...Emily Bennett...
Eu sou péssima com silêncio.
E antes que você pense que isso é uma metáfora, deixa eu explicar: eu sou realmente péssima com silêncio. Me dá uma aflição no peito, parece que o mundo inteiro tá prendendo a respiração, esperando alguma coisa dar errado. Então, talvez por isso, eu esteja sempre falando, sempre rindo, sempre... enchendo o ar com algo.
E hoje, eu precisava disso mais do que nunca.
O cenário ao meu redor estava lindo, como sempre. O fundo rosa-claro com luzes penduradas, o sofá de veludo branco com almofadas em forma de coração, a mesinha com cupcakes de morango que eu mesma decorei. A equipe da transmissão ajustava a câmera, o microfone estava funcionando, e os fãs — ah, meus preciosos fãs — já estavam enchendo o chat da live com coraçõezinhos, emojis de raposa (não sei por que isso virou meme) e mensagens de amor.
— Oi, meus amores! — sorri, me ajeitando na cadeira com o maior brilho nos olhos que eu conseguia fingir. — Hoje é um dia especial! Porque... eu vou abrir os presentes que vocês me mandaram! 💕 Eu tô tão animadaaaa!
O chat explodiu. Me chamaram de princesa, fada, rainha da música pop, tudo junto. E olha, eu devia me sentir especial, né? Atriz premiada, cantora com turnê marcada, modelo da nova campanha da Dior. Mas, mesmo cercada de sucesso, fama e luzes, a verdade era...
Eu tava sozinha.
Sempre estive.
Fama nunca substituiu carinho de verdade. E meu pai... bem, ele é outra história. Um nome poderoso, daqueles que faz qualquer sala ficar em silêncio. Dono de metade das empresas de segurança privada e vigilância do país. Um homem que colecionava poder como quem coleciona relógios de luxo. Mas eu não queria viver à sombra dele. Não queria olhares que me respeitavam por quem ele era — eu queria ser amada por ser eu.
E por isso eu estava ali, com um sorriso enorme, abrindo caixinhas coloridas de fãs que acham que eu sou perfeita.
— Esse é do... @cutedragon98! Ai, a embalagem tá LINDA! — rasguei o papel roxo com coraçõezinhos. Era um chaveiro em forma de estrela. Fofíssimo. — Aaaawn, obrigadaaa!
Abri outro. E outro. Pelúcias, bijuterias feitas à mão, cartas cheias de palavras doces. O coração foi amolecendo. Eu me sentia... menos sozinha.
Até que veio ela.
A caixa era preta, com fitas vermelhas mal amarradas. Nenhuma etiqueta, nenhum nome. Só meu endereço artístico escrito à mão com letras tremidas, em caneta esferográfica vermelha.
O chat parou. Juro por Deus. Por um segundo, as mensagens diminuíram. E eu senti aquele arrepio na nuca.
— Olha... temos um presente misterioso, gente! — tentei rir. — Será que é chocolate? Um urso gigante? Um bilhete de casamento?
A voz falhou no final.
Eu abri.
Lá dentro... uma boneca. Mas não uma boneca comum. Era uma boneca vudu, com trapos sujos, costuras tortas, e meu rosto desenhado nela com marcador preto. O cabelo? Imitava o meu. Os olhos? Eram violetas como os meus. E na barriga da boneca, um alfinete enfiado até o fundo.
E o pior: estava molhada.
Na hora, pensei: "é tinta, tinta falsa... sangue falso, deve ser parte de alguma brincadeira dark de Halloween fora de época..." Mas o cheiro... aquele cheiro metálico, adocicado...
— Isso... é sangue? — sussurrei sem pensar, esquecendo que estava ao vivo.
A live foi cortada segundos depois, a tela ficou preta. Um dos técnicos correu até mim com uma toalha, outros gritavam no fone de ouvido. Eu fiquei paralisada, segurando aquela boneca como se fosse um aviso de morte.
Foi quando meu celular vibrou.
Um número desconhecido.
Atendi, quase por reflexo.
