As nuvens pesavam sobre o céu de Ardelar como um presságio antigo. Cinzentas e imóveis, eram como olhos fechados aguardando o momento certo de se abrir em trovões. A cidade baixa, com suas vielas de pedra molhada e janelas fechadas, parecia segurar o fôlego. E Kaela também.
Ela se movia em silêncio entre os corredores do templo de Nyros, o deus da ordem e da lâmina. Os pés descalços sabiam onde não ranger, as mãos sabiam onde não tocar. Aprendera cedo que o som de uma vassoura arrastada ou o deslizar de um balde mal colocado podia significar castigo — ou pior: atenção.
Kaela não queria atenção. Aos dezesseis anos, era mais sombra do que corpo. Uma das muitas órfãs levadas ao templo ainda bebê, crescera entre os servos, sem nome de família, sem rosto, sem voz.
— Mais rápido, sombra! — gritou a matriarca Sira, da galeria superior. A mulher segurava um bastão entalhado com as runas dos Juízes Celestes. — As pedras do altar não se esfregam sozinhas!
Kaela curvou a cabeça em obediência, mas seus olhos — âmbar escuro, quase dourado — brilharam sob a luz cinzenta que entrava pelas janelas estreitas do santuário. Ela não respondeu. Nunca respondia. As palavras eram perigosas.
Naquela manhã, contudo, algo parecia diferente. A eletricidade no ar não vinha só da tempestade que se formava no horizonte, mas de dentro dela mesma. Havia dias em que sentia um calor no peito — uma vibração baixa, como um tambor distante. Mas agora aquilo crescia, pulsava como um coração duplo dentro do seu.
Kaela não sabia o que significava. Só sabia que precisava esconder.
O templo de Nyros ficava sobre uma colina voltada ao palácio imperial, como se o deus da ordem observasse o trono dos homens com olhos severos. Dali, Kaela via os estandartes do Império tremulando, mesmo com o vento parado. Os símbolos dos Patriarcas — lâminas cruzadas sobre fundo negro — eram presença constante em cada rua, cada escola, cada livro permitido.
Dizia-se que o trovão era pecado. Um eco de tempos pagãos, quando rainhas falavam com os céus e moldavam tempestades com as mãos nuas. Mas essa era uma história contada apenas em sussurros entre as velhas que ainda bordavam espirais em seus panos, ou entre andarilhas que desapareciam no ermo.
Kaela não sabia por que seu peito queimava cada vez que ouvia a palavra "trovão".
Naquela tarde, enquanto esfregava as pedras do altar, a tempestade que pairava há horas enfim rompeu o silêncio.
Um estalo.
Não de fora, mas dentro dela.
Seu corpo arqueou involuntariamente, e a pedra em sua mão caiu, estilhaçando-se no chão. Uma dor quente atravessou sua espinha, como se relâmpagos rastejassem sob sua pele.
— O que foi isso? — rosnou a matriarca, descendo os degraus com raiva. — Que barulho foi esse?
Kaela se ajoelhou rapidamente, tentando pegar os pedaços. Mas suas mãos... tremiam. E havia luz nelas. Linhas tênues de energia cintilavam sob sua pele, como fios dourados.
— Mostre as mãos! — ordenou Sira.
Ela hesitou. Depois estendeu os dedos, palmas voltadas para cima.
O silêncio que se seguiu não foi humano. Foi um silêncio sagrado — pesado, denso, como se as próprias paredes do templo estivessem ouvindo.
A matriarca recuou um passo. O bastão em sua mão vibrou, e as runas acenderam como brasas.
— Heresia — murmurou. — Maldição de sangue.
Kaela não entendeu. Mas entendeu o que viria a seguir: perseguição.
Correu.
Saiu pela porta lateral do templo e mergulhou na floresta baixa que separava o monte do restante da cidade. Os galhos batiam em sua pele, as pedras cortavam seus pés, mas o trovão em seu peito rugia mais alto.
Ela correu sem direção, guiada por um instinto primitivo. Como se algo antigo e esquecido estivesse chamando-a, empurrando-a para longe.
Quando parou, horas depois, estava em uma clareira coberta por musgos. O céu estava vermelho com os últimos lampejos do pôr do sol. E ela não estava mais sozinha.
Uma mulher de cabelos prateados, com pele da cor da terra molhada e olhos como os dela, a observava. Vestia um manto surrado com o mesmo símbolo em espiral que ardia agora no peito de Kaela — mas o dela estava entalhado em metal e pendia de seu pescoço como uma promessa.
