Dizem que uma única gota do veneno da Rosa Negra pode parar até o coração mais cruel.
Mas... o que acontece quando o coração da própria rosa também está envenenado?
O salão escuro era iluminado apenas pelas chamas trêmulas das velas. O perfume doce e letal do veneno pairava no ar enquanto Seraphina, a assassina mais temida do Reino de Lunaris, preparava-se para mais uma missão.
Ela era a arma secreta da realeza. Bela, mortal... silenciosa.
Seus lábios carmim escondiam uma maldição. Um beijo, e a vida de qualquer um chegava ao fim.
Seraphina se ajoelhou diante do trono, a cabeça curvada em reverência. À sua frente, a Rainha de Lunaris a observava com frieza. O salão era silencioso, exceto pelo leve estalar do fogo.
— O Reino de Aeloria cresce como erva daninha — disse a Rainha, a voz firme e implacável. — O príncipe Caelan ameaça nossas fronteiras, nossa linhagem... nosso futuro.
Ela se levantou, desceu os degraus lentamente, até ficar frente a frente com Seraphina. Segurou seu queixo com dedos gelados e ergueu seu rosto.
— Seduza-o. Beije-o. Elimine-o. — A rainha sorriu. — E lembre-se, minha flor... amor é mais traiçoeiro que veneno.
Seraphina não disse uma palavra. Apenas se ergueu com a dignidade silenciosa de quem já havia matado reis, generais e traidores.
Um criado se aproximou, trazendo um pequeno estojo dourado. Dentro, um frasco de batom reluzente, com a insígnia da Rosa Negra gravada em sua superfície.
Ela pegou o frasco com delicadeza. O beijo da morte estava pronto.
A noite era úmida e silenciosa na floresta que dividia os reinos. Seraphina caminhava entre as sombras, coberta por uma capa escura. O caminho era estreito, e o perigo, constante.
Ela não se surpreendeu quando ouviu o assobio de flechas.
Saltou para o lado no último segundo, rolando pela lama. Três figuras surgiram entre as árvores — caçadores ou mercenários — sorrindo como hienas diante de uma presa fácil.
— Uma dama sozinha na floresta? — zombou um deles. — Muito valente... ou muito tola.
Ela não respondeu. Em um piscar de olhos, sacou duas adagas curvas, afiadas como navalhas. Os homens atacaram, mas Seraphina era rápida. Feriu dois com movimentos secos e precisos. O terceiro, no entanto, conseguiu derrubá-la com um golpe no ombro.
O mundo girou.
Então, uma lâmina reluziu na escuridão. Um estranho surgiu, capa azul esvoaçando, espada em punho. Movia-se com elegância e precisão, derrotando os inimigos com facilidade.
Quando tudo terminou, ele se aproximou e estendeu a mão.
— Está bem? — perguntou, com um sorriso sereno.
Seraphina hesitou. Olhou para aquela mão forte, para os olhos cinzentos. Ele era jovem, belo... perigoso. E, por algum motivo, não parecia um simples viajante.
Ela aceitou a ajuda. O toque dele era quente.
— Não precisava se envolver — murmurou.
— E deixar três canalhas atacarem uma dama? Não está no meu sangue — disse ele, com um olhar provocador.
Ela não respondeu. Enquanto caminhavam pela floresta em direção a uma estalagem próxima, Seraphina o observava em silêncio. Seus passos eram firmes, o porte real.
Ele era bom demais com a espada. Havia algo naquele homem... algo que a deixava inquieta.
Em algum momento, ela pensou em testar seu veneno.
Um toque nos lábios. Um beijo fingido de agradecimento. Um fim silencioso.
Mas... ela não fez.
E aquilo a perturbou mais do que gostaria.
Mais tarde, já sozinha em um quarto simples de taverna, Seraphina limpava o ferimento no ombro em frente a um espelho rachado. Soltou os cabelos, castanhos como chocolate e ondulado como uma onda, e encarou o estojo dourado sobre a mesa.
Abriu-o. Pegou o batom, passou levemente no dedo e tocou uma rosa branca em cima da mesa.
A flor murchou em segundos, escurecendo como se queimasse por dentro.
O veneno funcionava. Estava ativo.
