O som suave do piano preenchia o ambiente enquanto Laura girava a colher de café em silêncio. As notas clássicas de Chopin ecoavam pelo apartamento elegante no décimo andar, combinando perfeitamente com a vista panorâmica da cidade, as cortinas brancas e o aroma amadeirado do difusor de ambiente recém-reposto. Era uma manhã comum. Perfeita, aos olhos de quem assistisse de fora.
Ela sempre fez questão de manter tudo em ordem. Desde os livros organizados por cor na estante até os guardanapos dobrados simetricamente sobre a mesa de café da manhã. A rotina era seu refúgio. Um modo silencioso de manter o mundo — e os sentimentos — sob controle.
— Bom dia, amor — disse Henrique, aparecendo na cozinha com a mesma camisa branca impecavelmente passada, o cabelo molhado do banho e um sorriso que já conhecia há mais de uma década.
Laura retribuiu com um beijo breve e uma expressão serena.
— Dormiu bem?
Ele assentiu, pegando uma fatia de pão integral e servindo-se de café.
— Tenho cirurgia às nove, mas devo chegar cedo hoje. Podemos jantar juntos?
— Claro. Faço sua massa favorita — respondeu ela, enquanto pegava um cacho de uvas da fruteira. Aquilo era normal. A vida era assim: confortável, previsível, estruturada.
Mas havia algo estranho naquela manhã. Um leve incômodo em sua pele, como se algo estivesse fora do lugar, mesmo sem motivo aparente. Talvez fosse só o instinto feminino, que ela tantas vezes aprendera a ignorar.
Depois do café, acompanhou o marido até o elevador, como de costume. Ele deu um beijo em sua testa e apertou suavemente sua mão.
— Te amo — murmurou ele.
— Também te amo — respondeu ela. Porque amava. Ou achava que amava. Ou talvez amasse a vida que construíram, o lar, a aparência de estabilidade que aquilo tudo oferecia.
O elevador fechou as portas. Laura suspirou, voltou para dentro e, por impulso, foi até o closet onde guardavam algumas caixas com documentos, objetos de viagens e fotos antigas. Queria encontrar um álbum específico para digitalizar algumas imagens. Mas, ao puxar a caixa errada, o conteúdo se espalhou pelo chão.
Ela se ajoelhou, começando a recolher envelopes, recibos e um estojo preto de veludo que ela não lembrava de ter visto antes.
Curiosa, abriu o estojo.
Dentro dele, uma aliança. Fina, dourada, discreta.
Diferente da dela. E gravada por dentro com duas iniciais que não pertenciam a nenhum dos dois.
M & H.
O coração de Laura parou por um instante. O som do piano ainda tocava na sala, como uma ironia cruel.
Ela ficou imóvel por longos segundos, como se o mundo houvesse mudado de eixo sem avisá-la. Então levantou-se, ainda com o estojo nas mãos, e olhou para o anel em sua própria mão esquerda. O dela era mais espesso, com o nome de Henrique gravado por dentro, junto à data do casamento.
Mas aquela outra aliança…
M.
Quem era M?
Nas horas seguintes, tentou se convencer de que havia uma explicação lógica. Talvez fosse de um paciente. Talvez Henrique estivesse ajudando alguém. Talvez fosse… qualquer coisa que não o que parecia ser.
Mas algo estava errado. E no fundo, muito no fundo, ela sabia.
Henrique era um homem metódico. Cuidadoso. Se fosse uma mulher, ele não deixaria rastros. A não ser que… tivesse deixado de se importar em esconder.
Naquela noite, Laura preparou o jantar como prometido. Vinho tinto, velas discretas, molho de tomate com manjericão fresco. Ela sorriu. Riu das histórias dele sobre o hospital. Fingiu.
O estojo preto estava guardado no fundo da gaveta do banheiro dela. Ainda não era hora.
Mas, enquanto ele falava distraído, o olhar de Laura já estava longe. E algo dentro dela começava a se partir em silêncio.
Não seria uma mulher fraca. Não faria escândalos. Ela descobriria a verdade — e o faria com elegância, frieza e inteligência.
