Aos quarenta e dois anos, já vi mais morte do que a maioria dos homens enterrados no chão que eu comandei. Sou viúvo, pai de nenhum filho vivo, herdeiro de um trono feito de pólvora, osso e sangue. Não me tornei o que sou por acaso. Fui moldado pelo fogo, forjado pelo silêncio de um pai ausente e pelo ódio constante de um império podre, que eu mesmo tive que purgar para poder sentar no topo.
Nasci em Beirute, no ventre de uma guerra civil. Cresci ouvindo tiros como outros meninos ouvem canções de ninar. Meu pai, Ahmed Shadid, liderava a máfia libanesa com punho de ferro e coração de pedra — um homem que amava apenas o poder, e por isso, o respeitei mais do que amei. Eu era o mais novo dos filhos. O menor. O menos promissor. Mas também o mais atento. Enquanto meus irmãos buscavam aprovação, eu observava em silêncio, aprendendo onde o medo começava e onde o respeito terminava. E quando chegou a hora de assumir o império, não hesitei. Meu pai morreu com uma faca no pescoço durante um jantar com falsos aliados. Eu sorri por dentro, porque ali, naquela fração de segundo, o império passou a ser meu — e eu faria melhor.
Matei meu irmão mais velho três semanas depois. Traidor. Tentou vender rotas para russos em troca de grana fácil e putas mais jovens. Enterrei ele vivo, com a língua cortada, para que aprendesse que lealdade não se negocia. O outro irmão, Kamal, morreu por mim. Levou três tiros no lugar que era meu. Deixei o corpo dele exposto por dois dias na sede, como lembrança de que amor, no nosso mundo, é uma cicatriz — honra e dor, lado a lado.
Assumir a máfia não foi apenas tomar o trono. Foi esmagar ossos com as próprias mãos. Eu reformulei rotas, destruí concorrência, corrompi quem podia ser corrompido e exterminei o resto. Fiz alianças que custaram sangue, e desfiz alianças com o sangue dos outros. Deixei homens chorando pelas famílias que nunca mais veriam. Transformei desertos em cemitérios, e cidades inteiras em fortalezas com minha bandeira. Eu sou o motivo pelo qual mães rezam por proteção à noite — e o motivo pelo qual os pecadores não têm paz mesmo ajoelhados.
Sou estrategista. Não preciso gritar para ser ouvido, nem levantar uma arma para ser temido. Eu espero. Escuto. Analiso. Tenho paciência de predador e memória de carrasco. Posso fazer um homem implorar para morrer usando apenas um alicate, um pano molhado e duas horas de silêncio. Gosto de ver o momento em que o olhar quebra. Quando ele entende que ninguém vai salvá-lo, que não há escapatória, que sou eu quem dita quando e como termina. Para mim, torturar não é só punição — é arte. É método. É ciência. Gosto do som dos ossos se partindo. Da pele se abrindo. Gosto de ouvir promessas rasgadas na garganta de homens que achavam que nunca se dobrariam. O medo tem cheiro, gosto, temperatura. E eu conheço cada nuance dele.
Sorrateiro. Esse sou eu. Nunca ataco de frente quando posso cercar pelas sombras. Meus inimigos costumam morrer antes de saber que foram alvos. Posso sentar à mesa com você, brindar sua vitória, sorrir… e já ter plantado o buraco onde vai apodrecer. Sou discreto, meticuloso. Não sujo minhas mãos à toa, mas quando o faço, é porque quero que a dor seja pessoal. Precisa. Lenta.
Fui casado por sete anos. Leila era bela, culta, doce. Eu a mantive longe do que sou por tempo demais, como se esconder um monstro o fizesse deixar de existir. Quando ela morreu, eu não chorei. Não sabia mais como. Só assisti o corpo dela ser consumido pelas chamas, depois da explosão que deveria ter me matado. Um carro-bomba, plantado por um inimigo que depois se arrependeu de ter respirado no mesmo continente que eu. Torturei aquele homem por onze dias. Depois mandei os pedaços para a família dele — um por semana, durante dois meses.
