Chovia.
Não muito — o tipo de chuva fina que borrava os vidros dos carros e deixava a cidade com cheiro de asfalto molhado e desilusão. Isadora olhava pela janela do táxi, o queixo apoiado na mão, os olhos perdidos entre os reflexos e as luzes embaçadas dos postes.
Não era comum voltar para casa naquele horário. Ela sempre saía mais tarde do trabalho às sextas. Mas algo naquele dia estava estranho.
Um silêncio. Uma ausência. Uma sensação incômoda na nuca, como se o universo cochichasse alguma coisa que ela ainda não podia entender.
O celular vibrava há horas no modo silencioso dentro da bolsa. Mensagens não lidas. Ligações não retornadas. Mas ela não pegou. Não queria contato com ninguém. Só queria chegar em casa, tomar banho, deitar no sofá com uma taça de vinho e assistir à série que ela e Henrique tinham combinado de começar juntos. Como todo casal que ainda finge que está tudo bem. Ela sabia que ele viajaria naquele dia, já tinha deixado as malas prontas como ele pediu. Ele apenas passaria em casa para pegar e seguiria viagem.
O motorista parou na frente do prédio e ela agradeceu com um sorriso fraco. Entrou pela garagem. Preferia subir pelo elevador interno quando queria passar despercebida. E naquela noite, mais do que nunca, queria ser invisível.
O apartamento estava em silêncio. Nenhum som de televisão. Nenhuma música de fundo. Nenhum cheiro de comida. Mas havia algo no ar. Algo que não era dela.
Ela deixou a bolsa sobre a mesa da entrada e ficou parada por alguns segundos. Escutou.
Risos. Dois.
Um masculino, abafado. Outro feminino, mais agudo.
O som vinha do andar de cima.
Do quarto.
Do quarto dela.
Subiu os degraus como quem caminha dentro de um sonho ruim. Cada passo era uma confirmação do que ela ainda não queria acreditar.
A porta estava entreaberta. E ela viu.
Sem precisar entrar.
Sem precisar ouvir nenhuma explicação.
Henrique estava ali.
Nu. Relaxado. Satisfeito.
E com ele… Clara.
Clara.
A mulher que segurou sua mão no dia do casamento.
A mulher que viu Isadora chorar de nervoso no provador do vestido.
A mulher que dizia frases doces e fazia cafés fortes, que sabia todos os detalhes da vida dela.
O tempo parou.
O coração também.
Eles riam. Tocavam-se com intimidade. Sussurravam como se o mundo não existisse do outro lado da porta.
Isadora observou em silêncio. Por um segundo, pensou que fosse gritar. Que fosse jogar tudo pelos ares. Mas não sentiu raiva.
Sentiu algo pior.
Sentiu o vazio.
Era como se, por dentro, estivesse morrendo de forma silenciosa, fria e definitiva.
Virou-se.
Desceu as escadas com a mesma calma com que subira.
Lá embaixo, o abajur ainda estava aceso. A luz suave iluminava os porta-retratos espalhados pela sala. Sorrisos congelados. Lembranças de uma vida que nunca foi tão real quanto ela imaginou. Havia uma foto dos três juntos: Isadora, Henrique e Clara. O trio inseparável.
Que ironia.
Ela pegou a bolsa de volta, abriu a gaveta da mesa de apoio e tirou um envelope com algum dinheiro guardado para emergências. Também pegou os documentos, o celular e um casaco leve.
Nada mais.
Nem joias.
Nem malas.
Nem adeus.
Abriu a porta devagar, respirando o ar úmido da rua como se fosse o último suspiro de quem decide renascer.
Andou até o ponto de ônibus da esquina, sem olhar para trás. Cada passo parecia arrancar um pedaço da mulher que havia sido até ali.
Não chorou.
Não correu.
Não hesitou.
Entrou no ônibus como uma sombra. Sentou na última fileira. Ninguém notou sua presença. Era como se já tivesse desaparecido do mundo.