Ela se sentou, pensativa.
— Então por que ele ainda está vivo...? — sussurrou para si mesma.
Olhou para o espelho, para seu próprio reflexo.
— Quem é você, Caelan...? — murmurou. — E por que... você não morre?
A manhã chegou com névoa densa e silêncio desconfortável.
Seraphina deixou a taverna antes do nascer do sol. Ainda pensava no estranho da noite anterior. A forma como ele lutava, o olhar firme... e o fato de ter tocado sua pele sem qualquer sinal de envenenamento.
Ela caminhava pela estrada de pedra quando ouviu passos.
— Achei que você já teria partido — disse uma voz atrás dela.
Ela se virou. Lá estava ele.
O estranho da floresta.
— Você está me seguindo? — perguntou, erguendo uma sobrancelha.
— Tecnicamente, estou indo na mesma direção — respondeu ele, sorrindo. — E prefiro viajar com boa companhia.
— Ou com alguém que possa te salvar de caçadores — retrucou Seraphina, seca.
Ele deu uma leve risada.
— Toque justo.
Nome, aparência, habilidade com espada... tudo indicava que ele era alguém importante. E ainda assim... ele não se apresentava. Isso a incomodava.
— Ainda não me disse seu nome — ela falou.
— E você ainda não me disse o seu — ele respondeu.
Silêncio.
Eles se encararam por um instante.
— Me chame de Sera — ela disse, por fim.
Ele sorriu de lado.
— Cael.
Seraphina congelou por um breve segundo.
Cael... abreviação comum de Caelan.
Será possível...?
Ela não demonstrou nada.
— E para onde vai, Cael?
— Norte. Para Aeloria.
— Aeloria? — ela fingiu surpresa. — Vai ao coração do reino inimigo assim... despreocupado?
Ele deu de ombros.
— Aeloria não é tão terrível quanto Lunaris pinta.
Ela sorriu, mas por dentro, um frio a tomou.
Enquanto caminhavam, chegaram a um mirante natural. Dali, via-se o vale entre dois reinos: ao sul, Lunaris, com suas florestas escuras e torres negras. Ao norte, os campos dourados e cidades muradas de Aeloria.
— Lunaris e Aeloria são como espelhos quebrados — comentou Cael. — Dois pedaços de um império antigo, condenados a odiar-se para sempre.
— Que poético — disse Seraphina. — Ou você é apenas mais um idealista.
— Eu prefiro “realista que sabe sonhar”.
Ela riu pela primeira vez em dias. E se odiou por isso.
O riso a fez lembrar. De onde veio. De quem era.
Dos corredores sombrios do castelo onde cresceu.
Do salão de mármore negro, onde a Ordem da Rosa Negra treinava suas filhas para matar.
"Um beijo deve ser gentil, mas fatal", dizia a instrutora, deslizando veneno nos lábios de uma aluna. "Nunca tema o amor. Tema o que ele tira de você."
Ela se lembrava do primeiro beijo que matou.
Um espião traidor. Jovem. Risonho.
Ela o beijou. Ele caiu. E ela... nunca mais foi a mesma.
Ao anoitecer, acamparam perto de um riacho. Cael preparava uma pequena fogueira enquanto Seraphina fingia estar distraída.
Ela pegou uma folha e aplicou uma gota do batom venenoso enquanto ele não via. Depois, deixou a folha sobre uma pedra, próxima à mochila dele.
Horas depois, a folha ainda estava intacta.
Nada murchava. Nenhum efeito.
Impossível.
Esse veneno matava ratos em segundos. Flores em instantes. Humanos em minutos...
Ele tocou seu braço. Pegou sua mão. Encostou nos lábios da caneca dela. E continuava ali.
Ela o observava, sentada do outro lado da fogueira.
Ele sorria, brincando com uma pedra e assobiando uma melodia antiga.
— O que foi? — ele perguntou, notando o olhar.
— Você é... estranho.
— Já me disseram isso. Várias vezes.
Ela desviou o olhar.
Se ele fosse mesmo o príncipe Caelan... por que agia como um homem comum? E por que não a matava?
Ou pior... por que não morria?
