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Entre a Virtude e o Pecado

Florence deseja vingança

Florence foi prometida a um monstro.

Não sabia quem ele era. Só ouvia histórias, o capitão de guerra, o cão de caça do imperador, um homem sem piedade. Recusou-se a aceitar aquele destino. Entregou-se a outro homem, achando que assim escaparia.

Mas ele a traiu.

Roubou tudo que ela amava

E fugiu com a criada.

A família, humilhada, a escondeu como se fosse lixo. Trancaram Florence em um manicômio, onde ela foi dopada, silenciada e esquecida.

Ela fugiu do inferno naquela noite.

Anos depois, Florence volta com outro nome. Mais fria. Mais perigosa. Com um único objetivo: destruir todos que riram enquanto ela era destruída.

E o homem que deveria ter sido seu algoz…

É agora sua única arma.

Capítulo 1

O interior da farmácia vitoriana era repleto de prateleiras de madeira, carregadas de frascos de vidro âmbar e verde, todos rotulados com letras em latim. Um balcão largo, dominava o centro do cômodo, onde repousavam balanças de precisão e pequenos instrumentos de metal. O ar era espesso com o aroma de ervas secas e álcool medicinal, misturando o cheiro da natureza ao da ciência.

Uma mulher vestindo um capuz marrom, desgastado pelo tempo, adentrou a pequena farmácia. Seus passos eram leves, quase silenciosos, como se não quisesse ser percebida. E ainda assim, era impossível ignorá-la. Ao se aproximar do balcão, ela retirou lentamente o capuz, revelando um rosto de beleza indescritível: a pele era digna da mais fina e polida porcelana, os olhos imensos e azuis como céu de inverno durante o dia e os cabelos, soltos em ondas, tinham o brilho como delicados fios de ouros usados para tecer. Havia de ser dito que cabelos tão longos, brilhante e bonitos não combinavam em nada com as vestes feitas quase de trapos.

Mas ainda assim havia algo de sagrado naquela imagem, como a presença serena de uma santa, quase como se fosse um teste, quando diziam que Deus vinha à terra em forma de um homem pobre para testar a bondade humana. De alguma forma aquela mulher exalava este tipo de energia.

Sem dizer uma palavra, pousou a cesta de palha sobre o balcão. Ergueu o olhar, afundando aquele farmacêutico em uma imensidão azul.

— Hoje colhi hortelã, echinácea e folhas de sabugueiro — Disse ela, afastando delicadamente o tecido que cobria a cesta, revelando as ervas frescas e cuidadosamente selecionadas.

— Senhorita Florence, já lhe disse, folhas de sabugueiro carecem de valor comercial. — Disse o farmacêutico, enquanto separava cuidadosamente aquelas das demais.

— Já lhe disse, senhor, que o sabugueiro é uma infusão valiosa, capaz de prevenir enfermidades e fortalecer o corpo — Declarou com firmeza, inclinando delicadamente a cabeça sobre o ombro, o olhar sereno, mas firme. — Muito bem, trarei camomila amanhã, fresca e bem escolhida.

O homem contou as folhas em silêncio e com a expressão contida de quem avalia a situação, entregou-lhe quatro moedas de cobre, colocando na palma da mão feminina com um leve tinindo dos metais batendo.

— Passei o dia inteiro a recolher estas ervas, poderia ao menos conceder-me seis moedas de cobre? — Dizia com os grandes e adoráveis olhos azuis brilhantes, era um tom de súplica adorável, como se gotejasse mel de suas palavras, qualquer desavisado cairia facilmente por aquele olhar.

— Eu te daria até moedas de ouro... — Um homem ruivo, magro de sardas dizia, segurando uma mecha dos fios femininos, com um sorriso torto, o olhar demorando demais em cada um dos contornos dela. — Mas não sem antes ter algo em troca, minha querida.

— Prefiro mil vezes ter a garganta dilacerada por lobos selvagens do que ceder a tamanha indecência. — Disse ela, sem disfarçar a repulsa em sua voz.