A morte dela me destruiu por dentro, e o que sobrou… foi o que você vê hoje. Um homem que não ama. Não hesita. Não se curva. Eu sou o fim da linha. Sou o último olhar que muitos veem antes de apagar. O julgamento que não perdoa. A mão que constrói e esmaga com a mesma força. Não carrego misericórdia. Carrego nomes. Dívidas. E memórias de quem ousou me ferir.
Há quem pense que poder está no grito, na ameaça ou no tiro. Amadores. O verdadeiro poder está em fazer um homem confessar sem ser questionado. Está em sentar diante de três traidores e deixá-los implodir com o próprio medo, enquanto você apenas observa, em silêncio.
Estavam diante de mim. Samir, Raad e Ilyas. Ricos. Espertos. Aparentemente leais. Só que eu já sabia. Os três haviam vendido informações sobre meus carregamentos para os franceses — gente suja, fingindo neutralidade. Eles pensaram que estavam sendo discretos. Pensaram que eu estava distraído. O tipo de erro que custa caro.
— Acordos precisam de confiança, — eu disse, calmamente, servindo vinho tinto em meu próprio copo. — E confiança, senhores… se constrói na ausência.
Samir forçou um sorriso.
— Como assim, ausência?
Ergui os olhos para ele, sustentando o olhar.
— Na ausência de desculpas, de mentiras, de pressa pra se justificar.
Raad mexeu-se desconfortável. Ilyas, o mais jovem, molhava os lábios compulsivamente.
A mesa era longa, pesada, escura como a madeira queimada. Em cima dela, apenas três taças intocadas. Uma para cada um.
— Bebam, — ordenei. — Considerem um presente meu. Último gesto de boa vontade.
Eles obedeceram. A mão de Raad tremia um pouco. Não era o vinho que estava envenenado. Nunca é. A bebida era só um pretexto. A morte viria de outro jeito. Um mais lento.
— Vocês acham que me enganaram? Que vender informação não deixa rastro? Que alguém pode sair com documentos falsos da alfândega sem que eu saiba? — Soltei um riso breve, sem humor. — Vocês estavam sendo testados. E reprovaram.
Silêncio.
— Bassam, há um engano — começou Ilyas. — Eu nunca falei com franceses. Nunca.
Assenti.
— Verdade. Você não falou com eles. Mas permitiu que usassem sua senha no terminal. E no meu mundo, omissão é tão mortal quanto traição direta.
Me levantei. Dei dois passos até a estante atrás de mim. Abri uma pequena gaveta e retirei uma caixa preta de couro. Coloquei sobre a mesa.
Abri.
A lâmina de aço reluziu sob a luz tênue. Curta. Fina. Silenciosa.
— Tortura não é só sobre dor, senhores. É sobre exposição. É sobre tirar o que resta de dignidade antes da morte. E, sinceramente, estou curioso para ver o quanto vocês resistem.
Raad tentou levantar. Meus homens entraram antes que ele conseguisse dar dois passos. Imobilizaram. Forçaram os joelhos no chão. Samir começou a chorar. Ilyas desabou, tremendo.
Apontei para Samir primeiro.
— Ele. Quero ele consciente. Rasguem a camisa.
Um dos homens obedeceu. O peito dele exposto. Pele pálida. Tatuagens baratas de bravata.
Me abaixei diante dele. Com a faca na mão.
— Sabe o que gosto de fazer antes de cortar? — murmurei. — Observar a respiração. Quando ela acelera, o coração bombeia mais rápido. Isso faz o sangue jorrar. Mas se você mantiver a calma... ele escorre devagar. Como uma confissão líquida.
Enterrei a lâmina sob a clavícula. Samir gritou, alto, mas meus homens já tapavam a boca dele com um pano. Cortei devagar, não para matar — mas para lembrar.
Fiz questão de torturar cada um diferente. Raad perdeu os dedos com alicate aquecido. Ilyas teve os olhos vendados, e ouviu tudo — até o próprio nome ser chamado. Com ele, fui ainda mais cruel. Enfiei a faca sob as unhas dos pés. Vi o desespero silencioso escorrer pelo rosto dele.