— Você ouviu o chamado — disse a mulher, com voz serena. — O trovão acordou em você.
Kaela respirou fundo, como se tomasse ar pela primeira vez.
— Quem é você?
— Uma das que sobreviveram. E você, pequena herdeira, é a primeira em gerações a manifestar o poder. Precisamos correr. Eles já devem estar te caçando.
— “Eles”?
A mulher olhou para o céu. Um trovão retumbou.
— Os Patriarcas. Eles mataram as últimas Rainhas Tempestuosas. Selaram nossa linhagem. Mas não conseguiram apagar o sangue. Agora, é sua vez de acender o céu.
Kaela sentiu o chão vibrar. Não era medo. Era algo mais.
Era poder.
A floresta de Nareth se estendia como um mar de sombras diante de Kaela. O caminho era irregular, repleto de raízes grossas e folhas úmidas, mas a mulher ao seu lado avançava como se conhecesse cada pedra, cada árvore.
— Me chamo Maire — disse ela, ao passo que o céu clareava atrás delas. — E você deve aprender rápido. Não temos o luxo da lentidão.
Kaela, ainda com a respiração cortada da corrida, lutava para acompanhar. As palavras de Maire pesavam. Rainhas. Linhagem. Caçada. Herdeiras. Tudo parecia fantasia arrancada das histórias proibidas que ouvia escondida, quando os outros servos dormiam e as velhas cochichavam memórias de um tempo em que mulheres reinavam ao som do trovão.
Mas agora, não era história.
Era ela.
— O que sou? — perguntou Kaela, enfim, a voz baixa como um segredo.
Maire não parou de caminhar.
— Você é uma Filha do Trovão. Uma herdeira direta da Primeira Rainha. O sangue corre em você, adormecido por gerações. E agora, despertou.
— Mas... eu não sou nada. Fui criada como serva. Eu nem tenho um nome completo.
Maire parou. Virou-se com olhos firmes e gentis.
— O trovão não escolhe pelos nomes que te deram. Ele escolhe pela alma. E a sua foi feita para romper o céu.
Kaela não respondeu. Mas dentro dela, algo concordava.
Em outro canto do império, muito acima da floresta de Nareth, os corredores da Torre de Astrel, a sede imperial, vibravam com outra energia.
— Há relatos no templo de Nyros. Uma manifestação. — A voz do conselheiro Arik era tensa. Ele segurava um pergaminho selado com cera negra e uma runa trincada — sinal de que a mensagem fora enviada com urgência.
No salão das runas, o Alto Patriarca Daeron se manteve em silêncio por longos segundos. Seus olhos — frios como metal polido — repousavam sobre o mapa do império. Cada região marcada com um símbolo. Cada província sob controle. A ordem era o seu império. E qualquer rachadura devia ser esmagada.
— Uma mulher? — perguntou por fim.
— Sim. Jovem. Nenhuma família identificada. Mas os relatos falam de luz nos olhos. Relâmpagos nas mãos. O mesmo símbolo... o espiral.
O som que Daeron fez era entre um suspiro e um grunhido.
— Então não erramos. A linhagem sobreviveu. O selo se rompeu.
— Devo reunir os Caçadores de Silêncio?
Daeron assentiu lentamente.
— Todos.
Arik engoliu seco.
— Todos?
— Cada uma dessas meninas deve ser encontrada antes que saibam quem são. Antes que se unam. Uma pode ser contida. Mas juntas... — Seus olhos fitaram uma tapeçaria antiga: uma mulher de braços abertos sob uma tempestade. — Juntas, elas quebram o império.
Enquanto isso, Maire e Kaela se abrigavam sob um penhasco natural coberto por samambaias densas. Um pequeno fogo crepitava, e Maire tirava pão seco e folhas de chá de um alforje de couro envelhecido.
— Existem outras como eu? — Kaela perguntou, mãos espalmadas sobre os joelhos.
— Sim. Escondidas. Disfarçadas. Algumas nem sabem o que são. Mas o selo se partiu quando você despertou. Isso significa que todas podem sentir agora. E se uma começa... as outras vão seguir.
— E o que acontece se os Patriarcas as encontrarem primeiro?
Maire olhou o fogo.
— Eles as matarão. Como fizeram com nossas mães. Como fizeram com as que vieram antes delas. Queimaram livros. Reescreveram lendas. Transformaram poder em pecado.