E de certo modo… havia desaparecido mesmo.
Naquela noite, Isadora não morreu.
Mas deixou de existir.
E ninguém jamais seria capaz de encontrá-la.
Porque não era uma fuga qualquer.
Era a construção silenciosa da própria vingança.
A rodoviária estava quase vazia. Assim como Isadora se sentia naquele momento.
Isadora sentou-se no banco de metal, encolhida no casaco leve que trouxera às pressas. O ar da madrugada cortava como navalha, mas ela mal sentia o frio. O estômago estava embrulhado, mas não era fome.
Ela olhava o letreiro luminoso que anunciava os próximos destinos como quem observa uma vitrine de vidas possíveis. Era madrugada de sábado. O mundo dormia. E ela, pela primeira vez em muito tempo, estava acordada de verdade. Havia despertado do sonho que ate pouco tempo atrás achava que vivia.
Pela primeira vez… livre.
Não havia plano. Nenhum roteiro. Nenhuma mala feita com cuidado. Mas havia uma certeza imutável: ela não voltaria.
Tirou o celular do bolso. Ainda estava intacto. Nenhuma notificação, mas ela sabia que era só uma questão de tempo até que os chamados começassem a chegar. Por isso, sem hesitar, desligou o aparelho, retirou o chip com dedos trêmulos e o partiu em dois com uma mordida seca, como se selasse o fim de uma era. Jogou os pedaços na lixeira mais próxima, sem olhar para trás.
A partir daquele momento, Isadora estava oficialmente incomunicável.
Nem Henrique.
Nem Clara.
Nem seus pais, seus amigos, seus conhecidos.
Ninguém.
Todas as mensagens ficaram para trás, repousando em um dispositivo que já não teria mais utilidade. Fotos, conversas, áudios, lembranças digitais de uma vida que se encerrava ali mesmo, entre a plataforma fria e o estalido dos alto-falantes anunciando partidas.
Foi até o guichê com passos decididos e comprou a passagem em dinheiro. Nenhum cartão, nenhum registro. Um destino aleatório, escolhido com os olhos fechados. Uma cidade esquecida no mapa, onde ela jamais pensou em pisar. Era isso que queria agora: ser ninguém, em lugar nenhum.
O ônibus partiu às 3h14 da manhã. O horário exato não importava, mas ela o gravaria para sempre. Era o momento em que deixava de ser quem o mundo conhecia. Sentou-se ao lado da janela, o corpo encolhido, os braços envolvendo o próprio tronco como se pudesse impedir a alma de se despedaçar.
Não chorou.
Já tinha derramado lágrimas demais.
Do lado de fora, a cidade escorria pela janela em tons borrados de luzes e chuva. O asfalto molhado refletia as lembranças que ela se recusava a carregar. Ruas que contavam sua história, agora viravam estranhas, apagadas pela água e pela escuridão.
No bolso interno do casaco, apenas os documentos essenciais. Nome completo. CPF. RG. Tudo ainda estava intacto, tudo ainda dizia “Isadora Vasconcellos”. Mas ela sabia que, em breve, isso também teria que desaparecer. Se quisesse sumir de verdade, teria que morrer. Não de corpo, mas de existência.
Desaparecer sendo mulher, rica, casada, conhecida… não era simples. Não se tratava apenas de sumir, mas de arquitetar o sumiço com precisão. Um erro, uma ponta solta, e todo o esforço se desmancharia como areia entre os dedos.
Sumir com inteligência exigia estratégia.
E ela aprenderia.
Mesmo que precisasse pagar o preço mais alto.
Adormeceu por intervalos curtos, entre solavancos da estrada e pensamentos que vinham como punhais. Acordava com o rosto colado ao vidro gelado, tentando lembrar de quem era antes de tudo desmoronar. Antes de Henrique transformar amor em prisão. Antes de Clara roubar dela o que havia de mais precioso. Antes de o mundo virar de cabeça para baixo.