— Ora, não se faça de difícil, não seria justo deixar uma jovem tão dedicada a mendigar por meras moedas de cobre. - Dava um sorriso libertino e cheio de malícia para ela. — Diga-me, afinal, o que pretende por todo esse tempo se passando de casta e difícil? Uma recompensa maior, talvez? Se quiser ser minha esposa, basta dizer, não precisa demonstrar sua utilidade. Uma esposa bonita e capaz de carregar meus filhos é o único que me importa.

Ela desviou o olhar com calma, como quem poupa suas palavras para momentos mais dignos, recusando-se a conceder sequer um vestígio de atenção ao homem cuja presença lhe causava desconforto. Seus dedos continuaram a recolher as ervas recusadas pelo farmacêutico com delicadeza, enquanto seu semblante permanecia impassível, como uma estátua de mármore que não se dobra.

O farmacêutico suspirou, entregando-lhe mais uma moeda de cobre. — Creio que, infelizmente, a senhorita precisará.

A moça acenou com a cabeça, recolhendo a nova moeda com gentileza. — Agradeço profundamente, senhor.

O homem aproximou-se, o olhar duro e altivo, voz carregada de arrogância.

— Florence, atreve-se a me ignorar assim? Diga-me, qual motivo teria para desprezar alguém tão generoso quanto eu? — Seus olhos cravavam-se nos dela com um brilho frio, enquanto o cenho franzido denunciava uma ameaça velada, quase um aviso silencioso.

— Generosidade que se compra com insinuações nojentas e sem a honra não merece sequer um pingo de respeito. - Ela ergueu o queixo com serenidade e respondeu, a voz firme e cortante. — Sua arrogância. Essa presunção patética de se crer acima de todos nesta vila por ser apenas o filho de um senhorio insignificante, subordinado a um barão tão insignificante quanto. — Disse ela, puxando a cesta do balcão e erguendo o capuz com compostura. — Sem contar que é um alcoólatra indecoroso e perseguidor de mulheres.

— Uma plebeia miserável como você... como ousa dirigir-me tais críticas? — Rosnou ele entre os dentes, a voz embargada pela humilhação.

— Malic… você é tão plebeu quanto eu. — Disse ela, soltando em seguida um suspiro de exaustão. — A nobreza começa nos barões, para cima. O que você tem em excesso... é autoestima, não poder. — Suspirou outra vez, ajustando o capuz com elegância.

O homem a agarrou pelo braço de forma brusca e violenta, o olhar endurecido, a voz carregada de veneno.

— Melhor do que apodrecer naquela sua cabana imunda no meio da floresta... Aceite a esmola que lhe ofereço, Florence, antes que precise vender seu corpo para sobreviver. - Apertava com firmeza o braço feminino.

O tilintar agudo de um sino metálico cortou o silêncio abafado da farmácia quando a porta se abriu com um rangido das dobradiças envelhecidas.

Todos os olhares se voltaram por instinto, menos o de Malic, ainda agarrado ao braço de Florence, cego pela fúria.

A figura que surgiu ali era envolta em um traje militar escuro, mesmo com o tecido preto a quantidade absurda de medalhas que carregava no peito o faziam brilhar, mas a roupa não era nada comparada com a figura quase heróica que a vestia. Ombros largos, postura ereta, o ar de alguém acostumado a dar ordens, e ser obedecido. Aquele homem era de uma beleza que parecia não ser deste mundo, os olhos azuis profundos como o oceano, os músculos marcados mesmo em trajes tão formais, os cabelos negros como a noite, era deslumbrante a única palavra que cabia a ele.

Aquele deus grego encarou a farmácia, olhos pousaram na cena à sua frente com frieza crescente, como a lâmina de uma espada desembainhada lentamente. Não demorou nem meio minuto para que ele interpretasse exatamente o que estava acontecendo ali.

— Perdoem-me se soa como falta de decoro… Mas começo a crer que os homens do interior não merecem sequer ser chamados de homens. — Disse ele com voz firme, cada palavra polida como uma lâmina, envolta em uma elegância cortante.

