentou se aproximar de Isadora novamente, durante o intervalo. Ele se aproximou com seu jeito calmo, um violão pendurado nas costas e um sorriso que buscava uma brecha.
— Ei, Isa… quer ouvir uma música nova que escrevi?
Ela o encarou por um instante, mas virou o rosto de imediato, afastando-se.
O som dos seus fones abafava a voz dele, e ela apertou os aparelhos contra as orelhas, como se assim pudesse bloquear não só as palavras, mas tudo aquilo que ela não queria enfrentar.
No corredor, alguns colegas a observavam.
Sussurros e risadinhas surgiam:
— “Olha lá, a menina dos fones de ouvido. Parece que vive no mundo dela.”
— “Ninguém entende ela. Nem fala com ninguém.”
— “Deve ser porque é estranha mesmo.”
Isadora ouviu tudo, mesmo com a música pulsando nos ouvidos. Era um misto de raiva e tristeza que a fazia querer desaparecer.
Ela não queria amigos. Não queria papo. Não queria abrir o peito.
Naquele dia, saiu da escola mais cedo, caminhando apressada pela Rua das Vozes Calmas, sentindo as notas da música invadirem sua cabeça — a trilha sonora de uma solidão que ninguém via direito.
Em casa, ela se trancou no quarto, ligou o rádio no volume alto e sentou diante do piano, mas não tocou.
As notas que saíam dos fones eram como um abraço invisível — o único contato que ainda conseguia suportar.
Luan, na escola, continuava a tentar encontrar um caminho para ela, mas Isadora, por enquanto, só fugia.
Nos dias seguintes, Isadora seguia o mesmo ritual: entrava na escola com os fones nos ouvidos, os olhos no chão e o corpo invisível.
Luan tentou algumas vezes se aproximar. Um “oi”, um gesto, um sorriso tímido.
Ela desviava, não era grossa. Só… ausente.
Na aula de Literatura, sentava-se no fundo, desenhando linhas invisíveis no canto do caderno. Os professores raramente a cobravam, já sabiam que não adiantava.
No intervalo, caminhando pelos corredores da Escola de Artes Aurora Nunes, Isadora tentou não ser notada, mas não adiantava.
— Lá vem a Isa de novo, com esses fones que nunca tira. — disse Ana Clara, a líder do grupo das garotas populares, com o típico sorriso de escárnio.
— Ela nem conversa com ninguém. Deve achar que é melhor que todo mundo. — completou Caio, o garoto que sempre fazia questão de ser ouvido, mesmo quando não tinha nada a dizer.
Ao lado, Miguel, o amigo fiel de Caio, riu com ar debochado:
— É a garota que só ouve música e ignora a gente. Deve ser meio estranha.
Isadora ouviu, o fone não estava tão alto, mas não reagiu.
A verdade? Aquilo já fazia parte do cenário. Como o som do portão está abrindo de manhã, o sinal que ninguém respeitava, os sussurros que vinham sempre antes do silêncio.
Ela apertou os fones com mais força, deixando que a música preenchesse o vazio.
Luan observava de longe, sentado no banco próximo ao refeitório. Percebeu que, por mais que ela parecesse alheia, havia tensão em seus ombros. Como se ela carregasse o mundo inteiro num corpo que só queria desaparecer.
Na aula de Música, a professora apresentou um novo projeto:
— Teremos um festival interno com apresentações autorais. Pode ser solo, em dupla ou grupo. Quem quiser cantar, tocar, compor ou adaptar algo… essa é a hora de mostrar o que a música representa pra vocês!
Luan imediatamente se empolgou.
Isadora, no entanto, se levantou discretamente, e saiu da sala.
Não por timidez.
Por pânico.
Ela correu até o banheiro vazio, encostou à parede e aumentou o volume no fone. As notas suaves de um piano preencheram o espaço apertado, mas mesmo assim, o peito doía.
“Música representa dor”, ela pensou.
“E dor não se mostra.”
Na saída, esbarrou em Luan no corredor. Ele sorriu, gentil.
— Tá tudo bem? — perguntou ele, sem pressão.
Ela não respondeu
— Porque… às vezes é bom saber que alguém se importa.
Ela não respondeu novamente, apenas se virou e seguiu seu caminho, mais uma vez.