— Emily Bennett — disse uma voz grave, séria, autoritária. — Aqui é da Força de Proteção Avançada. A senhorita precisa de proteção imediata. Um agente já está a caminho.
— Mas... eu não pedi nada... — gaguejei, ainda com a boneca no colo.
— Sua família pediu. E ele já está chegando.
— Ele?
— Não exatamente um "ele". Ela. Nome: Seo Yuna. Unidade Especial Classe-A. Raposa Branca.
A ligação caiu.
E foi ali, cercada de presentes, câmeras desligadas, e uma boneca vudu manchada com um líquido que parecia sangue... que minha vida perfeita desabou.
E pela primeira vez em muito tempo...
O silêncio não me incomodou.
Eu juro que não dormi nem cinco minutos naquela noite.
Toda vez que eu fechava os olhos, via a boneca. Sentia o cheiro metálico. O sangue — ou o que quer que fosse aquilo — parecia grudar nos meus dedos, na minha pele, como uma memória que se recusa a ser esquecida.
Mas o que mais me deixava inquieta... era o nome que ouvi na ligação.
Seo Yuna.
Nunca tinha ouvido. Mas o jeito que o homem falou... o peso daquele nome ficou na minha cabeça como uma batida constante.
Quando o sol nasceu, eu já estava pronta. Roupas simples, cabelo preso, óculos escuros grandes demais pro meu rosto. O motorista me reconheceu, claro, mas não falou nada. Não precisava. Era óbvio que eu estava irritada.
Vinte minutos depois, entrei pela porta principal da mansão Bennett. Tudo ainda do mesmo jeito de sempre: mármore branco, vasos de flores caríssimos, e aquele silêncio sufocante que preenchia os espaços entre uma reunião e outra.
— Onde ele tá? — perguntei à governanta, que só apontou para o escritório.
Empurrei a porta sem bater. Ele estava lá dentro. De pé. Alto. Imponente. Terno escuro, mãos atrás das costas. O homem que metade do país chamava de gênio, e eu chamava de pai.
— Emily. — a voz dele soou como sempre: calculada, firme. — Que bom que veio cedo.
— Que bom nada. — tirei os óculos. — A gente precisa conversar. Agora.
Ele não respondeu. Apenas andou até a janela, observando o jardim como se eu fosse só mais uma reunião.
— Eu não preciso disso — continuei. — Eu não preciso de segurança. Não preciso de ninguém me seguindo por aí como um cão de guarda com farda.
Ele me olhou por cima do ombro. Sem emoção.
— Não é uma opção.
— Claro que é! — insisti. — Eu sou capaz de me proteger! Eu sou atriz, modelo, cantora... eu tenho minha equipe, meus amigos! Eu tô bem!
Ele se virou totalmente.
— Então por que você tá tremendo agora?
Minha respiração falhou. Ele viu. Eu... não consegui esconder. A lembrança da boneca, o medo de estar sendo observada... tudo ainda tava dentro de mim.
Foi aí que a voz apareceu. De novo.
Mas não era a dele.
Era a minha. Ou melhor... uma parte de mim.
A parte que eu sempre tentei ignorar.
"Você precisa disso."
"Você precisa de proteção. Se fosse tão forte quanto finge ser, não estaria assim agora."
Engoli seco. Meus punhos se fecharam.
— Você quer poder escolher outra pessoa como guarda-costas? — perguntou meu pai, a voz mais branda, como se me oferecesse uma saída. — Pode escolher alguém da sua idade. Alguém mais... discreto.
— Eu não quero ninguém. — rebati. — Mas se for pra ser alguém... então que seja a que você escolheu.
Ele arqueou a sobrancelha, um leve sorriso no canto dos lábios.
— Seo Yuna.
Aquele nome, de novo. Soou forte na boca dele. Quase respeitoso. Como se ela fosse uma lenda.
— Quem é ela, afinal? — perguntei. — Um codinome bonito? Uma guarda-costas de elite? Alguma lenda urbana do seu mundo secreto de seguranças?