Sem dizer uma palavra, o homem posicionou-se atrás da jovem e agarrou o antebraço daquele homem minúsculo e deplorável com firmeza, apertando o suficiente para fazê-lo soltar o braço fino de Florence.

Malic arfou, surpreso pela pressão, mas logo recuperou o ânimo, segurando o próprio antebraço, respondeu com voz carregada de desafio.— Quem você pensa que é? — Rosnou o filho do senhorio, o olhar faiscando com ira contida.

— Não importa quem eu sou. — Respondeu o homem, a voz firme e implacável. — O que importa é que você é um selvagem que se vale da violência para impor respeito. E lhe asseguro, responderei à altura. Então me diga: qual de nós dois será mais forte se seguirmos a sua lógica selvagem? — Ergueu uma das sobrancelhas, desafiador.

Era quase como se fosse uma frase cheia de sarcasmo, já que aquele homem facilmente passava dos 1,90m, tinha o corpo grande e repleto de músculos, quando Malic provavelmente tinha só seus 1,70m se é que chegava a isso. Tinha uma pança levemente sobressalente, graças aos dias se afundando em barris é mais barris de cerveja. Qualquer ser vivo que visse, diria com certeza quem ganharia uma briga.

Florence ergueu o olhar e fitou o rosto do homem que a havia salvado. Altíssimo, a ponto de a fazer erguer a cabeça para o encarar, com cabelos negros e brilhantes penteados a perfeição com pequenos fios escapando, que contrastavam com sua elegância e imponência. Ela com seus 1,55m olhava ele como uma imensa escultura. Quase irreal, a beleza dele era cruel, já que ele era tão provido disso, que qualquer homem perto dele parecia feio e sem charme.

— Você... — Murmurou Malic, menor e claramente mais fraco, mordendo o lábio inferior em irritação profunda ao analisar a cena e imediatamente se acovardar e fugir da farmácia, derrotado no silêncio.

— Quem era o indivíduo? — Perguntou o homem, aproximando-se do balcão com um ar decidido.

— My lord... — Respondeu o farmacêutico com um suspiro, desanimado — Aquele é o filho do senhorio da vila. Malic, seu nome. Um jovem problemático, sempre a causar problemas.

— Recordarei seu nome quando retornar. — Assentiu o homem. — Preciso de folhas de sabugueiro.

— Lamento informar que não dispomos no momento... Contudo, posso oferecer-lhe outras ervas que talvez sejam de utilidade. — Dizia apressado.

— Terei de navegar por um mar feroz no retorno para casa. Quero assegurar que os soldados mantenham o organismo forte. Embora previna o escorbuto, outras enfermidades acometem quem passa tanto tempo sem nutrientes decentes. — Apoiava a mão no queixo e pensava profundamente.

De repente, uma mão delicada segurou a barra da camisa dele.

— Eu tenho folhas de sabugueiro. — Disse Florence, com voz firme e tímida ao mesmo tempo.

Ele a olhou, surpreso.

— Você me venderia essas folhas? — Perguntou, encarando-a com um misto de respeito e interesse.

— Não. — Respondeu Florence, estendendo a cesta com firmeza. — Você acabou de me ajudar. Darei estas folhas a você.

— Não aceito ervas estranhas de uma mulher encapuzada. — Disse ele, recostando a cabeça no próprio ombro, com uma expressão meio desconfiada. — Me sentiria mais seguro se pudesse pagar por elas.

— Melhor ainda. — Disse ela, afastando o capuz com um gesto gracioso. — Se estas não forem suficientes, poderei colher mais.

O tecido caiu sobre os ombros dela, revelando um rosto iluminado por traços delicados e intensos: cabelos loiro-mel que emolduravam a pele alva, olhos grandes e expressivos, e lábios entreabertos em uma súplica contida. Havia algo hipnotizante naquela mulher, algo que fazia parecer errado continuar respirando normalmente. Ela não tinha joias, nem poder, mas havia uma nobreza natural em sua postura

— Agora compreendo a razão do capuz, — Disse ele, apoiando a mão no queixo, pensativo. — Se conseguir encher três cestas como esta com folhas de sabugueiro antes que eu parta com as tropas do território, pagarei-lhe seis moedas de ouro.