— E por que tanto medo de nós?
— Porque não podem nos controlar.
Silêncio.
Kaela encostou-se a uma raiz exposta, os pensamentos em turbilhão. A dor nos pés, o medo da caçada, as palavras duras da matriarca Sira. Tudo agora parecia pequeno diante do que se abria à frente. Uma verdade muito maior do que o templo permitia sonhar.
Ela fechou os olhos. Sentiu o eco do trovão dentro do peito. Pulsando. Esperando.
Quando os abriu, fitou Maire com firmeza.
— Onde estão as outras?
Maire sorriu.
— Agora você está pronta.
Na Torre de Astrel, o Alto Patriarca Daeron aproximou-se da tapeçaria ancestral. Passou os dedos sobre o tecido onde uma mulher com olhos de raio erguia os braços para o céu.
— O trovão voltou a falar — murmurou.
E pela primeira vez em décadas, ele sentiu medo.
Na vila de Vayenn, o céu parecia sempre um pouco mais azul. Distante dos centros imperiais, entre colinas suaves e campos de lavanda, o mundo parecia viver adormecido, alheio às guerras do passado e aos segredos que o império enterrava sob seus monumentos de pedra.
Era o fim da tarde, e Aurenya, filha de ferreiros e dona de uma risada escandalosa, caminhava sozinha pela encosta, colhendo galhos secos para o fogo da forja. A saia amarrada na cintura, os pés descalços, o rosto manchado de fuligem. Não se importava. Nunca fora como as outras garotas do povoado.
Desde pequena, ouvia os trovões como música.
— O som que os deuses fazem quando estão impacientes — dizia sua avó, entre uma gargalhada e outra.
Mas a avó morrera há dois invernos. E com ela, as histórias também se calaram.
Aurenya ajoelhou-se para pegar um ramo mais grosso, e quando o fez, sentiu a pontada: uma agulha de dor elétrica que percorreu seus dedos até o ombro. Gritou e recuou, soltando os galhos.
— Mas o quê…?
As mãos estavam formigando. Uma vibração quente percorreu seus braços. O vento ao redor pareceu mudar de direção, girando em torno dela como uma dança invisível.
O céu clareou.
Não com o sol, mas com um raio — que desceu, sem trovão, e atingiu o solo a poucos metros dela.
Aurenya ficou paralisada. O raio havia riscado o chão como um dedo traçando um símbolo.
Um espiral.
No alto da colina, dois homens de capas pretas observavam.
— É ela — disse um, com voz sem emoção.
— O selo está se rompendo mais rápido do que o previsto. Essa é a terceira em dois dias.
— O que faremos?
— O que sempre fazemos. Antes que ela compreenda o que é.
Os Caçadores de Silêncio se moviam como sombras. Os olhos ocultos, as espadas leves. Servos diretos do Trono. Nascidos para apagar rastros.
Aurenya corria de volta para a vila. Não sabia o que tinha acontecido, mas o raio… ele a chamara. Sentira isso. Como um sussurro antigo dentro de sua alma.
— Vó… — murmurou, quase sem fôlego. — Era isso que você queria dizer, não era?
Ao entrar no vilarejo, os olhares recaíram sobre ela.
— Aurenya? O que houve? — chamou o ferreiro Harvon, largando o martelo.
Ela hesitou. Todos a olhavam. Havia medo em seus olhos. Como se soubessem. Como se o céu tivesse contado.
— Nada — respondeu. — Eu só… caí.
Mas sua pele ainda tremia com faíscas. E quando tocou o chão da forja, ele vibrou sob seus pés.
Do outro lado do continente, Kaela acordava com um sobressalto.
— O que foi isso? — sussurrou, sentando-se.
Maire, já desperta ao lado da fogueira, apenas olhou para o céu, agora limpo, estrelado.
— Uma das suas irmãs sentiu o chamado — disse. — É assim que começa.
Kaela levou a mão ao peito. O espiral que antes só ardia agora pulsava, como um selo sendo quebrado do outro lado do mundo.
Ela não conhecia Aurenya.
Mas seu poder chamava.
Na vila de Vayenn, Aurenya se trancava no sótão da forja, as mãos ainda brilhando sob a luz do luar.
E enquanto os Caçadores se aproximavam pela escuridão, ela desenhava no chão — sem saber por que — o símbolo do trovão.
E pela primeira vez, quando a próxima rajada de vento soprou a janela… ela sorriu.
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