No fim, amarrei os três, lado a lado. E me agachei diante deles.
— O que vocês fizeram não foi só uma traição de negócio. Foi um insulto à minha inteligência. À minha paciência. À minha história.
Fiz um sinal. E os corpos deles foram arrastados para fora.
— Mandem os restos para os franceses. Em sacos separados. Com flores libanesas amarradas no topo. Eles gostam de simbolismos.
Fiquei sozinho na sala. Respirei fundo.
Essa é a parte que poucos entendem.
Eu não gosto de violência pelo prazer gratuito.
Eu gosto do silêncio que vem depois.
Aquele momento sagrado… em que o medo morre.E tudo ao redor sabe — quem reina aqui… sou eu.
Eu sou Bassam Shadid. E onde eu passo, o mundo se cala.
Aceitar aquele jantar para conhecer a minha possível noiva não foi um ato de cortesia ou vontade de socializar, foi uma decisão estratégica, cuidadosamente calculada e alinhada com o único propósito que movia minha existência: manter meu império intacto e expandir meu controle. O mundo em que me movo é um tabuleiro de xadrez onde cada movimento deve ser feito com precisão cirúrgica, e esse jantar era uma jogada necessária para garantir que ninguém tivesse a audácia de se aproximar do meu território sem pagar um preço alto demais.
A noite começou com o ritual do preparo. O terno escuro, alinhado à minha pele como uma armadura invisível, não era apenas roupa — era uma declaração silenciosa de poder. O relógio de pulso, pesado, brilhava sob a luz fria do quarto, marcando cada segundo que me aproximava do jogo. Cada detalhe importava, desde o corte perfeito da camisa até o perfume amadeirado que deixava um rastro sutil, uma marca olfativa que dizia mais do que qualquer palavra poderia.
Ao sair da mansão, não estava sozinho. Um pelotão de homens experientes, treinados para a guerra e para a morte, me acompanhava. Atiradores de elite com olhares tão afiados quanto as balas que carregavam. Especialistas em combate corpo a corpo, silenciosos como sombras, prontos para rasgar qualquer ameaça com mãos que não tremem. Eles não eram apenas minha proteção; eram a extensão do meu comando, o braço armado do meu império, os olhos que nunca dormem.
Entramos no carro preto, um veículo blindado que parecia engolir a escuridão ao nosso redor. O motor ronronava baixo, o som do poder contido, enquanto nos deslocávamos pelas ruas iluminadas e cheias de olhares curiosos e temerosos. Cada curva, cada semáforo, cada reflexo nos vidros eram monitorados pelos meus homens, e eu sentia o peso da responsabilidade como um manto que não podia ser descartado.
Chegar ao local do jantar não era apenas atravessar uma porta — era entrar em um campo minado onde sorrisos falsos escondiam facas afiadas. Meus homens me deixaram no limite da entrada, desaparecendo nas sombras para garantir que nenhuma ameaça surgisse por trás. Eu caminhava com passos firmes, cabeça erguida, olhar que examinava tudo e todos, um predador na selva social.
O salão estava repleto de rostos conhecidos e outros mascarados pela hipocrisia do poder. Luzes suaves e música discreta não diminuíam a tensão no ar. Cada palavra dita era uma arma, cada gesto um teste. E eu estava ali para jogar, não para perder.
Aceitei aquele convite porque entendi que, para manter o controle, não basta ser temido no silêncio das sombras — é preciso também se mostrar entre as luzes, ser visto e, principalmente, ser compreendido. Aquela aliança, aquela troca de promessas e aparências, seria a cortina que esconderia o verdadeiro jogo. O que ninguém sabia, o que eu já sabia, era que naquela noite um novo elemento entraria no tabuleiro — uma presença muda e forte, que iria desafiar minha lógica de homem feito para governar pelo medo.
Eu não estava ali para celebrar. Estava ali para dominar, para cercar, para decifrar. E para mostrar que, mesmo rodeado por homens de aço e fogo, a verdadeira força que eu carregava era a mente — fria, calculista e implacável.
O jantar começava, mas para mim, a noite já tinha se transformado em um duelo silencioso onde eu seria o último a sorrir.