Os imensos olhos azuis dela brilharam com emoção, uma quantia considerável, quase equivalente a um salário anual para alguém em sua condição.

— E se eu conseguir encher mais que três? Digamos... Que tenho cinco cestas em minha casa. — Ela apoiou as mãos na cintura, sorrindo com confiança e audácia.

Ele ficou momentaneamente deslumbrado, não apenas pela beleza rara que se revelava em seu rosto angelical, mas também pela coragem e determinação que emanavam de sua postura. Uma mulher tão pequena, mas ainda assim cheia de força, não era uma cena que ele veria todos os dias.

— Seis moedas por três cestas, e para cada cesta adicional, acrescentarei uma moeda de ouro. — Cruzou os braços, um sorriso firme, curvando seus lábios.

— Excelente! — Florence respondeu, juntando as pontas dos dedos com graça, um sorriso confiante iluminando o rosto. — Onde se encontra o seu acampamento?

— Na entrada da cidade. Não estarei lá amanhã, irei até a casa do barão hoje onde pretendo dormir. Portanto, dispõe de um dia a mais. — Apoiou a mão no ombro dela, o olhar fixo e um tanto desconfiado. — Não conheço você, pequena bruxa e será melhor que não tente me enganar. Eu sou um general muito rigoroso, se só pensar em envenenar minhas tropas, não terei piedade mesmo que seja uma mulher.

— Não sou bruxa alguma. — Replicou ela, lançando um olhar firme ao pulso dele. Dando um leve empurro na mão masculina para retirar de seu ombro. — Sou médica e farmacêutica. E não enganarei um homem cujas abotoaduras são feitas de safiras. Claramente, é um nobre de alto escalão.

— Inteligente. — Disse ele, com um leve sorriso. — Meu nome é Alexander. Capitão Alexander, para quando vier entregar as ervas, procure por mim. — Assentiu com um aceno breve e saiu da farmácia, cumprimentando com um gesto o vendedor e a jovem mulher.

— Florence... — Murmurou o farmacêutico, apoiando a mão no queixo e lançando um olhar intrigado para ela — É sempre tão audaciosa. Enfrentar um duque desta maneira...

— Um duque? Tão jovem? E tão bonito? — Perguntou Florence, pousando a mão na bochecha, os olhos brilhando de surpresa. — Pensei que ele fosse um conde, no máximo. Que um duque estaria perdido por aqui?

— Parece estar retornando ao palácio imperial, depois de destruir aqueles bárbaros que tentaram nos invadir. — Respondeu o farmacêutico, cruzando os braços e soltando um suspiro. — Das quatro frentes, dizem que o cão de caça do imperador tomou três delas. A guerra terminou em apenas seis meses. — Fixou o olhar no horizonte da pequena farmácia. — Não sei se isso é uma dádiva ou uma maldição, estar do lado ao qual esse homem serve.

— Bem... — Florence sorriu, olhando para o farmacêutico com brilho nos olhos — A parte boa do “Cão do Imperador” resolver o problema é que homens assim como esse duque podem retornar às suas famílias em segurança e gerar descendentes vigorosos e saudáveis.

— Tens toda razão, minha cara. — O farmacêutico retribuiu o sorriso com sinceridade. — Tome cuidado em seu retorno, pois, como disse o duque, as tropas dele estão justamente no caminho para sua casa. E sabes bem que soldados que não veem mulheres por seis meses tornam-se... Perigosos.

— Agradeço sua preocupação. — Respondeu ela, puxando de dentro do avental uma máscara feita de meia velha, pintada de modo grotesco com o rosto de uma bruxa enrugada, quase assustador. — Mas, sempre carrego comigo esta proteção.