Porque ninguém enganava uma mulher por sete anos sem deixar pegadas.
Laura sempre acreditou que amor era feito de silêncio confortável. Não daqueles que pesavam no ar como acusações não ditas, mas dos que preenchiam o ambiente com a segurança de que nada precisava ser explicado. Era assim com Henrique — ou ao menos ela pensava que era.
Enquanto lavava as taças após o jantar, viu pelo reflexo do vidro da varanda o marido sentado no sofá, rolando o celular com a expressão ausente. Um pequeno sorriso apareceu no rosto dele, sutil, discreto… mas não foi para ela. Era o tipo de sorriso que ele raramente usava no dia a dia. Intenso demais para um vídeo engraçado. E contido demais para uma piada médica qualquer.
Laura secou as mãos com calma, guardou a louça, organizou os panos e se aproximou, sentando-se ao lado dele com um livro nas mãos.
— Quem era? — perguntou casualmente, fingindo não se importar.
Henrique bloqueou o celular rápido demais.
— Nada demais. Um colega do hospital.
— Ah — murmurou ela. — Você pareceu… feliz.
Ele riu, como se não entendesse a insinuação.
— É que ele mandou uma bobagem. Umas piadas antigas.
Laura assentiu e virou a página do livro sem realmente ler. Seu coração não estava mais no peito. Estava no fundo de uma caixa, dentro de um estojo preto.
Mais tarde, enquanto ele dormia — e roncava como sempre, com o braço jogado displicentemente por cima da barriga — ela caminhou em silêncio até o closet novamente. Ligou a lanterna do celular e abriu a caixa com cuidado.
No fundo, havia mais papéis. Documentos do hospital, cartões de embarque, alguns com datas recentes… e dois ingressos para uma peça de teatro romântico em São Paulo. A data? Dois meses antes. Um fim de semana em que ele alegou estar em um congresso médico.
Mas o mais surpreendente veio em seguida: uma fotografia dobrada.
Na imagem, Henrique sorria. Ao lado dele, uma mulher morena, elegante, cabelos longos. Ela o abraçava com intimidade. E entre os dois… uma menina.
A criança devia ter uns quatro ou cinco anos. Tinha os olhos dele.
Laura não conseguiu respirar por alguns segundos. Aquilo era mais do que uma traição. Era uma vida paralela. Um lar alternativo.
Com mãos trêmulas, ela voltou a dobrar a foto e a guardou no mesmo lugar, sem deixar rastros. O corpo estava gelado, a boca seca, o estômago revirado — mas por fora, continuava impecável. Como o chão encerado da casa. Como os pratos bem postos. Como o amor que ela acreditava existir.
Ela voltou para a cama lentamente. Deitou-se. E, antes de fechar os olhos, sussurrou para si mesma:
— Você quer brincar de esconder, Henrique? Então vamos jogar.
Na manhã seguinte, Laura acordou antes do despertador. Preparou o café da manhã como sempre, separou a roupa dele para o hospital e o beijou como se nada tivesse acontecido. Mas dentro de si, um mecanismo havia sido ativado.
Antes mesmo do marido sair, ela já tinha um plano.
Pegou o celular antigo que guardava na gaveta da escrivaninha — aquele que usava antes de trocar por um modelo mais moderno. Restaurou o chip. Mudou a senha do e-mail. Criou um novo perfil. Nome falso, foto de paisagem, nenhum vínculo com a vida real.
Ela precisava de liberdade para investigar. E precisava começar por ela. Pela mulher da foto.
No meio da manhã, foi até o centro da cidade e sentou-se em uma cafeteria discreta. Começou a procurar pelas iniciais “M & H” em sites de casamento, registros de eventos, redes sociais. E então, depois de mais de uma hora, encontrou algo.
Um perfil privado. Nome: Marina Duarte.
Na foto de perfil, o mesmo rosto da imagem impressa. A legenda, romântica:
“O amor nem sempre segue o caminho mais fácil… mas o coração sabe onde quer estar.”
Laura encarou aquela frase por longos minutos.
Seu mundo havia virado uma farsa. Mas ela ainda tinha o controle. E agora, mais do que nunca, ela precisava saber de tudo.