Ele andou até a mesa e me entregou um tablet. Nele, havia uma única imagem.
E, meu Deus.
Eu vi.
Cabelos curtos e brancos como neve, com algumas mechas vermelhas brilhando sob a luz do sol. Olhos vermelhos como vinho, mas com um brilho misterioso. Pele clara, sorriso calmo. E ali, bem no topo da cabeça, como se desafiasse tudo que eu conhecia da lógica: uma olheira branca de raposa. Real. Natural.
Ela era linda. Mas não de um jeito comum. Era como se o mundo ficasse em silêncio ao redor dela. Como se todos tivessem que parar pra olhar.
— Isso é um filtro? — perguntei, surpresa. — Ela... ela é real?
— Ela é a melhor da sua área. — disse meu pai. — Especialista em combate, rastreio, infiltração e neutralização. Guarda-costas pessoal do mais alto nível. Nunca falhou em uma missão.
— Ela é... uma raposa? Tipo, de verdade?
— Nascida com as características de uma raposa branca rara. Raridade quase extinta. Mais ágil que qualquer humano, mais rápida que qualquer animal. E é a chefe da minha empresa oficial de proteção pessoal.
— Espera. Você tá dizendo que essa... essa mulher linda que parece saída de um anime é chefe da sua empresa?
— Exatamente. — ele se aproximou, sério. — Amanhã, nove da manhã, ela estará aqui. Você vai assinar os papéis. Nada mais. Sem dramas. Sem discussões.
— E se eu me recusar?
Ele sorriu de leve.
— Ela vai te proteger mesmo assim.
Saí da sala com o coração acelerado.
Seo Yuna.
A mulher que meu pai escolheu. A raposa branca. Minha... futura guarda-costas pessoal.
E por alguma razão que eu não queria admitir...
Meu peito não parecia mais tão pesado.
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...Emily ...
O carro balançava suavemente pelas ruas da cidade enquanto eu observava as nuvens do lado de fora, os braços cruzados e o queixo apoiado na mão. O mundo lá fora seguia normalmente — trânsito, cafés lotados, pessoas apressadas com fones nos ouvidos — mas dentro de mim, tudo estava... inquieto.
Seo Yuna.
A imagem dela ainda não saía da minha cabeça.
Era estranho, porque eu só a tinha visto por uma única foto no tablet do meu pai. Uma imagem estática. E mesmo assim... havia algo naquela mulher. No jeito como ela sorria de lado, como se soubesse de um segredo que ninguém mais sabia. No olhar vermelho profundo, nos fios brancos com mechas vermelhas, e principalmente... naquela olheira de raposa branca em cima da cabeça.
Eu já tinha ouvido falar de metamorfos. Todo mundo no mundo moderno sabia sobre eles.
Pessoas que nasciam com as características de animais raros. Às vezes orelhas, garras, caudas... outras vezes algo mais sutil: sentidos aguçados, mudanças corporais temporárias. Um dom que vinha do nascimento — e que, por lei, não podia ser removido, suprimido ou alterado.
O problema é que quase todos os metamorfos acabavam se perdendo.
Com o tempo, muitos se tornavam criminosos, assassinos, ladrões habilidosos demais pra serem pegos. O mundo já estava cansado de casos assim — mutações que transformavam jovens em monstros. Era como se o poder deles corrompesse pouco a pouco.
Mas, mesmo nesse universo de caos... havia níveis.
E entre todos os metamorfos, os de raposa sempre foram considerados os mais misteriosos.
Eles eram raros. Muito raros. Seus poderes envolviam velocidade, camuflagem, raciocínio elevado e... beleza incomum. Diziam que a Deusa Raposa foi a responsável por espalhar esses dons pelo mundo — uma entidade ancestral, que se apresentou há séculos como uma mulher com olhos de sangue e cabelos brancos como a neve.
Ela era uma raposa branca. A única até hoje.
Ou pelo menos, era o que todos acreditavam.
Até agora.
— Seo Yuna... — murmurei pra mim mesma. — Você é... a segunda?
