O som dos saltos de Bianca ecoava pelo mármore do hall como um metrônomo impaciente. Três toques secos no vidro da janela denunciaram a chuva fina lá fora, mas ela sequer desviou o olhar. O relógio marcava 21h37. Ele estava atrasado.
De novo.
Bianca Vasquez era uma mulher acostumada a esperas — audiências longas, juízes indecisos, clientes desesperados — mas havia algo particularmente irritante na espera pelo marido. Talvez fosse o fato de que ele nunca ligava. Nunca mandava mensagem. Nunca justificava.
Talvez porque ele fosse um estranho com quem dividia o mesmo sobrenome.
Ela puxou a gola do blazer para aliviar o calor morno da casa. A mansão Belmont era grandiosa, fria e silenciosa. Tão silenciosa quanto o casamento deles. Casamento. Ela riu baixo. Uma palavra que costumava desmontar corações agora era só uma cláusula contratual na vida dela.
Rafael havia concordado com a união por obrigação — ou mais precisamente, por chantagem emocional familiar. O patriarca Belmont queria limpar a reputação da empresa, e Bianca oferecia exatamente o que ele precisava: uma imagem pública impecável, conexões políticas, e um sobrenome respeitado na comunidade jurídica. Em troca, ela receberia segurança. Estabilidade. E, por que não? Uma vingança silenciosa contra a ideia romântica que um dia ousou cultivar.
O barulho de um motor no portão a fez franzir o cenho. Ela cruzou os braços e esperou.
A porta se abriu. Rafael entrou, a gravata pendendo frouxa, o cabelo castanho escuro levemente úmido da chuva, e os olhos tão azuis quanto o inverno escocês. Ele estava lindo. Sempre esteve. Pena que também era um idiota.
— Acha que ainda existe algo chamado “avisar que vai chegar tarde”? — ela disparou, sem disfarçar o tom ácido.
Ele a olhou, lento. Como se calculasse o peso do silêncio antes de respondê-la.
— Jantar com um investidor. Demorou mais que o previsto.
— Claro. Porque digitar três palavras no celular custa milhões em ações, não é?
Ele não mordeu a isca. Apenas jogou as chaves sobre a mesa de entrada e subiu as escadas.
Bianca ficou ali, parada, com o gosto metálico da frustração na boca. Era sempre assim. Ele chegava, ignorava, subia. Um casamento de fachada. Um acordo entre dois profissionais de sangue frio.
Mas ela se lembrava de cada detalhe da cerimônia. De como sua mãe chorou. De como os fotógrafos forçaram sorrisos. De como Rafael segurou sua mão com tanta indiferença que parecia um aperto entre desconhecidos em um elevador.
O que ela não sabia, no entanto, era que aquela noite seria a última com aquele Rafael.
Na manhã seguinte, a ligação veio.
— Senhora Belmont? — a voz do médico era urgente. — Seu marido sofreu um acidente de carro. Estamos estabilizando ele agora, mas... há um trauma craniano e também perda de memória.
Bianca congelou. Segurou o telefone com mais força.
— O que... que tipo de perda?
— Ele não se lembra dos últimos quatro anos.
Quatro anos.
Quatro anos atrás, ele nem sabia que ela existia.
Ela levou segundos para processar. Minutos para respirar. Horas até conseguir dizer alguma coisa. Mas quando desligou, algo dentro dela havia mudado.
Rafael Belmont não se lembrava de quem era ela.
E desde que assinou aquele maldito contrato de casamento, Bianca sorriu.
Um sorriso pequeno. Silencioso. E perigosamente malicioso.
O corredor do hospital tinha aquele cheiro estéril e impessoal que Bianca sempre associava à vulnerabilidade. E ela odiava se sentir vulnerável.
De salto alto, vestido preto de alfaiataria e cabelo preso num coque imaculado, ela parecia deslocada entre os jalecos e os olhares preocupados de familiares em poltronas desconfortáveis. Mas a aparência nunca fora um problema para ela. Sabia usar sua presença como uma armadura.