Quem era Marina?
Como eles se conheceram?
E aquela criança… era filha de Henrique?
A dor era insuportável. Mas Laura se sentia mais viva do que em anos.
Pela primeira vez, ela não era só uma esposa. Era uma mulher em busca da verdade.
E nada — absolutamente nada — a faria parar.
E ela estava disposta a segui-las até o fim.
O perfil de Marina Duarte parecia inofensivo à primeira vista. Privado, com poucas fotos visíveis mesmo com o navegador aberto. Nenhuma postagem pública, nenhum comentário aberto. Apenas a imagem de perfil e a bio minimalista:
“Mãe. Professora. Apaixonada por flores, café e recomeços.”
Laura repetia a palavra mãe como se fosse um eco distante batendo contra as paredes da mente.
Então era verdade. Aquela criança não era apenas uma coincidência. Era uma filha. E Henrique — o homem que todas as noites deitava ao lado dela, que dizia que não queria outro filho porque “não era o momento certo” — já tinha uma família.
Com uma mão segurando a xícara e a outra no mouse, ela clicava de página em página. Marina não era famosa, nem muito ativa na internet. Mas ao procurar com o nome completo, encontrou algo no site da escola infantil mais tradicional da zona sul: Professora Marina Duarte – responsável pela turma do Pré II.
A escola era privada, caríssima, e ficava a quase uma hora da casa onde Laura vivia com Henrique.
Uma pergunta lhe corroía a garganta:
Ele ia até lá com que frequência? Quantas vezes usou os plantões médicos como desculpa?
Ela pegou uma folha e começou a anotar datas, congressos, fins de semana prolongados em que ele “viajou a trabalho”. A cada anotação, um padrão começava a se formar. E, de repente, sete anos pareciam sete vidas.
À noite, quando Henrique chegou em casa, trouxe flores.
— Tive um tempo livre no fim do dia e passei na floricultura da esquina. Sei que você gosta de orquídeas brancas.
Laura sorriu, recebendo o buquê com naturalidade.
— Que surpresa boa… — ela disse, com a voz doce e controlada.
Queria perguntar se ele também dava flores para Marina. Se a filha deles gostava de orquídeas. Mas se conteve. Ainda não era hora.
— Tive um dia cansativo hoje — ele disse, jogando o paletó no encosto da cadeira e afrouxando a gravata.
— Muito movimento no hospital?
Henrique assentiu vagamente, pegando o celular para responder alguma mensagem.
— Sempre. Mas pelo menos amanhã estou de folga. Podemos fazer algo, se quiser.
“Folga.”
Laura quase riu. Apostava que Marina também acreditava que ele estaria com ela no dia seguinte.
Mais tarde, deitada ao lado dele na cama, Laura virou de costas e fingiu dormir.
Mas dentro da sua mente, o plano ganhava corpo.
No dia seguinte, ela aproveitaria a suposta folga de Henrique para segui-lo discretamente. Precisava saber a verdade com os próprios olhos. Queria vê-los juntos. Não mais por dúvida — mas por certeza. Queria saber como ele se portava. Como a tratava. Se era o mesmo homem com ela. Ou pior: se era melhor.
Na manhã seguinte, Laura acordou cedo e fez tudo como de costume. Café servido, camisa passada, beijos de despedida. Fingiu acreditar que ele ia ao banco resolver um problema com o imposto de renda.
— Volto na hora do almoço — disse ele, sorrindo.
— Tudo bem, amor.
Assim que a porta se fechou, ela trocou de roupa, prendeu os cabelos num coque simples e desceu para a garagem. Entrou no carro, ligou o motor e manteve distância suficiente para que ele não percebesse que era seguido. Por sorte, o trânsito lento facilitava a missão.
Henrique seguiu em direção à zona sul.
Trinta minutos depois, estacionou em frente a uma casa de fachada simples, com jardineiras floridas e brinquedos espalhados no gramado da frente.
Laura estacionou duas ruas acima e observou de longe.
Quando ele saiu do carro, uma criança correu ao encontro dele. Henrique se agachou e a pegou no colo com intimidade e afeto. Um afeto que ela nunca viu em casa.