Fugir era mais fácil do que explicar e mais seguro do que se permitir sentir.
Naquela noite, Isadora ficou mais tempo do que o normal diante do espelho. Observava os próprios olhos sem saber exatamente o que buscava ali. Talvez quisesse encontrar o ponto exato onde tudo começou a desmoronar. Ou talvez só estivesse tentando entender por que a voz de Luan ainda ecoava na cabeça mesmo com a música alta.
“Porque… às vezes é bom saber que alguém se importa.”
Essas palavras batiam contra sua resistência como ondas calmas que, aos poucos, desgastaram a muralha.
Ela não queria ceder, mas também não conseguia ignorar.
Na manhã seguinte, chegou à escola no mesmo passo contido de sempre. Fones no volume médio, cabeça baixa, o mundo filtrado por notas musicais, mas algo havia mudado.
No seu armário, entre os livros embolorados de Química e os cadernos com capas rabiscadas, havia um bilhete.
Não era colorido, nem perfumado. Papel branco, letra azul, simples.
> “Essa música é pra quem já quis desaparecer e mesmo assim continuou vindo todos os dias.
Sei que você não quer conversar, mas música também é conversa.
– Luan.”
Dobrado dentro do papel, havia uma folha com cifras e versos:
> “Você que se esconde sob o som,
mas sente o mundo gritando.
Eu escuto, mesmo que você cale,
mesmo que fuja, mesmo que negue.”
Isadora relutou, mas guardou o bilhete com cuidado na contracapa do caderno de Literatura.
Não como quem aceita, mas como quem ainda não sabe o que fazer.
Durante o recreio, Isadora percebeu algo estranho: os colegas estavam mais agitados do que o normal.
— Você viu que o Luan vai cantar no festival? — cochichou Letícia, do segundo ano.
— Disseram que é uma música que ele escreveu pra Isa…— respondeu Ana Clara, com desdém.
— Imagina! O menino mal chegou e já está querendo ser o herói da solitária.
Isadora ouviu tudo, não se virou e nem reagiu, mas por dentro, uma mistura de calor e gelo.
Por que ele faria isso?
Por que ele insistia?
Por que parecia ver algo nela, quando ela mesma não via?
Na aula seguinte, Luan estava quieto. Não tentou puxar conversa, mas antes de sair da sala, deixou outro bilhete dobrado no canto da carteira dela.
> “Você não precisa subir no palco.
Mas se quiser que eu cante por você, só me diga qual música precisa ser ouvida.”
Isadora fechou os olhos, sentiu os dedos tremerem. Era difícil confiar em qualquer um, mas havia algo naquela insistência serena, naquela ausência de cobrança, que fazia seu escudo rachar — ainda que ela tentasse colar os pedaços.
Naquele dia, ao chegar em casa, Isadora se trancou no quarto, pegou seu antigo caderno de partituras e abriu na última música que compôs com a mãe.
Não tocava aquela melodia desde o enterro.
Sentou-se ao piano, seus dedos hesitaram, sentiu um perto no peito e as notas ficaram presas.
Mas então… lentamente…
Os acordes começaram a nascer.
Trêmulos, imperfeitos, cheios de dor e de vida.
Ao final, não chorou, mas também não se escondeu do que sentia.
Guardou a partitura numa pasta, junto com o bilhete de Luan.
Não estava pronta para subir no palco.
Nem para sorrir.
Mas estava começando a ouvir…
A canção que há muito tempo não conseguia escutar.
E naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, Isadora dormiu sem música nos fones. O silêncio era desconfortável, mas também necessário — como uma pausa entre dois versos, onde algo precioso pode nascer.
O festival seria dali a uma semana.
Os corredores da Escola de Artes Aurora Nunes estavam cobertos de cartazes improvisados e rabiscos coloridos: “Festival da Canção – Vozes em Movimento”.
Isadora evitava olhar os anúncios. Só o pensamento de um palco a fazia querer desaparecer, mas a presença de Luan crescia em sua rotina — não de forma invasiva, mas constante, como o som de uma música que você não procura, mas começa a acompanhar mesmo sem perceber.
Ele continuava deixando bilhetes.
Pequenos, silenciosos, com trechos de letras, desenhos e até partituras rabiscadas em guardanapos.
Um deles dizia:
> “Às vezes, o que mais dói também é o que mais salva.