Horas depois, o ônibus parou.
O céu ainda estava cinzento, o sol nascendo tímido por trás de nuvens pesadas. O cheiro de terra molhada invadia tudo, misturando-se com o bafo quente do motor. Ela desceu do ônibus com os mesmos poucos pertences que carregava desde o início. Uma bolsa pequena, um casaco leve, e uma decisão definitiva.
Agora ela precisava de um novo nome. Uma nova história. Uma nova pele. Um lugar onde pudesse recomeçar… sem rastros. Sem desconfianças. Onde pudesse existir de novo sem a sombra de quem foi.
Ali, naquela cidade esquecida pelo tempo, cercada por montanhas e silêncios, ela escolheu renascer.
Mas a mulher que caminhava pela calçada úmida, com passos calmos e um olhar que escondia cicatrizes profundas, já não era mais Isadora Vasconcellos.
Era outra.
E o mundo jamais descobriria quem.
O ônibus mal havia desaparecido na curva da estrada quando Isadora cruzou os portões da pequena rodoviária.
A cidade era pequena. Fria. O tipo de lugar onde todo mundo se conhece e, por isso mesmo, se esconde. As ruas estavam quase vazias. As fachadas das casas eram modestas, com janelas baixas e muros cobertos de trepadeiras. Ali, ninguém esperava luxo — e isso era exatamente o que ela precisava.
Caminhou sem pressa pelas calçadas de pedra. Observava tudo com atenção: a padaria no canto da praça, o café silencioso com toldos vermelhos, o letreiro da pensão antiga que oferecia quartos por diária ou semana.
Parou ali.
Uma mulher idosa a atendeu na recepção. Simples, cordial, sem perguntas demais.
— Só por uns dias — Isadora disse, sorrindo com os lábios, mas não com os olhos.
— Está fugindo de algo? — a senhora perguntou com bom humor.
— De mim mesma — respondeu. E não era mentira.
Pagou adiantado, em dinheiro. Subiu as escadas estreitas com passos firmes. O quarto era pequeno, mas limpo. Uma cama com lençóis floridos, uma escrivaninha, uma janela com vista para a praça central.
Isadora largou a bolsa sobre a cadeira e sentou-se na beirada da cama. Respirou fundo.
Ali, ninguém a chamaria pelo nome.
Ali, ninguém perguntaria sobre Henrique.
Nem sobre Clara.
Nem sobre o que ela havia deixado para trás.
Levou as mãos ao cabelo, desfez o coque, e o cheiro do antigo perfume ainda estava ali. Um lembrete.
Levantou-se de repente e entrou no pequeno banheiro. Abriu a torneira da pia, molhou o rosto e depois abriu a bolsa. Retirou tudo que tinha. Documentos, cartões, o passaporte vencido, fotos antigas.
Tudo foi jogado dentro da pia.
Pegou o isqueiro da gaveta e, um por um, queimou os papéis. O cheiro de papel queimado subiu como um ritual de libertação.
Ela não precisava mais daquilo.
O RG com seu nome de casada foi o último.
As chamas engoliram o "Isadora Vasconcellos" como se estivessem ansiosas por levá-lo embora.
Quando tudo virou cinzas, ela abriu a janela e deixou o vento levar o resto.
Passou o dia caminhando pela cidade, anotando endereços, observando as pessoas.
Ali, ela seria outra. Teria outro nome, outra rotina, outra vida.
Já sabia onde conseguir um documento falso. Já tinha em mente um sobrenome neutro. Uma versão simplificada de si mesma.
Não mais a esposa perfeita.
Não mais a amiga traída.
Apenas uma mulher viva, reinventada. Invisível.
Comprou um celular novo, de chip pré-pago, sem internet. Só usaria se realmente precisasse.