Fui direto pro meu quarto quando cheguei em casa. Me tranquei lá dentro, sentei no chão, encostada na cama, e abri meu tablet pessoal. Fiz o que qualquer pessoa curiosa faria: pesquisei.
Seo Yuna.
Nada.
Raposa branca + metamorfo.
Poucas coisas. Artigos vagos. Muitos baseados em lendas ou histórias mal contadas. Alguns falavam da Deusa Raposa, claro — uma divindade antiga que teria selado os poderes de equilíbrio entre os humanos e a natureza. Diziam que ela andava entre nós, que escolhia a quem dar seus dons, que punia os orgulhosos.
Mas uma coisa chamou minha atenção:
> "Raposas brancas são extremamente raras. A chance de nascer uma, fora da divindade original, é de 0,000001%. Nenhum registro humano comprovado... até hoje."
E agora, ela estava vindo me proteger.
Engoli seco.
Eu não sabia se era sorte, azar ou uma conspiração bizarra do destino. Mas não era qualquer segurança que meu pai tinha me mandado. Ele me mandou a criatura mais rara — e talvez mais perigosa — que ainda existia.
E como se isso já não fosse o suficiente...
Ela era linda.
— Ok... respira, Emily. — murmurei, encarando meu reflexo no espelho. — Ela só vai ser sua guarda-costas. Nada demais. Você não precisa se impressionar. Nem se perder nesse olhar vermelho hipnótico. Nem...
Eu bati nas próprias bochechas.
— Eu tô ficando louca.
Mas no fundo... eu sabia.
Não era loucura.
Era instinto.
Algo naquela mulher me despertava um tipo de curiosidade que eu nunca tinha sentido antes. Um medo bom, uma tensão no ar, como se o universo estivesse me cutucando e dizendo:
"Presta atenção. Isso... é importante."
E por mais que eu estivesse tentando negar...
Eu mal podia esperar pelo amanhã.
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...Seo Yuna...
O som do relógio pendurado na parede era a única coisa que ecoava pela sala.
Tic. Tac. Tic. Tac.
Minha perna balançava devagar sob a mesa enquanto eu girava a caneta entre os dedos, os olhos presos no tablet desligado à minha frente. A luz fraca que vinha da janela lateral recortava meu rosto, projetando minha silhueta na parede branca.
Meu uniforme estava impecável, como sempre. Jaqueta preta sob medida, calça social mais justa nas pernas, luvas de couro nos bolsos. Meus cabelos curtos brancos estavam presos com um pequeno grampo vermelho do lado esquerdo — presente da Lili, na verdade. Mas, como sempre, o que mais chamava atenção era ela: minha orelha branca de raposa, com as pontas ligeiramente prateadas, bem ali no topo da minha cabeça.
Dava pra ver até de longe.
Suspirei e recostei no encosto da cadeira.
— ...Filha dele, hein... — murmurei baixinho, mais pra mim mesma.
O pedido do Sr. Richard ainda ecoava na minha cabeça. Ele nunca me pedia nada pessoalmente. Nunca.
Ele era meu chefe. O chefe de todos nós. Frio, calculista, estrategista de guerra.
Mas hoje… ele me chamou pra uma conversa a portas fechadas. Olhos duros, mas com algo estranho por trás.
Um tipo de... desespero contido.
> — Quero que você proteja minha filha.
— Emily Bennett.
— Ela está sendo ameaçada. E mesmo com tudo o que sabe fazer, ela não vai admitir que precisa de ajuda.
— Eu quero você, Yuna. Só você.
— Quero ela viva. Quero ela feliz. E quero que ela nunca saiba o que realmente está por trás disso.
Ele não deu detalhes. Nem precisou.
Aquela boneca vudu que chegou pra ela... já era o suficiente.
E o fato de que eu, a chefe da divisão de elite, estava sendo designada pra uma única pessoa? Isso dizia tudo.
Meus pensamentos foram interrompidos quando a porta da minha sala se abriu com tudo, sem cerimônia.