O som abafado das vozes cessou por um instante quando meus passos ecoaram pelo mármore polido do salão. Eu podia sentir — o respeito, o medo, a curiosidade. A combinação exata que mantinha a ordem nos meus círculos. Homens erguiam os olhos ao me ver passar, mas poucos sustentavam o olhar. Mulheres cochichavam entre si, algumas disfarçadamente desviando a atenção dos próprios acompanhantes. Aquela não era uma recepção calorosa, era um território neutro contaminado por tensão e obrigações políticas.
A decoração era luxuosa, mas sem alma. Tudo ali era calculado para impressionar: as colunas iluminadas, os arranjos florais caros, a música instrumental tocada ao vivo. Nada disso me afetava. Aquilo era pano de fundo para os verdadeiros jogos que se desenrolariam em conversas truncadas e olhares trocados.
Haydar, o patriarca da família Jalal, aproximou-se assim que me viu. O homem andava com a pressa artificial de quem queria parecer informal, mas estava suando sob o próprio terno. Quando me estendeu a mão, a apertei com firmeza suficiente para lembrar que favores não criavam igualdade.
— Shadid. Seja muito bem-vindo. — Sua voz tremia discretamente. — É uma alegria imensa recebê-lo.
— Não precisa parecer tão feliz. Ainda não comecei a falar. — Eu disse, sem mudar o tom, mas o olhar dele vacilou.
Ele forçou uma risada, e logo fez um gesto para que eu o acompanhasse até a área principal. A mesa de honra estava montada com todo o luxo esperado: cristais reluzentes, talheres de prata, pratos importados. E ali, no centro, como um prêmio cuidadosamente embalado, estava ela.
Yasmin Jalal.
O vestido vermelho-sangue contrastava com sua pele clara. Os cabelos longos e escuros caíam sobre os ombros como uma cortina de veludo, e o batom escuro parecia escolhido a dedo para chamar atenção para a boca e não para os olhos — o que fazia sentido. Os olhos estavam mortos. Não havia alma ali, apenas estratégia e obediência.
Ela se levantou quando me aproximei, e sua postura foi exata: nem submissa, nem arrogante. Estava treinada.
— Senhor Shadid — disse com um sorriso que não tocava os olhos. — É uma honra finalmente conhecê-lo.
Observei-a por um longo segundo, em silêncio.
— Espero que saiba o que essa frase significa.
Ela não respondeu de imediato. Desconforto sutil no fundo do olhar. Depois, curvou levemente a cabeça, como se fosse parte de uma coreografia.
— Significa que entendo meu lugar.
— Veremos. — murmurei, tomando meu lugar ao lado dela.
Os convidados voltaram a respirar assim que me sentei. Haydar se posicionou à frente, fazendo um discurso vazio sobre alianças, tradição, força familiar e promessas de união. Palavras decoradas que atravessavam meus ouvidos sem encontrar resistência. Eu não precisava das promessas dele. Precisei apenas de sua rendição silenciosa, da aceitação de que seu império familiar dependia da minha sombra para continuar existindo.
Yasmin manteve o papel com perfeição. Sorria quando devia, desviava o olhar nos momentos certos, mantinha-se firme e correta. Mas eu via além disso. Ela não era fraca. Era ambiciosa. Só não era estúpida o suficiente para tentar jogar comigo. Ainda.
Durante o jantar, as conversas circulavam ao redor como serpentes enfeitadas de joias. Velhos aliados vinham cumprimentar, bajular. Jovens herdeiros me observavam com um misto de reverência e inveja. Eu comia pouco, bebia menos ainda. Meus olhos estavam atentos ao que importava: aos movimentos nos cantos da sala, aos rostos ausentes, aos sorrisos exagerados.
Foi quando reparei na ausência. Uma cadeira vazia, posicionada ao lado da madrasta de Yasmin, uma mulher fria como porcelana e duas vezes mais frágil. Ninguém comentou sobre a cadeira. Ninguém parecia se importar. Mas eu, que fui treinado para ver o que os outros ignoram, senti o silêncio em torno daquela ausência como uma corrente de ar frio em meio à sofisticação ensaiada.