Logo em seguida, Marina apareceu na porta, sorrindo. O abraço entre os dois foi breve, mas íntimo. Não havia dúvida. Aquela não era uma amante. Era uma companheira. Uma parceira.
E Laura…
Laura era o quê?
Ela não chorou. Não ali. Não no carro. Não naquele momento.
Mas sentiu o mundo escorrer pelas bordas do peito.
A dor era fria. A traição era completa.
Ao voltar para casa, respirou fundo. Sentou-se no sofá e olhou ao redor. A casa perfeita. Os móveis escolhidos a dedo. O casamento de revista. Tudo mentira.
Mas ela ainda tinha o controle.
E agora, mais do que nunca, ela queria entender como aquilo começou.
Quem era Marina na vida de Henrique antes dela.
E por que ele achou que podia ter as duas.
Naquela noite, Laura criou um novo perfil no Instagram, com nome falso e foto neutra. Enviou uma solicitação de amizade para Marina. A conta era privada.
Mensagem enviada:
"Boa noite! Vi que você é professora da minha afilhada. Ela fala muito bem de você!"
Mentira. Mas convincente o bastante para iniciar um contato.
O celular vibrava sobre a mesa da sala quando Laura retornou da cozinha. Ela olhou para a tela e sentiu o estômago se contrair.
Nova mensagem.
Remetente: Marina Duarte.
Ela clicou com cautela.
Marina: Boa noite! Que legal! Qual o nome da sua afilhada?
Laura sorriu de lado. A mentira era frágil, mas ainda sustentável.
Laura (perfil falso): Helena! Da turma do Pré II. A mãe dela me pediu pra entrar em contato com você… queria organizar uma homenagem para o Dia dos Professores com as mães. 😅
Ela esperou, com o coração disparado, como se aquilo fosse uma conversa com uma bomba prestes a explodir.
Do outro lado, Marina digitava. E demorava.
Até que veio a resposta:
Marina: Que fofa! Adorei a ideia. Pode me chamar por aqui, sem problemas.
Pronto. Estava dentro.
Laura largou o celular lentamente sobre a mesa. O jogo havia começado de verdade. Marina, sem saber, acabava de abrir as portas para a mulher do outro lado da aliança.
Naquela noite, ela deitou-se ao lado de Henrique e fingiu dormir antes dele. Ouvia a respiração tranquila dele se estabilizando, e sentia o colchão afundar levemente com o peso do corpo que, durante anos, foi seu abrigo — e agora era só uma armadura de mentiras.
“Você é bom nisso”, pensou. “Conseguiu manter duas vidas por tanto tempo. Mas será que aguenta quando uma delas começa a se infiltrar na outra?”
Ela virou-se devagar e o observou na penumbra do quarto. O rosto sereno, a boca entreaberta, a aliança que brilhava discretamente no dedo.
A outra aliança estava guardada em sua bolsa agora, envolta em um lenço.
Pesava mais do que ouro.
Pesava como uma verdade não dita.
Nos dias seguintes, o contato com Marina evoluiu devagar. Laura manteve o personagem com firmeza. Às vezes era a madrinha simpática, outras, a organizadora da suposta homenagem, sempre sorridente, prestativa, calorosa. Marina parecia doce, acessível, grata.
Mas o que mais chamava atenção era o tom com que falava de “Henrique”.
— Eu sou muito grata a ele — dizia em um áudio, quando Laura sugeriu envolver os “pais” na homenagem.
— O pai da minha filha é muito presente, sabe? Sei que é raro, ainda mais sendo médico, mas ele sempre arruma tempo. Nunca deixa a Lara esperando.
Lara.
Era esse o nome da criança.
Laura gravou cada palavra no peito como uma faca quente entrando na carne.
A cada conversa, Laura sentia emoções contraditórias se chocando dentro de si.
Raiva. Dor. Curiosidade. Certa admiração, ainda que amarga.
Marina parecia amá-lo com sinceridade. E mais: não parecia saber da existência de outra mulher.
Afinal, se soubesse, por que manteria contato com o mesmo sobrenome? Por que se referiria a ele tão abertamente?