A música que você mais teme pode ser a que vai te lembrar que ainda está viva.”
E Isadora começou a responder.
Não com palavras.
Mas com notas.
Tocava à noite, trancada no quarto, e começava a escrever. Pequenas frases, versos soltos, pedaços de si mesma que ela nem lembrava que existiam.
No fundo da gaveta, encontrou uma fita cassete antiga. A etiqueta dizia “Isa – 8 anos” em letras tortas.
Colocou no toca-fitas e ouviu a voz de sua mãe dizendo:
> “Agora é sua vez, Isa. A música é sua casa. Nunca se esqueça disso.”
Aquela voz que o tempo tentava apagar voltava a vibrar por dentro.
Na véspera do festival, Luan a encontrou sentada no banco da Praça dos Ecos.
Ela estava sem fones, se aproximou devagar, como sempre fazia.
— Tá ouvindo alguma coisa agora? — perguntou ele, meio rindo.
Ela apontou, sem olhar, os olhos fixos nas folhas dançando no chão.
Luan sentou ao lado, respeitando o espaço.
— Você escreveu aquela música? A que eu encontrei no seu caderno azul?
Ela assentiu, lentamente.
— É linda. Dói, mas é linda.
Isadora respirou fundo. Então escreveu em um papel.
— Eu não escrevo mais pra mostrar.
Escrevo pra lembrar que ainda sinto.
Luan a olhou com suavidade.
— Mas e se mostrar for a única forma de se curar?
Ela sorriu sem mostrar os dentes. Triste, mas viva.
— Então a gente canta junto — respondeu ele, com firmeza gentil.
Silêncio.
E então ela tirou uma folha dobrada da mochila, era a partitura. Aquela que não tocava desde a despedida, a letra estava rabiscada, com anotações feitas à mão, um rastro de um tempo que ela achava perdida.
Isadora, finalmente olhando nos olhos dele, escreveu no celular
Pode usar a melodia, mas não diz que foi minha.
Luan pegou a folha com cuidado, como se segurasse algo sagrado.
— Tudo bem, mas um dia, você vai subir lá. E vai cantar com a sua voz.
— Eu espero — disse ela.
E naquele fim de tarde, enquanto o céu escurecia em tons suaves de azul e rosa, Luan cantou baixinho para ela, era a primeira vez que aquela canção era ouvida fora das paredes do quarto.
Isadora fechou os olhos.
Não para fugir.
Mas para sentir melhor.
Talvez, pela primeira vez em muito tempo, estivesse pronta para começar…
A reescrever sua história — uma nota por vez.
Mesmo que ainda não fosse o refrão.
Luan sempre teve um tipo de sensibilidade diferente. Era do tipo que prestava atenção no que os outros não diziam.
E com Isadora, era tudo não dito.
Na manhã de terça-feira, enquanto esperava a professora de Música chegar, ele observava Isa sentada no fundo da sala, como sempre. Fones nos ouvidos, olhar no vazio. Os dedos tamborilavam no estojo como se tocassem um piano invisível.
Ele anotou mentalmente.
Ela ainda sente. Só não deixa mostrar.
Depois da aula, procurou a coordenadora da escola, dona Vera, sob o pretexto de ajudar na organização do festival. Vera, sempre orgulhosa dos alunos talentosos, não demorou a soltar algo:
— Aquela menina, a Isadora, era um prodígio. Tocava com a mãe desde pequena. A mãe dela era Clara Dias, já ouviu?
Luan quase deixou o lápis cair. Conhecia o nome.
— Clara Dias? A pianista?
— Ela mesma. Uma pena... morreu há quatro anos. No palco. Aqui mesmo, na escola.
O estômago de Luan revirou. De repente, tudo começou a fazer sentido. O jeito fechado. O silêncio barulhento. Os fones que não saíam.
Isadora vivia com o eco daquele dia.
Preso nos ouvidos, em suas mãos e em seu peito.
No refeitório, mais tarde, Luan se sentou próximo ao grupo de Ana Clara e Caio, tentando parecer desinteressado. Eles falavam de tudo, menos da aula.
— Aposto que ela nem canta mais porque acha que vai morrer como a mãe — disse Caio, rindo baixo.