— Óóóóó, a rainha dos ouvidos peludos tá concentrada hoje, hein? — Lili entrou rindo, carregando um copo de café nas mãos.
— Cuidado pra não tropeçar no próprio ego, Lili. — disse Max, entrando logo atrás com sua camisa social aberta no peito e um palito de dente preso nos dentes.
— Ai, cala a boca, Max, você não me dá cinco minutos de paz. — ela respondeu, chutando a canela dele com precisão cirúrgica.
E atrás dos dois, como sempre... vinha Gabi. Com seu uniforme impecável, óculos caindo no nariz, e um bloco de anotações debaixo do braço.
— Vocês dois vão ser demitidos se continuarem invadindo a sala da chefe assim.
— Relaxa, Gabi, ela ama a gente! Né, Yuna? — Lili piscou, jogando o copo de café na minha mesa.
— Vocês são um incômodo. — respondi, erguendo a sobrancelha com um sorriso preguiçoso.
— Mas um incômodo charmoso! — Max riu, puxando uma cadeira e se jogando nela de lado, com os pés na parede.
— E então? — Gabi ajeitou os óculos. — É verdade que o chefão te pediu algo pessoalmente? Tá rolando boato no setor 3 que você vai proteger uma celebridade. Atriz? Modelo? Cantora?
— As três. — respondi, cruzando os braços. — Emily Bennett.
— A Emily Bennett? — os três disseram juntos.
Lili arregalou os olhos.
— Aquela menina dos olhos violetas? A que vive viralizando com vídeo de dancinha e roupa da Chanel?
— A mesma. — murmurei, suspirando. — Ela recebeu uma ameaça. Vudu. Sangue. Transmissão ao vivo. Uma mensagem clara.
Max assoviou.
— Pesado.
Gabi franziu o cenho.
— Isso explica por que o Sr. Richard te escolheu. Ele nunca confiaria isso a ninguém abaixo de Classe-A. E... bom, você é a única Classe-S ativa, né?
— Pior. — Lili deu um sorriso torto. — Ela é uma raposa branca. A única que existe viva além da lenda.
Max se levantou, caminhou até mim e bateu no meu ombro.
— Se você não quiser ir, eu posso me disfarçar de babá e...
— Eu vou. — falei, interrompendo com um tom leve, mas firme.
Os três me encararam.
— Eu vou protegê-la. Foi um pedido direto do chefe... e por algum motivo, essa garota me deixou curiosa. — completei, olhando pela janela.
Eles ficaram em silêncio. Era raro eu me interessar por algo fora das missões. Mas algo naquelas palavras do Sr. Richard... algo naquele nome...
Emily.
Eu já conhecia aquele olhar. O dela. Vi pelo vídeo. Sorriso brilhante, mas... olhos que pareciam pedir ajuda sem dizer nada. A mesma máscara que eu usava todos os dias.
E agora ela era minha responsabilidade.
— Amanhã. 9h da manhã. Mansão Bennett. — murmurei.
Lili sorriu.
— Então é oficial. A raposa branca vai cuidar da princesa pop. Já posso ver as manchetes.
Max levantou a mão.
— Aposto que ela vai odiar você no começo.
— Aposto que vai se apaixonar depois. — Lili rebateu com uma piscada.
Gabi só anotava, impassível.
— Eu só espero que você não quebre ninguém dessa vez.
Me levantei, pegando o tablet e guardando no bolso interno da jaqueta. Olhei pros três, meu sorriso afiado como sempre.
— Quem sabe?
E enquanto os três riam, brigavam, e jogavam coisas uns nos outros...
Eu saí da sala.
Caminhei pelo corredor central da sede, ouvindo o som das botas no piso de mármore.
Não sabia exatamente o que esperar de Emily Bennett.
Mas uma coisa era certa:
Eu sou a segunda raposa branca do mundo.
E não vou deixar ninguém encostar nela.
...Yuna...
O som dos meus passos ecoava firme pelo corredor de mármore, ritmado e preciso. A maioria dos funcionários desviava o olhar assim que me notava — alguns se curvavam, outros apenas congelavam no lugar. Não era medo, exatamente. Era respeito... e talvez uma pontinha de receio.