Laura precisava confirmar. Precisava ver Marina de perto. Ler seus olhos. O corpo fala aquilo que a boca não revela. E ela confiava em sua intuição.
Foi então que mandou a próxima mensagem:
Laura: Estou organizando um café para as mães no sábado que vem! Você poderia vir? Seria numa cafeteria aqui perto da escola. Só pra gente conversar mesmo, nada muito formal. 🍰☕
A resposta não demorou:
Marina: Ai, que delícia! Eu vou sim. Que horas?
Laura: 15h! Na Le Petit Café. Vou adorar te conhecer pessoalmente. 💛
Ela desligou o celular e apoiou as costas no encosto do sofá. O coração batia descompassado.
O encontro estava marcado.
E naquele sábado, Marina conheceria a outra mulher da história.
A mulher que dormia com o mesmo homem.
A mulher que usava a aliança original.
A mulher que, por tantos anos, acreditou ser a única.
E Laura?
Laura não sabia exatamente o que procurava naquele encontro.
Talvez olhasse para Marina e enxergasse apenas dor.
Ou talvez… algo mais assustador: o reflexo de si mesma, antes da verdade.
O dia amanheceu cinzento, o céu encoberto por nuvens pesadas que pareciam carregar o mesmo peso que Laura sentia no peito. Era sábado, e a cidade se movia devagar, como se soubesse que aquele seria um dia de revelações.
Laura escolheu sua roupa com a precisão de quem planeja uma batalha silenciosa. Optou por algo elegante, mas informal: calça de alfaiataria preta, blusa branca de seda, brincos discretos e um perfume suave. Queria parecer acolhedora, acessível — mas no controle.
Na bolsa, levava apenas o necessário. E o estojo preto com a aliança. Não porque fosse mostrá-lo, mas porque precisava lembrar-se do que a havia levado até ali.
Às 14h45, chegou à cafeteria. A Le Petit Café era charmosa, com mesas de madeira clara, vitrines recheadas de doces delicados e o cheiro reconfortante de café moído na hora. Ela escolheu uma mesa perto da janela e pediu um cappuccino. Observava as pessoas entrando, medindo cada rosto com expectativa contida.
Às 15h02, ela a viu.
Marina entrou usando um vestido azul de mangas curtas e cabelos soltos, levemente ondulados. Trazia uma bolsa pequena a tiracolo e um sorriso gentil no rosto, como se aquele fosse apenas mais um encontro entre mães.
Laura se levantou para cumprimentá-la.
— Marina?
— Laura! Que prazer! — disse ela, estendendo a mão.
O aperto foi breve, cordial. Mas naquele toque, Laura sentiu algo inesperado: fragilidade. Marina não parecia uma mulher arrogante, nem sedutora, nem alguém que soubesse que estava ocupando o espaço de outra. Pelo contrário — havia nela uma doçura discreta, quase ingênua.
— Que lugar adorável — comentou Marina, sentando-se. — Nunca tinha vindo aqui.
— É um dos meus refúgios — respondeu Laura, tentando manter a respiração controlada.
As duas pediram cafés e bolos. A conversa começou leve, quase ensaiada.
— A Lara gosta da escola? — perguntou Laura, mantendo o papel.
— Muito! Ela é uma menina muito sensível, sabe? Gosta de desenhar, de inventar histórias. Às vezes me pergunta por que o pai não mora com a gente, mas… ele sempre aparece. Ela sente que ele está presente.
Laura mordeu o canto do lábio inferior e desviou o olhar por um segundo.
— Ele mora onde, mesmo? — perguntou casualmente.
— Num apartamento na zona norte. Mas viaja muito por causa do hospital. Ele diz que a carga de plantões é pesada.
Laura assentiu, sem piscar. Zona norte. A mesma região em que viviam.
— E ele… é casado? — soltou, fingindo um tom de fofoca cúmplice, como quem pergunta sobre a vida de um conhecido.
Marina franziu a testa, depois riu baixinho.