Ana Clara revirou os olhos:
— Ela é uma drama queen. Fica se fazendo de vítima porque sabe que todo mundo morre de dó. Mas, sinceramente? Só sabe ser estranha.
Luan apertou a colher com tanta força que quase entortou o alumínio.
Mas não respondeu.
Naquela tarde, passou pela biblioteca e pediu para ver os registros do Festival do ano passado. A bibliotecária, uma senhora atenciosa chamada Dona Eliete, o levou até uma caixa com fotos e panfletos.
Ali estava ela: Isadora, quatro anos mais nova, sorrindo ao lado da mãe, ambas de vestidos azuis, com os dedos entrelaçados sobre o piano.
A legenda abaixo da foto dizia:
“Última apresentação de Clara Martins Valentini. Um legado que jamais se calará.”
Mas para Isadora, o som havia morrido junto com a mãe.
No caminho de volta, Luan parou em frente à casa dos Valentini. Era uma casa silenciosa. Cortinas fechadas, jardim esquecido.
Ele não bateu.
Não naquele dia.
Mas soube que, de alguma forma, precisava encontrar uma maneira de mostrar para Isadora que não era só a dor que podia deixá-la em silêncio.
Era o amor também.
E talvez — só talvez — ele pudesse ajudar a reensinar isso a ela.
No dia seguinte, a professora de música propôs uma atividade prática em grupo. Cada aluno deveria apresentar um trecho instrumental de uma canção conhecida, utilizando apenas objetos da mochila como instrumentos improvisados.
— Podem usar canetas, estojos, latinhas, até os próprios fones de ouvido se quiserem. Criatividade vale nota!
Isadora suspirou fundo. Aquilo era um tormento.
Quando a professora separou os grupos, o nome dela apareceu ao lado de Luan, Caio e Júlia. Ela franziu a testa, já esperando o pior.
Caio foi o primeiro a soltar:
— Ótimo, a muda do fone eterno caiu no nosso grupo.
Luan lançou um olhar cortante para ele.
— Se não vai ajudar, é melhor nem atrapalhar — disse, calmo, mas firme.
Júlia tentou amenizar o clima.
— Vamos só fazer algo simples, ok? Uns toques de ritmo com canetas e o Luan improvisa algo com o violão dele.
Isadora não disse nada. Apenas cruzou os braços e desviou o olhar.
Enquanto os outros testaram os sons nas carteiras, ela colocou os fones e fechou os olhos.
Luan a observou. Percebeu que os dedos dela ainda tamborilavam em ritmo. Não estavam desligados — apenas feridos.
Na hora da apresentação, Isadora permaneceu sentada, deixou que os colegas fizessem tudo, mesmo sabendo que a professora provavelmente iria descontar nota, mas Luan, antes de começar a batida no violão, se aproximou e, quase num sussurro, disse:
— Se você quiser, posso só tocar e ninguém precisa te olhar. Eu só queria ouvir o seu tempo.
Ela não respondeu.
Mas, por um instante, tirou um dos fones.
Luan começou a batida com suavidade. Nada de espetáculo. Apenas um compasso regular, como o som de um coração tentando se manter estável.
Isadora, sem perceber, tamborilou os dedos no colo, era pouco, mas foi um começo.
No fim da aula, ela foi a última a sair.
Luan ainda estava guardando o violão quando ouviu passos atrás dele.
Ela parou, por um segundo, respirou fundo e abriu a boca para falar algo, ela o encarou com olhos frios, mas não raivosos. Depois virou-se e saiu sem dizer nada.
Luan sorriu de leve.
Isadora subia as escadas da escola com os fones nos ouvidos e o passo apertado. A batida da música ecoava dentro do peito, como uma armadura contra o mundo lá fora.
Mas naquele dia, a música já não abafava tudo.
Os dedos ainda lembravam o compasso do violão de Luan no dia anterior. Aquilo a irritava.
Era como se ele tivesse plantado um som dentro dela. Um som novo. E ela não sabia se queria ouvi-lo.
— Tá ensaiando pra tirar os fones agora? - Murmurou Ana Clara ao cruzar com ela no corredor. Caio riu do comentário.
Isadora não reagiu, mas o comentário ficou martelando.
Não por ofensa, mas por um tipo de verdade inconveniente: ela tinha tirado os fones — mesmo que por segundos.
E aquilo abriu uma brecha.