Normal. Eu me acostumei.
Mas hoje... havia algo diferente em minha mente. Algo que me acompanhava como uma sombra silenciosa em cada passo que eu dava.
Emily Bennett.
A filha do chefe. A garota de sorriso escancarado e olhos violetas, que parecia brilhar em cada tela, cada vídeo, cada aparição pública.
Por que... ela me chamava tanta atenção?
Não era só porque eu fui designada para protegê-la. Eu já escoltei políticos, reis, CEOs. Já salvei presidentes de sequestros. Já eliminei alvos em países que nem existem mais.
Mas ela...
Tinha algo diferente. Algo que incomodava. Como uma pequena agulha invisível debaixo da pele.
Passei por uma grande vidraça que dava vista para o campo de treinamento externo, onde uma equipe fazia exercícios de combate. Observei por alguns segundos — movimentos lentos, sem foco, previsíveis.
— Vão morrer em campo — murmurei sozinha, continuando a andar.
Meus olhos, de um vermelho sutil como vinho escuro, observavam tudo ao redor com calma. Eu via tudo. O menor deslize. A mais ínfima hesitação.
Meu corpo, leve e silencioso, parecia flutuar em cada movimento.
Caminhar era como caçar.
E enquanto me perdia em meus próprios passos, pensei no que realmente nos tornava diferentes.
Nesse mundo moderno e decadente… os metamorfos nasceram como exceções da natureza.
Pessoas com traços de animais raros, que despertavam habilidades físicas sobre-humanas. Força, velocidade, reflexos, faro, resistência.
A maioria das nações tentou controlá-los. Outros, os venderam. E o resto... bem, se tornaram criminosos.
Roubo, assassinato, manipulação. Os metamorfos se tornaram sinônimo de caos e instabilidade.
É por isso que esta empresa existe. Uma força especial para conter e empregar metamorfos em missões sigilosas e de segurança mundial.
Aqui, só metamorfos trabalham. Nenhum humano comum conseguiria acompanhar.
E mesmo entre todos... eu sou diferente.
A única raposa branca.
O segundo exemplar desse tipo desde os tempos antigos, desde a lenda da Deusa Raposa — a entidade misteriosa que, segundo os mitos orientais, teria dado origem à linhagem dos metamorfos de raposa.
Raposas normais são raras.
Raposas brancas, então... 0,000001% de chance de existir uma.
Sou literalmente a segunda da história registrada.
Max é um metamorfo de leão.
Força bruta, rugido sônico, resistência absurda.
Mas limitado. Fácil de prever. Impulsivo demais.
Lili é uma tigresa.
Rápida, ágil, feroz. Usa garras envenenadas e visão noturna.
Mas tem temperamento instável. Racha emocional fácil.
Gabi é uma águia.
Visão telescópica, precisão absurda, controle de correntes de ar.
Inteligente, estratégica, mas frágil fisicamente.
Eles são poderosos. Claro.
Mas não têm o que eu tenho.
Meu verdadeiro poder…
Ninguém aqui conhece. Nem o Sr. Richard. Nem o Conselho.
O dom especial da raposa branca. Um presente da própria Deusa.
Atravessar qualquer coisa.
Qualquer objeto.
Qualquer material.
Metal, pedra, vidro, concreto.
Até mesmo... barreiras mágicas, campos de energia ou escudos invisíveis.
Se eu quiser, posso atravessar um prédio inteiro como se fosse feito de papel.
Posso passar por uma parede e arrancar o coração de alguém do outro lado sem ser vista.
Mas nunca usei esse poder à vista de ninguém.
Não por medo.
Mas porque… bem, é meu.
Só meu.
— “Segredos são mais fortes do que paredes.” — murmurei, repetindo uma das frases que minha mãe costumava dizer, quando eu era criança.
Virei à esquerda, passando pelo setor de segurança avançada. Um grupo de recrutas me viu e imediatamente abriu espaço. Alguns me cumprimentaram com reverência. Um deles deixou cair um copo de café de nervoso.