O farmacêutico caiu numa gargalhada sincera. — Você está sempre um passo à frente, minha jovem.

Florence riu, assentindo com um sorriso suave. — Irei caçar as folhas para o duque e, se encontrar algo interessante, trarei para você.

Ela acenou despedindo-se e saiu da pequena farmácia. Pensava na sopa que faria, com algumas cenouras e as batatas que encontrara na floresta, quase um banquete para si mesma.

Enquanto caminhava pela trilha ladeada por árvores antigas, Florence não pôde deixar de pensar no duque. Havia algo na postura imponente, no olhar firme e na elegância natural daquele homem que a prendia de imediato, uma beleza rara, temperada por uma aura de poder e mistério. Sua mente vagava até a esposa que ele deveria ter, certamente uma mulher de sorte para compartilhar a vida com tal figura. Imaginava, com um misto de admiração e melancolia, a fortuna que era estar ao lado de alguém tão respeitado e forte, nunca iria machucar sua mulher, já que claramente ele era um homem digno do nome. Florence pensava bastante naquilo, desde que se mudou para a floresta, proteção e força se tornaram coisas que ela admirava e ansiava. Ver um cavalheiro digno do nome, despertou ainda mais essa admiração nela.

Florence vivia da venda de ervas medicinais para a pequena farmácia do povoado, quando não achava nenhuma boa o bastante para ser vendida, ela acabava servindo de garçonete na taberna local. Mas ao retornar para sua cabana no fim do dia, era sempre o mesmo medo. Homens comuns, alguns curiosos, outros maliciosos, por vezes vigiavam suas ações, tentando espreitar sua humilde e pobre cabana. Por isso, ela mantinha todas as portas e janelas firmemente trancadas, principalmente depois do incidente terrível que a acometeu nos primeiros meses vivendo ali sozinha, quando um homem tentou invadir sua cabana, o que a forçou a se esconder debaixo da cama com uma faca, acabou passou a noite toda ali, mesmo depois do tal homem parar de tentar forçar a porta. A mulher nunca mais dormiu tranquilamente depois daquele dia, principalmente por que ficou mais atenta aos olhares maliciosos dos homens sobre ela, naquele vilarejo.

A existência dela era uma existência fraca, como mulher solteira, era ainda mais fraca, já que vivia isolada, não por opção, mas pela falta dela, as moedas mal a alimentavam, imagine pagar uma hospedagem no vilarejo? Era impossível para a pobre moça. Ela não tinha ninguém para a proteger ou defender. Por isso aquele pequeno ato do duque revirou tanto os pensamentos.

Ela suspirou suavemente, sentindo o ar fresco da floresta acariciar seu rosto. A vida que levava era feita de batalhas silenciosas, que lhe sussurrava em noites intermináveis. A liberdade que conquistou vivendo na floresta com tanto esforço era também seu fardo.

Houve tempos em que sonhava com dias tranquilos, com sorrisos e mãos que a protegessem sem pedir nada em troca. Mas a realidade cruel da vila e dos homens comuns que a habitavam ensinava a ela que a segurança era um luxo reservado a poucos.

Por isso, mantinha o capuz, o silêncio e a distância, armas invisíveis que a protegiam dos olhares lascivos.

(⁠ ⁠ꈍ⁠ᴗ⁠ꈍ⁠)

Na manhã seguinte, com o sol ainda tímido despontando no céu, Florence partiu para a floresta, as cestas penduradas ao braço. O ar fresco da manhã parecia lhe encher de uma força renovada. Em poucas horas, reuniu folhas suficientes para encher três cestas com facilidade, seu coração vibrando com o avanço. Voltou para a modesta cabana, empolgada com o progresso alcançado.

Planejava retornar no dia seguinte para colher mais uma cesta. Com o dinheiro que receberia, pretendia comprar madeiras para reparar as goteiras que há tempos lhe atormentavam. Quem sabe, com um pouco de sorte, poderia até mesmo se permitir o luxo de uma carne saborosa e algumas maçãs frescas? Apenas pensar nisso já a enchia de ânimo e felicidade, sim felicidade para ela, comer umas maçãs frescas.