Comprou roupas básicas. Trocou o estilo. Cabelo preso, óculos escuros, tênis nos pés. Simples, comum.
Intocável.
Naquela noite, deitada na cama estranha, sob um teto silencioso, ela dormiu profundamente.
Na manhã seguinte, a cidade ainda parecia adormecida quando Isadora desceu para o café.
Sentou-se à mesa dos fundos, de onde podia observar a rua pela janela. O sol mal havia tocado o chão de pedra da calçada e uma brisa gelada entrava pelas frestas. Havia cheiro de café passado na hora e pão recém-saído do forno. Sentiu o estômago revirar, mas comeu. Precisava manter-se firme.
Ela sabia que, nos próximos dias, tudo dependeria do silêncio. Da observação. Do cuidado com cada passo.
A cidade era o cenário perfeito: pequena demais para atrair atenção, grande o suficiente para ela desaparecer no meio da rotina dos outros.
Após o café, voltou ao quarto e começou a rascunhar seu novo mundo. Anotou um nome diferente em um caderno velho que comprara no dia anterior: Helena Duarte. Soava comum. Invisível. Exatamente como precisava.
Escolheu também uma data de nascimento falsa. Apagou qualquer rastro digital anterior. Esvaziou e descartou o antigo celular — atirou-o no rio durante uma caminhada longa por um bosque da cidade, onde ninguém a viu.
Não deixaria pontas soltas.
Mais tarde, procurou emprego. Não podia arriscar cargos de destaque, mas sabia fazer muitas coisas. Foi educada para ser a mulher de um homem importante — o que incluía falar bem, agir com elegância, entender de negócios e etiqueta. Agora, tudo isso seria usado em seu favor, mas nos bastidores.
Encontrou um pequeno sebo no centro da cidade. A livraria era acanhada, mas charmosa. Havia poeira nos livros, luz fraca e cheiro de história impregnado em cada canto. Uma senhora de expressão severa, dona do lugar, a recebeu com desconfiança.
— Já trabalhou com livros? — perguntou a mulher, franzindo o cenho.
— Cresci cercada por eles — respondeu Isadora. Era verdade. Mas não disse que a maioria era decorativa, encapada para combinar com a sala de estar da mansão onde vivia.
A senhora a observou por longos segundos, então assentiu.
— Pode começar amanhã. Organize o setor de literatura estrangeira. Está uma bagunça.
Isadora agradeceu. Deixou o local com as mãos frias, mas o peito... pela primeira vez em dias, estava quente. Era pouco. Mas era dela. Genuinamente dela.
À noite, anotou tudo em seu caderno novo.
Dia 1
Nome novo: Helena.
Primeiro emprego. Nada de luxo. Mas é o começo.
Ninguém me conhece. Ninguém me deve nada. E eu também não devo mais nada a ninguém.
Na madrugada, acordou assustada com um sonho. Henrique estava lá. A amante também. Riam. A chamavam de fraca. De burra.
Ela acordou suando, o peito ofegante, mas permaneceu em silêncio.
Aquele pesadelo não era um aviso. Era uma lembrança do que deixara para trás.
Isadora se sentou na cama, abraçada aos próprios joelhos. Seus olhos vagaram pela penumbra do quarto.
Por um momento, pensou em Clara.
A melhor amiga que lhe enfiara uma faca pelas costas.
Como ela conseguira?
Como Henrique permitira?
Engoliu o nó na garganta e respondeu mentalmente:
“Porque eu me anulei por eles. Agora, não mais.”
No dia seguinte, ao sair para trabalhar, comprou tintura escura para os cabelos.
Desfez-se das últimas roupas de grife que trouxera.
Passou a usar jeans, camisetas simples, um casaco longo.
No espelho da farmácia, viu uma mulher nova — os traços eram os mesmos, mas a expressão já não era mais a da esposa dedicada, traída e humilhada.
Era a de alguém que havia enterrado a própria vida… e escolhido renascer em silêncio.
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