Yasmin percebeu que meus olhos pararam ali e tentou preencher o silêncio:
— Minha madrasta está esperando por uma... familiar. Ela deve chegar a qualquer momento.
Familiar. A palavra ficou suspensa no ar, ambígua.
— Espero que ela não seja como o restante da mesa. — Respondi com calma.
Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa pela franqueza. E talvez, por um instante, tenha compreendido que não era a única sendo observada.
O salão estava cheio de vozes que soavam como ruído branco aos meus ouvidos. Conversas vazias, cumprimentos treinados, taças tilintando como sinos anunciando o teatro do poder. A atmosfera era a mesma de sempre — um circo disfarçado de diplomacia, onde homens fingem cortesia enquanto calculam traições. Eu já havia escaneado todos os rostos importantes, mapeado alianças ocultas por trás dos acenos e dos brindes.
Yasmin, minha suposta futura noiva, se portava como era esperado: bela, artificialmente polida, com cada sorriso milimetricamente moldado para agradar. Ela cumpria bem o papel que lhe foi atribuído, mas não despertava em mim qualquer interesse além do político. Seu pai, por outro lado, representava uma peça valiosa no tabuleiro — por isso eu estava ali. Por isso aceitara aquele jantar. Alianças são seladas não com anéis, mas com sangue, e eu precisava garantir que essa união fosse vantajosa até o último fio de poder.
A madrasta da família, sentada ao lado do patriarca, era uma mulher perspicaz. Observadora, discreta, com a elegância de quem sabe seu lugar e, mais importante, como usá-lo. Ela fazia comentários suaves ao ouvido do marido, ria com modéstia, media os gestos. Estava ali como apoio e escudo. Os dois me olhavam com respeito. Yasmin fazia questão de tocar meu braço em intervalos que me lembravam o quanto ela queria parecer íntima de mim. Eu deixava. Era parte do jogo. Mas então, algo mudou.
A conversa perdeu força ao redor da mesa, como se o ar tivesse sido lentamente drenado do ambiente. Não foi algo dito, mas algo sentido. Um silêncio estranho pairou por segundos que pareceram longos demais. Meus sentidos, acostumados a detectar rupturas sutis, se aguçaram. Me virei com a naturalidade de um predador que fareja algo fora do lugar — e vi.
Ela.
Solitária, cruzava o salão com passos calmos, sem hesitação, sem pressa, sem medo. A luz suave do ambiente tocava sua pele clara como se a revelasse em outra frequência. Vestia-se com uma simplicidade que desafiava todas as outras mulheres ali presentes. Não havia joias pendendo de seu pescoço. Não havia maquiagem pesada moldando seu rosto. Nada nela gritava por atenção, e ainda assim, ela era o epicentro de tudo. Cada olhar, voluntário ou não, se voltava para ela. Mas ela não buscava esses olhares. Não parecia notá-los. Seus olhos — límpidos, intensos e sem urgência — não desviavam para lugar algum, como se vissem através das camadas do mundo, como se o peso daquela ocasião não a afetasse da maneira como afetaria qualquer outro ser humano.
Sua beleza não era ensaiada. Era natural, crua, desconcertante. Mas o que me atingiu não foi apenas isso. Foi o silêncio. Ela não falava. Ela não sorria. Ela apenas… existia. Com firmeza. Com presença. Com uma pureza que soava como profanação dentro daquele ambiente disfarçado de elegância. Quando se aproximou da mesa, o pai se levantou antes mesmo que ela parasse ao lado dele. E o modo como ele a olhou — com ternura real, com orgulho, com a reverência de quem segura algo que a vida raramente permite manter — foi a primeira coisa naquela noite que me tirou do eixo. Ele tocou sua mão como se o mundo ao redor não importasse, como se ela fosse um tesouro precioso demais para ser tocado por qualquer outra pessoa ali. A madrasta também se levantou, seu rosto suavizado por um sorriso que não era social, mas genuíno. E quando ajeitou um fio solto de cabelo da jovem atrás da orelha, o gesto, simples e afetuoso, dizia mais do que mil discursos de lealdade.