— Relaxem — falei sem parar de andar. — Eu só mordo quando me mandam.
Um deles soltou um riso nervoso. Eu nem olhei.
Cheguei até a sacada mais alta do prédio, que dava vista para a cidade lá embaixo. O vento forte bagunçou meus cabelos brancos e assobiou entre minhas orelhas de raposa, que se mexeram suavemente.
Ali, sozinha, suspirei fundo.
— Emily Bennett... — falei, quase em um sussurro.
Por que você me incomoda tanto?
Por que sua imagem não sai da minha cabeça?
Será por causa dos olhos? Daquele jeito irritantemente sincero de sorrir?
Ou talvez… porque, mesmo cercada de luxo e fama… você tem aquele mesmo olhar que eu vejo no espelho?
Um olhar solitário.
Encostei os braços na sacada, fechando os olhos por um instante.
Amanhã eu estaria ao lado dela.
Como sua guarda-costas.
Como sua sombra.
E ela não fazia ideia de quem eu era.
Do que eu podia fazer.
Do que eu já fiz.
Mas talvez…
Nem eu saiba ainda quem ela é de verdade.
Sorri de canto, abrindo os olhos lentamente.
O sol começou a se pôr, tingindo o céu de laranja e dourado.
Minha cauda, escondida até então sob o casaco, balançou suavemente, revelando os pelos brancos como neve pura.
— Que venha a princesa do caos. — murmurei. — A raposa branca está pronta.
A noite chegou silenciosa.
Como sempre, fui a última a sair da empresa.
Desci de elevador até o subsolo, onde meu carro me esperava sozinho, cercado por um sistema de segurança biométrica avançado. Um sedã preto, de vidros espelhados, com motor silencioso e blindagem especial — presente do próprio Sr. Richard no meu último aniversário.
Entrei sem pressa, liguei o carro, e deixei que a escuridão da cidade me envolvesse.
Minha casa ficava no alto de uma colina, afastada de tudo. Nenhum vizinho. Nenhum som. Só eu, os ventos noturnos, e o céu.
Desci do carro e caminhei pela longa entrada ladeada por lanternas japonesas que acendiam com sensores de movimento. Abri a porta da frente com um toque na maçaneta e entrei em um silêncio quase sagrado.
Nada de luxo desnecessário. Apenas o essencial.
Tatames. Espadas em exposição. Uma lareira baixa. Janelas de vidro que iam do chão ao teto.
E, claro...
minha parede de registros.
Caminhei até ela, tirando o casaco. Uma enorme estrutura de madeira onde estavam penduradas dezenas de fotos, selos de missões, fragmentos de jornais. Cada item era uma memória de um alvo neutralizado, uma pessoa protegida, uma missão cumprida.
Meus olhos pararam em um espaço vazio no canto superior esquerdo.
O único sem nada.
O único reservado.
— Emily Bennett... — murmurei. — Será que sua foto vai parar aqui?
Sorri sozinha e fui para o banho.
Água quente. Vapor. Pele quente. Corpo relaxado.
Deixei a água escorrer pelos meus cabelos brancos, sentindo cada gota como se purificasse os pensamentos que me perseguiam. Mas ela ainda estava ali. Mesmo com os olhos fechados, ainda via o rosto dela, sorrindo na televisão como uma atriz em um comercial.
Tentei dormir cedo. Mas não consegui.
Me revirei por horas no futon, ouvindo os sons da floresta lá fora.
Só adormeci quando o céu começou a clarear.
---
Acordei sem alarme. Sempre acordo sozinha. Meu relógio biológico é mais confiável que qualquer tecnologia.
05:12 da manhã.
Levantei e fiz meus treinos: 300 flexões, 200 abdominais, 1 hora de katas com a espada.
Depois, vesti o uniforme da corporação. Preto, elegante, moldado ao corpo, com a insígnia da raposa bordada discretamente no colarinho. Por cima, coloquei um sobretudo escuro, longo, de gola alta. Meus cabelos brancos estavam soltos, caindo pelos ombros. As orelhas, escondidas sob um capuz sutil.