Na aula de português, Luan sentou-se duas carteiras atrás dela.
Isadora tentou ignorá-lo. Tentou fingir que não sentia o olhar dele às vezes se arrastar até ela. Mas sentia. E isso também a enfurecia.
Quando o sinal tocou para o intervalo, ela saiu antes de todos.
Foi direto para a biblioteca. Não para ler — ela quase não lia mais desde o velório —, mas porque sabia que poucos iam até lá.
Ao sentar-se no canto mais afastado, encostada na parede fria, finalmente deixou os ombros desabarem.
Queria odiar Luan. Ou pelo menos ignorá-lo como fazia com todos.
Mas ele não era como todos. E o pior: não parecia tentar salvá-la. Só respeitava o silêncio.
Talvez isso fosse o mais perigoso.
No fim do dia, em casa, o pai a esperava com o jantar posto.
— Fiz lasanha, seu prato preferido... lembra?
Ela assentiu, sem palavras.
Durante o jantar, Rafael a olhou com cuidado, e então perguntou:
— Você falou pouco hoje. Deu tudo certo na escola?
Isadora deu de ombros, e ficou no prato a sua frente.
— A professora de música mandou um bilhete. Disse que sua presença no trabalho em grupo foi... silenciosa, mas importante.
Ela parou de mastigar. O garfo pousado sobre a mesa fez um leve tilintar.
— Às vezes, só estar lá já é muito.
Isadora olhou para ele por um breve segundo.
Depois levantou, pegou os fones, e subiu para o quarto.
Mas, ao deitar-se, não colocou música nenhuma.
Ficou em silêncio.
O mesmo silêncio onde Luan, sem saber, agora também morava.
Luan não sabia explicar por que sentia tanta vontade de entender Isadora.
Talvez fosse o modo como ela se escondia atrás dos fones ou o jeito que seus olhos pareciam procurar algo e ao mesmo tempo evitá-lo. Ele sabia reconhecer a dor — e a dela, mesmo silenciosa, parecia gritar.
Naquela tarde, após mais uma tentativa frustrada de conversar com ela, Luan sentou-se na biblioteca da escola. Um lugar que poucos frequentavam, exceto por ele, a bibliotecária e, às vezes, Isadora — quando queria desaparecer por completo.
— Você anda quieto hoje, Luan — comentou Dona Eni, empilhando alguns livros.
— Só… pensando — respondeu ele, distraído, olhando pela janela.
Ela sorriu.
— É sobre a menina dos fones, não é?
Luan se virou, surpreso.
— Você reparou?
— Reparo em tudo o que passa por aqui. Ela vem muito. Sempre senta no canto esquerdo, perto da estante de poesia, pega um livro antigo de Drummond, mas nunca abre. Só fica lá, em silêncio. Às vezes chora baixinho. Às vezes dorme. Sempre com os fones nos ouvidos.
Aquilo tocou fundo em Luan.
Ele não sabia que ela chorava. Ninguém sabia. Ninguém via.
Na saída da biblioteca, passou pela estante de poesia e viu o livro citado. Estava lá, com uma flor seca marcada entre as páginas. Pegou-o com cuidado e folheou. Na contracapa, uma frase escrita à mão, tremida:
“O que não digo, escrevo. O que não suporto, ouço.”
Luan fechou o livro devagar, não era apenas curiosidade o que sentia. Era uma conexão silenciosa, uma vontade genuína de alcançar aquela parte dela que ainda resistia.
Nos dias seguintes, ele começou a observar mais.
Viu que Isadora evitava lugares onde antes costumava tocar — havia um piano velho na sala 9, onde alguns alunos praticavam em horários livres. Ela sempre passava longe.
Descobriu com um professor que ela já havia participado de um recital no ano anterior, tocando uma música autoral, mas apenas realizou sua inscrição e depois não subiu no momento de sua apresentação.
Juntando pedaços, Luan começava a entender: ali havia uma história engasgada. Uma ferida aberta.
E então, num fim de tarde, enquanto desenhava no caderno ao som de “Versos em Fúria”, teve uma ideia.
Escreveria uma música sobre o que via em Isadora, não para expor, mas para mostrar que alguém via o que ela tentava esconder.
Uma canção feita de silêncio, ausência e melodia.
Talvez, só talvez… ela escutasse.
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