Foi então que vi a madrasta inclinar-se em sua direção e murmurar algo em seu ouvido. Alina não reagiu com palavras. Seus olhos piscaram com leveza, e, num gesto sereno, ergueu as mãos e respondeu em Libras. Seus dedos se moveram com fluidez, como se dançassem no ar — e aquela resposta silenciosa, carregada de significado, caiu sobre mim como uma lâmina oculta. Ela compreendia tudo, ouvia tudo, mas não falava. Era muda, não surda. E isso, por algum motivo, acendeu em mim uma faísca sórdida, um interesse que não nascia da compaixão, mas da fascinação que só os homens perigosos sentem quando se deparam com algo tão raro, tão fora do padrão, que não pode ser decifrado pelos códigos comuns.
O pai e a madrasta sorriram com naturalidade, acostumados àquela forma de comunicação que para mim era, até então, insólita. Mas não para ela. Para Alina, o silêncio não era ausência — era linguagem. E eu compreendi, naquele exato momento, que aquela mulher era o oposto do mundo que eu conhecia. Não fazia parte do teatro. Não era uma peça no jogo. Era algo fora dele. E exatamente por isso, se tornava a ameaça mais perigosa. Porque não podia ser manipulada pelas regras que eu conhecia. Não sorriu para mim. Não tentou se mostrar. Não se moldou para agradar. E por algum motivo que eu ainda não compreendia, aquilo acendeu dentro de mim um desconforto primitivo — não de medo, mas de alerta. Como se meu corpo, antes mesmo da mente, já reconhecesse que havia algo ali que fugia do controle.
Observei cada mínimo detalhe: o modo como ela acomodou as mãos no colo ao se sentar, como mantinha os olhos fixos em algum ponto do centro da mesa sem dispersar, como parecia ouvir sem reagir da forma esperada. E, mais do que isso, o modo como o pai e a madrasta não tentavam forçá-la a se encaixar. Eles a aceitavam. Eles a protegiam. Não havia vergonha ou constrangimento naquela dinâmica. Apenas cuidado. Apenas amor. E foi isso que me desequilibrou mais do que sua beleza ou seu silêncio: o fato de que ela era cuidada. Amada. Sem precisar dizer uma palavra sequer.
O mundo inteiro pareceu esvaziar-se por um instante. Eu, Bassam Shadid, o homem que fazia os poderosos se curvarem, que enterrava traidores com um sorriso e comandava um império de sombras, me vi ali — calado. Observando uma mulher muda que não precisava falar nada para desordenar meu eixo.
Eu não sabia o que ela representava. Mas sabia, com certeza, que não fazia parte dos planos. E tudo que não é previsto por mim… me fascina. Porque não existe nada mais perigoso para um homem como eu do que algo que não pode ser dominado.
O pai dela fez menção de se levantar outra vez, puxando levemente a cadeira ao lado de Alina, como se a simples presença dela justificasse uma nova reverência silenciosa ao ambiente. Seu gesto foi interrompido pela própria madrasta, que se adiantou com um brilho orgulhoso nos olhos, pousando a mão no ombro da jovem com um carinho sutil, quase ritualístico.
— Bassam... — ela começou, com a voz suave, cuidadosa, como quem está apresentando algo sagrado. — Esta é Alina. Minha enteada. Filha de Haydar... — seus olhos deslizaram até o marido, que assentiu em silêncio, com um orgulho mudo — ...e uma das criaturas mais preciosas que este mundo já teve a graça de conhecer.
Alina me olhou então. Direto. Sem desviar. Seus olhos eram grandes, límpidos, com uma profundidade que não vinha da dor ou da experiência — mas da percepção. Ela não carregava o peso do mundo, como eu. Carregava algo mais raro: uma consciência delicada, limpa de artifícios. Havia um brilho ali que desafiava a sujeira onde eu me movia. Um brilho que não deveria me interessar, e ainda assim, me desarmava como nenhuma arma jamais o fizera.
Ela me examinou, não como os outros faziam — com medo, com bajulação, com desconfiança —, mas com atenção genuína. Como se quisesse entender. E então sorriu.
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