O médico a encontrou perto da recepção da UTI, segurando uma prancheta com papéis demais e empatia de menos.
— Senhora Belmont? — ele confirmou, ajustando os óculos.
— Dra. Vasquez. Belmont é... circunstancial.
Ele piscou, sem saber como responder. Bianca estava acostumada a causar esse tipo de desconforto.
— Rafael acordou há cerca de vinte minutos. Está estável, mas confuso. A tomografia mostrou uma concussão leve, mas significativa. O problema... é a memória recente. Ele parece convencido de que ainda está em 2019.
— E ele perguntou por alguém?
— Não por você. Ainda não.
A informação bateu fundo, mas Bianca manteve o rosto imóvel.
— Posso vê-lo?
— Sim, mas... prepare-se. Ele pode não reconhecer nada. Nem mesmo a si mesmo no espelho.
Ela assentiu e caminhou em direção ao quarto indicado. Cada passo ecoava em sua mente como um lembrete do que estava prestes a fazer. Ela deveria apenas consolá-lo. Esperar. Confiar na ciência.
Mas a verdade é que Rafael Belmont sempre a fez se sentir invisível. E agora... ele era o invisível. O perdido.
Ela empurrou a porta devagar.
O quarto era silencioso, iluminado apenas por uma luz suave próxima à cabeceira. Rafael estava recostado, os olhos fixos no teto. Ele virou o rosto lentamente ao ouvi-la entrar.
Os olhos azuis, tão familiares e distantes ao mesmo tempo, encontraram os dela — e ficaram vazios.
— Olá — ele disse, com voz rouca. — Você é...?
— Bianca — ela respondeu, devagar, como se testasse o gosto do próprio nome nos lábios. — Sua esposa.
Rafael piscou algumas vezes, visivelmente desnorteado. Tentou se sentar melhor, mas a cabeça pesava.
— Minha... esposa?
Ela se aproximou, pegando a cadeira ao lado da cama com calma.
— Nós nos casamos há dois anos.
— Dois... — ele murmurou, pressionando os dedos contra a testa. — Isso não faz sentido. A última coisa que lembro é de estar em Barcelona. Com a... minha ex.
Bianca sorriu, contida.
— Muita coisa aconteceu desde então.
Ele olhou para a mão esquerda, à procura de uma aliança. Estava lá, discreta e brilhante. O símbolo mais mentiroso do mundo.
— E... como a gente se conheceu?
Ela inclinou levemente o corpo para frente, como se fosse contar um segredo.
— Você trabalhava para mim.
Rafael arqueou as sobrancelhas, perplexo.
— Trabalhava?
— Era meu motorista. Um dos melhores que já tive, diga-se de passagem. Tinha opinião demais pra um empregado, mas... era interessante.
— Isso não pode estar certo — ele disse, balançando a cabeça.
— Você era orgulhoso no começo — ela continuou, como se estivesse contando uma lembrança verdadeira. — Mas acabou me encantando. Com seu senso de humor, sua dedicação... e seu silêncio. Sempre preferi os silenciosos.
Ele desviou o olhar, tentando digerir a informação.
— Eu era seu... motorista?
— Era — ela confirmou, sem hesitar. — Mas acabou se apaixonando. E, contra todas as probabilidades, eu... também.
Silêncio. A mentira flutuava entre eles, tão doce quanto venenosa.
— Você não precisa se preocupar com nada agora — ela disse, levantando-se. — Está seguro. Está em casa. E eu... vou cuidar de você.
Enquanto saía do quarto, o som baixo da televisão ligada preenchia o vazio. Bianca não olhou para trás. Sabia que, com o tempo, a memória dele talvez voltasse. Mas, por enquanto, ele era um quadro em branco. E ela era a única com tinta nas mãos.
Ela caminhou até o elevador com passos leves, quase dançantes.
Naquele instante, Rafael Belmont era exatamente o que nunca fora antes para ela: um homem ao alcance do toque.