Mais tarde, dirigiu-se à vila para adquirir alguns rabanetes para uma receita especial. Enquanto caminhava pelo mercado, sua atenção foi captada por duas mulheres que conversavam em voz baixa, não muito longe.

— Você ouviu? — Perguntou uma delas, olhando ao redor com preocupação. — O barão foi preso. Dizem que será julgado na capital. Nossa vila ficará sem governo por algum tempo, pois o filho do senhorio recebeu pena de morte imediata.

— Ouvi dizer que o próprio duque cortou a cabeça dele diante do pai... Uma cena horrível. — Completou a outra, a voz tremendo levemente. — O senhorio será julgado também, na capital.

Florence ficou imóvel por um instante, processando aquela notícia.

Ela retomou sua caminhada pelo vilarejo com as sacolas nas mãos e o passo calmo, mas o pensamento distante. Uma parte de si, silenciosa e discreta, sentia-se ligada aos acontecimentos recentes. Por mais que soubesse que o destino do filho do senhorio fora selado por seus próprios atos, não podia ignorar o fato de que, se o duque não tivesse aparecido naquela manhã, talvez ela estivesse entre as vítimas desse tipo de homem.

— Preciso ser ainda mais grata agora. — Murmurou para si, com um breve aceno de cabeça, como se reafirmasse um compromisso interior.

Ao chegar em sua cabana empoeirada e antiga, soltou um suspiro longo. A madeira rangia sob seus pés, as janelas ainda estavam cobertas com trapos para conter o vento, e a fumaça da lareira permanente tingia as vigas com fuligem. Mas era seu lar.

Colocou a panela sobre o fogo baixo, que mantinha aceso durante o inverno como única defesa contra o frio cruel, e começou a cortar os vegetais recém-comprados com movimentos hábeis. Enquanto picava os rabanetes e misturava com as batatas da floresta, um canto suave escapou-lhe dos lábios, sem que percebesse.

A verdade é que a vida não era fácil. Nunca fora. Mas desde que fora deserdada, desde que cortaram seus laços com a nobreza e a relegaram à margem, aquela liberdade rústica se tornara o ar que respirava. Era dolorosa, sim. Era uma luta diária por sobrevivência? Com certeza. Exigia sacrifícios diários. Mas era, de alguma forma profunda e inexplicávelmente, libertadora.

Viver com pouco. Ser dona de si. Escolher quem deixar entrar e a quem manter distante. Isso, para Florence, valia mais do que qualquer vestido bordado ou banquete em castelo dourado.

Capítulo 2

No dia seguinte, a jovem estava com suas cestas empilhadas, carregando TODAS com cuidado enquanto caminhava entre as árvores como um labirinto natural em direção ao acampamento militar, à margem da cidade. O vento puxava sua capa e os cabelos em fios soltos escapavam do capuz, mas Florence seguia firme, apertando os dedos ao redor das cestas.

O acampamento era uma fileira ordenada de tendas, carroças e cavalos. O cheiro de ferro, couro e fumaça dominava o ar. Soldados com mantos pesados se entreolhavam curiosos ao vê-la se aproximar.

– Olá! Eu vim a mando do capitão Alexander. – Anunciou, parando em frente à entrada vigiada por dois soldados de expressão desconfiada.

– Entrega de comida? – Um deles perguntou, erguendo a sobrancelha, examinando-a dos pés à cabeça. Enquanto outro abria a cesta do topo para bisbilhotar dentro.

– Não. – Respondeu com firmeza, estendendo as cestas. – Trago as folhas de sabugueiro que Capitão Alexander havia me pedido para a viagem.

O soldado hesitou por um instante, mas ao ver a seriedade nos olhos dela, tomou uma das cestas e a cheirou.

– Ah... é disso que o capitão tem falado tanto. Espere aqui, senhorita. Vou chamá-lo. – Disse por fim, desaparecendo entre as tendas.