Peguei os óculos escuros e saí.
---
A casa do Sr. Richard ficava em um dos bairros mais nobres da cidade. Mansão moderna, cercada por muros altos, vigilância de elite, sensores térmicos e dois cães gigantes na entrada — metamorfos também, é claro. Lobos cinzentos.
Eles me reconheceram e abriram espaço sem rosnar.
— Inteligentes — comentei, passando entre eles.
O mordomo me esperava na entrada. Um homem alto, vestindo um terno impecável, com expressão neutra.
— A Srta. Seo Yuna chegou. — anunciou ao microfone de lapela. — O Sr. Richard a aguarda na sala de chá.
— Obrigada — respondi, com um leve aceno.
Caminhei pelo interior da mansão. Estava tudo impecável, claro. Quadros caros. Esculturas raras. Espelhos limpos como cristais. Mas havia algo... frio.
Tudo era bonito. Mas vazio.
Encontrei o Sr. Richard sentado em uma mesa baixa, com uma chaleira fumegante à frente.
— Sente-se, Yuna. — disse ele, sorrindo com aquele cansaço nos olhos que só pais muito ricos e muito poderosos carregam.
Sentei-me com postura perfeita, as mãos sobre os joelhos.
Ele me serviu chá sem dizer nada por alguns segundos. Então, respirou fundo.
— Ela está no andar de cima — disse, finalmente. — Emily. Ainda está se arrumando. Está... animada. Não conhece você, claro. Só viu seu dossiê. Mas já fez mil perguntas.
— Imagino — respondi. — Devo chamá-la de "Senhorita Emily"?
Ele deu um pequeno sorriso.
— Chame como quiser. Mas, por favor... cuide dela. Eu não peço favores. Nunca. Mas essa... é minha filha.
— Eu entendo — falei, olhando nos olhos dele. — E farei o que for necessário.
Ele assentiu.
— Você vai morar com ela por um tempo. Haverá ameaças. Invasões. E talvez... uma guerra nas sombras. Estamos recebendo avisos de uma organização contrária aos metamorfos vivendo entre os humanos. E como ela é uma figura pública... é o alvo perfeito.
— Entendido.
Ficamos em silêncio por um momento. Então, ouvimos passos no andar de cima. Rápidos, leves. E... tropeços.
— AI MEU DEUS! — uma voz feminina gritou lá em cima. — EU CAÍ NA ESCADA DE NOVO!
O Sr. Richard suspirou, passando a mão na testa.
— Ela é... energética — disse ele, com um sorriso derrotado.
— Eu percebi — falei, tentando conter um sorriso. Mas falhei. Minha boca se curvou num leve traço divertido.
E então...
Ela apareceu.
Descendo as escadas com uma saia rodada, blusa de gola, meias altas e o cabelo castanho preso em dois rabos laterais. Os olhos violetas brilhavam como luzes de boate, e o sorriso que ela abriu ao me ver quase me fez parar de respirar por um segundo.
Ela correu até nós, animada, sem cerimônia.
— Você é a raposa branca?! — disse, com brilho nos olhos. — UAU! Eu pensei que seria uma senhora séria e com cara de demônio, mas você é... tipo... MUITO BONITA!
Pisquei.
Lentamente.
— Obrigada... eu acho?
Ela deu a volta em mim, me observando.
— E ALTA! CARAMBA! Você usa salto?
— Não.
— Então você é só... naturalmente alta e maravilhosa, é isso?
— ...é isso.
Ela sorriu.
— Eu sou Emily! Mas você já sabia, né? Hihi! E você é...?
— Seo Yuna. Mas pode me chamar só de Yuna.
Ela estendeu a mão. Eu hesitei... e apertei.
A mão dela era quente.
A minha, fria.
— Yuna... — repetiu ela, como se saboreasse o nome.
E por um momento, apenas um…
Eu senti.
O tempo desacelerar.
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