Um desconhecido moldável.
E ela, a esposa ideal — do jeito que ele nunca imaginou.
Bianca serviu-se de uma dose generosa de vinho tinto e, pela primeira vez em muito tempo, sentou-se com calma à cabeceira da mesa de jantar da mansão Belmont. O lugar estava vazio, como sempre. Mas naquela noite, o vazio tinha gosto de possibilidade.
Ela pegou o celular e discou o número de Esther Belmont, a matriarca — e uma das poucas pessoas naquele mundo que não ousavam interrompê-la.
— Bianca? — a voz do outro lado atendeu após dois toques, fria e precisa como um bisturi. — Já são quase dez da noite.
— E eu achei que você não dormia antes da meia-noite.
Esther suspirou.
— Algum problema com Rafael?
Bianca girou lentamente a taça entre os dedos.
— Na verdade, sim. Ele sofreu um acidente hoje. Bateu o carro sozinho. Foi algo sério, mas está estável.
— Meu Deus — a voz de Esther oscilou, surpresa. — Onde ele está?
— No Saint James, quarto 403. Mas não é só isso. Ele perdeu a memória dos últimos quatro anos.
Silêncio.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que seu filho acordou achando que ainda está solteiro, livre e descompromissado. E pior — ele não lembra de mim. Nem do nosso casamento. Nem da empresa. Nem da sua última tentativa de interná-lo em um retiro espiritual na Suíça.
Outro silêncio. Mais longo.
— E como ele está? — agora era a voz de Alfredo Belmont, que havia pegado o telefone no viva-voz.
— Confuso. E aberto a histórias.
Ela deixou o peso da frase pairar no ar. Depois completou, com a precisão de quem redige cláusulas:
— Contei a ele que a empresa faliu. Que vocês o abandonaram após anos de rebeldia. Que ele trabalhava como meu motorista quando nos conhecemos. E que, por compaixão, acabei me casando com ele.
— Você está... brincando — murmurou Alfredo, entre chocado e fascinado.
— Estou dando a ele a chance de ser alguém diferente, Alfredo. Pela primeira vez. Não acha justo?
Esther retomou o controle da conversa.
— Bianca, você tem ideia do risco que está correndo?
— Vocês o conhecem. Sabem o tipo de homem que ele era. Tóxico. Desrespeitoso. Entregue à própria vaidade. Eu fiz o que vocês pediram: segurei a imagem da família Belmont enquanto ele destruía a credibilidade da marca. Fui esposa exemplar para um marido ausente. E agora, por um capricho do destino, tenho em mãos uma oportunidade rara.
— Você quer... reprogramá-lo? — Esther perguntou, com frieza clínica.
— Quero reformular a verdade. Um pequeno teatro. Só por um tempo. Se ele voltar a ser quem era, eu desfaço tudo. Mas se não... bem, talvez ele se torne um homem digno da posição que ocupa. Digno do nome que carrega.
Alfredo pigarreou.
— Você sempre foi ambiciosa, Bianca. Mas também sempre foi sensata.
— E vocês sempre quiseram um herdeiro funcional. Agora têm uma chance. Ele me ouve. Me respeita. Ele acredita que depende de mim. Pela primeira vez, ele me olha como se... como se eu fosse alguém que importa.
Esther suspirou. Longo. Profundo.
— Muito bem. Se essa for a história que ele vai ouvir... que ouça de todos. Vamos manter a farsa.
— Ajudarão com detalhes? O afastamento da empresa, a falência, o desprezo familiar?
— Deixaremos o nome Belmont adormecido, por ora — disse Alfredo. — Mas cuidado, Bianca. Com grandes encenações, vêm grandes consequências.
Bianca sorriu, mesmo que ninguém pudesse ver.
— Eu sou advogada de divórcios, Alfredo. Sei exatamente o que as mentiras custam. Mas também sei o que elas compram.
Quando desligou, o celular ainda vibrava com o peso do acordo.
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