Florence permaneceu imóvel, sentindo os olhares de alguns soldados recair sobre ela, curiosos, cínicos, alguns claramente inconvenientes. Mas ela manteve o queixo erguido, os ombros firmes.

Após alguns minutos, passos firmes sobre o chão seco anunciaram a aproximação dele.

Alexander surgiu imponente entre as tendas, com o sobretudo militar escuro balançando aos ventos aberto, mostrando a camisa branca com três primeiros botões abertos. O cabelo negro bem penteado brilhava à luz, e os olhos, de um azul vívido com reflexos escuros.

– Vejo que cumpriu sua promessa, pequena bruxa. – Disse Alexander, cruzando os braços com um leve sorriso nos lábios. Indicando para os soldados que peguem as cestas das pequenas mãos femininas. – E ainda chegou antes do prazo.

– Meu nome é Florence, meu senhor. – Disse, batendo delicadamente as mãos para remover a poeira do vestido, manchado pela terra, depois que as cestas foram pegas pelos soldados liberando a visão para seu corpo magro e pequeno.

– Recordarei de seu nome. Venha até minha tenda. Irei te dar sua recompensa e informar que tomei certas providências. – Acenou em direção à tenda central, começando a caminhar, seguido por ela.

– Providências? – Ergueu as sobrancelhas, acompanhando-o com curiosidade e um pouco de receio de estar a sós com um homem.

– Recorda do filho do senhorio da vila, aquele que a importunou há poucos dias? – Afastou o tecido que ocupava o lugar da porta, segurando para que ela passasse.

A jovem de cabelos loiros-mel, adentrou com cuidado, passando as mãos no vestido para desfazer os amassados e limpar a sujeira, pois deixava o mato para ingressar naquele ambiente, que mesmo sendo uma tenda era luxuoso em excesso para ela em seus trapos humildes.

– Sim, recordo perfeitamente. – Disse, parando diante dele, segurando uma mão com a outra, receosa e com o coração disparado. Quase como um gato acoado.

O homem entrou depois dela, deixando o tecido cair. – Eu já estava com reclamações sobre o controle da região. Muitos senhorios reclamaram do controle do barão, então fazia certo tempo que eu estava em uma investigação ferrenha sobre tal assunto. Infelizmente minhas investigações sempre foram desestabilizadas. Então fui em busca de satisfações acerca desse assunto e descobri que várias mulheres tinham queixas sobre um dos filhos de um senhorio como as suas queixas, senão piores. Portanto, era caso de prisão, já que violar ou tentar, quebra o código de cavalheiro, isso é algo que normalmente tomam seu título e te decretam prisão imediata. Quando exigi providencias com o barão, ouvi que se tratava de um jovem impulsivo a quem seria dada apenas uma advertência. Um discurso incompetente para me enrolar. Não pude aceitar um senhor de terras incapaz de manejar tal problema. Ao investigar a administração do território por parte de tal senhorio, descobri sonegação de impostos. Como capitão da guarda imperial, tenho o dever de enfrentar essa situação. Além disso, descobri dezenas de desvios do barão nos papéis do senhorio da sua vila, que nada mais era que o escudo do barão. – Apoiou a mão no queixo, explicando e apontou para uma cadeira. – Sente-se, por favor.

– Eu recuso. Sinto-me satisfeita por ter sido de ajuda. – Disse, com frieza.

– Bom, de qualquer forma a situação se resolveu graças a você. Já que eu descobri os crimes do barão quando achei seu escudo que era o senhorio. Você me ajudou de forma inestimável. – Colocou o pequeno saco de moedas de ouro sobre a mesa. Quando Florence estendeu a mão para pegá-lo, ele o retirou rapidamente.

– De qual família você é? – Ergueu uma sobrancelha, fitando-a atentamente.

A jovem loira arqueou as sobrancelhas, surpresa. – Perdoe-me?

– Sei bem que você é de linhagem nobre. – Sorriu, apoiando os cotovelos na mesa com um ar descontraído.

– Não sei do que fala. — Desviava o olhar, evitando seus olhos.