Naquela noite, enquanto Cael dormia, Seraphina sussurrou para o vazio:
— Caelan de Aeloria... Se você for mesmo quem eu penso que é...
Ela segurou o frasco dourado, olhando para ele com os olhos pesados de dúvida.
— ...então este jogo já começou há muito tempo.
Fechou os olhos, com o batom venenoso ainda quente entre os dedos.
O céu de Aeloria era de um azul impossível — tão calmo que chegava a irritar Seraphina. O tipo de céu que fazia parecer que o mundo era justo.
Mas o mundo dela era feito de sombras, veneno e mentiras.
A carruagem cruzava a estrada principal em direção à capital. Cercada por colinas floridas e vinhedos, a paisagem era linda demais para ser real. Ao seu lado, sentado como se fosse apenas um viajante comum, Cael descansava com os olhos semicerrados, assobiando uma melodia ancestral.
— Está estranhamente calada hoje — comentou ele, sem abrir os olhos.
— Observo mais quando me aproximo do inimigo — respondeu ela, seca.
Ele riu com suavidade, como se estivesse se divertindo.
— Você é fascinante, Sera. Poucas pessoas conseguem ser tão afiadas sem sequer sacar uma lâmina.
— E poucas pessoas sangram quando esperam flores.
Ele a olhou, e por um segundo, algo passou entre eles. Algo que ela não queria nomear.
Chegaram ao entardecer num solar isolado, escondido entre vinhedos de uvas negras. Era uma antiga propriedade nobre, com arquitetura em pedra clara e heras escalando as colunas como serpentes verdes. Nada ali parecia ameaçador. Mas Seraphina sentia o cheiro de segredos no ar.
Assim que desceram, foram recepcionados por um criado alto e esguio, de olhos fundos e cabelos grisalhos bem aparados. Vestia-se com precisão impecável, e seus gestos eram cuidadosos como os de um cortesão.
Este era Lysander, o criado-mor de Aeloria.
> Ele era o tipo de homem que não precisava de uma coroa para exalar autoridade. Seus olhos tinham visto coisas demais, e sua voz era aveludada como seda, mas cortante como vidro. Ao inclinar-se para Cael e chamá-lo discretamente de “Alteza”, deixou Seraphina em alerta. Mesmo disfarçado, o príncipe era reverenciado em silêncio por seus próprios homens.
— Prepararemos os aposentos como de costume — disse Lysander. — Discrição total.
Cael apenas assentiu.
Seraphina fingiu não ouvir. Mas por dentro, o nome ecoava como um sino de guerra: Alteza.
À noite, jantaram sob candelabros altos, em uma sala silenciosa demais para dois viajantes. Havia vinhos finos, pão recém-assado e pratos com aromas luxuosos — comida de realeza, não de estrada.
— Qual o seu plano depois que chegar à capital? — perguntou ela.
— Visitar velhos amigos — respondeu ele, casual. — E talvez... mudar o destino deste reino.
Ela tentou sorrir. Mas o estômago apertava.
Após o jantar, ele a convidou para a sacada. De lá, viam o lago em formato de lua crescente refletindo as estrelas.
— Já esteve apaixonada, Sera?
— Já amei minha missão. Isso conta?
Ele a observou, sério por um instante.
— Às vezes, o dever nos faz odiar o que amamos... e amar o que deveríamos destruir.
Essas palavras a feriram mais do que qualquer lâmina.
Quando ele foi dormir, ela agiu.
Vasculhou seus aposentos com movimentos de predadora. Silenciosa, precisa. No fundo de uma gaveta secreta, encontrou um anel dourado com o brasão real de Aeloria — uma rosa cercada por espadas.
Ela o segurou entre os dedos, e as pontas afiadas da joia cortaram sua pele.
Sangue escorreu.
— Então é verdade... você é o príncipe — murmurou.
E ainda assim, continuava vivo, mesmo após tantos toques. Mesmo após tantas chances.
Voltou ao quarto com passos leves. Sentou-se na cama. Olhou-se no espelho.
A mulher que via ali não era só uma assassina.
Era uma arma rachada por dentro.
Uma peça que começava a duvidar do tabuleiro.
E a dúvida... era o veneno mais lento e mortal de todos.
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