– Talvez você simplesmente esteja se escondendo... — Disse ele, cruzando os braços com um meio sorriso confiante. — Mas sou um homem acostumado a conviver com mulheres. Sei ler seus modos, seu porte, a forma como falam e gesticulam. A educação refinada, a elegância contida e essa frieza. Tudo isso são sinais de sangue nobre, inconfundíveis.

– Creio que está enganado, senhor. — Respondeu ela, segurando com firmeza o tecido do vestido, as mãos trêmulas. — Sou apenas uma plebeia.

– Não a forçarei a revelar o que não deseja, senhorita. Contudo, se por acaso vossa família tiver cometido algum ato cruel, pode confiar em mim. Farei o que estiver ao meu alcance para resolver a situação. Já presenciei muitas mulheres sendo vendidas a homens por culpa dos próprios lares. — Empurrou o saco de moedas para a beirada da mesa, o olhar firme.

Ela agarrou o pequeno saco, os olhos arregalados, não pelo peso, mas pela percepção dele, como se pudesse enxergar sua alma.

– Apenas peço que instrua meus soldados na preparação correta do chá com estas folhas, antes que eu se retire. Há quinze moedas de ouro reservadas para isso. — Cruzava os braços com um olhar analítico sobre ela.

Florence levantou-se com rapidez, o pequeno saco de moedas apertado contra o peito, mas a mente ainda imersa nas palavras do duque, que pareciam desvendar segredos ocultos em sua alma. Seus passos eram ligeiros, porém cautelosos, enquanto deixava a tenda, sentindo o peso do olhar dos homens ao seu redor. O ar frio da manhã acariciava seu rosto, mas havia uma inquietação em seu peito, cercada por tantos soldados, não podia evitar o receio que lhe apertava a garganta. Com o capuz ainda parcialmente cobrindo seus cabelos dourados, atravessou o acampamento, os olhos brilhando com uma mistura de determinação e cautela. Ao se aproximar dos soldados, ergueu a voz com clareza e firmeza, pronta para ensinar o preparo do chá de folha de sabugueiro.

A jovem explicava para os soldados da cozinha e instruía, enquanto ouvia atentamente o diálogo atrás de si.

– Souberam o motivo pelo qual nosso retorno está sendo adiado? – Comentou um dos soldados, mexendo distraidamente em um caldeirão. – Ouvi dizer que o imperador quer casar nosso senhor com a princesa. Por isso o duque está retardando a partida, não deseja esse casamento de maneira alguma… Mas não há razão oficial para recusá-lo, já que continua solteiro.

– Nosso senhor com aquela mulher cruel e sem estribos… – Resmungou outro. – Dizem que ela chicoteia os próprios servos por diversão. É óbvio que ele odeia a ideia. Maldita seja aquela noiva prometida que o abandonou para virar freira. Deixou nosso capitão à mercê de um destino abominável. Víbora egoísta…

– Devíamos encontrar outra noiva para ele, alguém digna. Mas quem? – Suspirou um terceiro, apoiando o peso do corpo sobre a mesa improvisada.

Florence permaneceu de costas para o grupo, mas seus ombros se contrairam levemente ao ouvir o nome da princesa e a possível união com o duque. A colher que usava para mexer as folhas na água parou por um breve segundo antes de continuar. Aquele homem não era casado? E para infelicidade dele, ainda seria forçado a um casamento indesejado. No fim das contas os dois estavam praticamente no mesmo barco. Ou não, já que ela conseguiu fugir, mas aquele homem, não poderia abandonar um exército e um território para fugir do casamento, a situação dele era pior pelo ver dela. Mas enfim, isso não era o problema de uma "plebeia".

Ela mordeu o lábio inferior com suavidade, ocultando qualquer expressão mais intensa. A ideia de que aquele homem, um capitão de guerra pudesse também ser sufocado por um casamento arranjado deixava um gosto amargo na boca, ninguém estava livre dos padrões da alta sociedade e de casamentos indesejados e infelizes.

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