— Não… pelo menos, não que eu saiba. Ele nunca me falou nada. A gente nunca morou junto oficialmente, sabe? A relação foi crescendo meio devagar. Eu engravidei logo no início. Ele sempre esteve por perto, mas nunca... se comprometeu de verdade.
— E você…? Ama ele?
Marina baixou o olhar, mexendo a colher na xícara, como se procurasse as palavras dentro do café.
— Já amei mais, acho. Hoje… eu não sei. Às vezes sinto que ele é como o vento: está, mas nunca fica de verdade. Só que quando olha pra Lara… parece tão sincero. É por ela que eu deixei tudo continuar assim.
Laura engoliu seco. Sentiu um nó se formando na garganta.
Ali, diante dela, estava a outra mulher. Não uma rival. Não uma ameaça.
Mas outra versão dela mesma.
Outra mulher que acreditava. Que esperava. Que aceitava pouco, em nome do amor.
— Você é forte — disse Laura, surpreendendo até a si mesma com a sinceridade da frase.
Marina sorriu, sem entender totalmente.
— Às vezes, nem sei se sou. Só tento não desmoronar na frente da minha filha.
O encontro durou quase uma hora. Elas conversaram sobre filhos, escolas, a cidade, livros, café — tudo com a leveza de quem ainda vive na superfície, sem saber que há um abismo logo abaixo.
Quando Marina foi embora, Laura permaneceu sentada por longos minutos.
Sentia-se partida ao meio.
Parte dela queria gritar, contar toda a verdade, escancarar a dor que as unia.
Mas a outra parte — a mais fria, a mais racional — ainda não estava pronta. Precisava entender mais. Precisava descobrir há quanto tempo vivia a mentira. Precisava saber até onde Henrique era capaz de ir.
Laura passou o resto da tarde vagando pela cidade sem destino certo. Entrou em uma livraria, folheou alguns títulos que não conseguiu absorver. Pediu outro café, que esfriou na xícara antes mesmo de tocar seus lábios. A imagem de Marina voltava repetidamente à sua mente, como um espelho partido refletindo pedaços de si.
Ela não conseguia odiá-la.
Pior: sentia pena.
Marina vivia à margem da vida de Henrique, sustentando uma ilusão com migalhas de presença. Aceitava a ausência como um preço por algum tipo de amor — o mesmo que Laura pensava ter conquistado com exclusividade por anos.
E a menina… Lara. Tão pequena, tão inocente.
Aquela criança era uma consequência de escolhas que ela desconhecia. Um elo vivo entre duas mentiras.
E se ela tivesse conhecido Henrique depois de Marina?
E se ela fosse… a outra?
A dúvida lhe corroía mais do que a traição.
Era quase oito da noite quando chegou em casa. O apartamento estava escuro, silencioso. No celular, uma mensagem de Henrique:
“Tive uma emergência no hospital. Cirurgia longa. Chego tarde. Te amo.”
Laura soltou uma risada abafada.
Claro. Sempre o hospital. Sempre um álibi perfeito.
Por um momento, pensou em responder com frieza. Um simples “ok”. Mas apagou a frase e escreveu:
“Tudo bem, amor. Me avisa quando chegar. ❤️”
Jogou o celular sobre o sofá e foi direto ao banheiro. Lavou o rosto, prendeu o cabelo num coque e olhou-se no espelho. Os olhos estavam fundos, cansados.
Mas havia firmeza no reflexo.
E por mais contraditório que fosse, Laura sentia que estava acordando depois de anos adormecida.
Meia-noite. Henrique chegou.
Ela já estava na cama, deitada, a luz do abajur ainda acesa.
— Oi, amor — disse ele, entrando no quarto e tirando o paletó. — Desculpa o atraso. A cirurgia complicou mais do que o esperado. Tô esgotado.
— Imagino — respondeu ela, observando-o enquanto ele se despia.
Ele se deitou ao lado dela e a abraçou por trás, como fazia há anos. Laura permaneceu imóvel por alguns segundos, depois correspondeu mecanicamente ao gesto.
— Você tá estranha — ele murmurou contra a nuca dela.
— Só cansada.
Silêncio.
Ele acariciou seu braço e depois a soltou, virando-se para o outro lado.
Pouco depois, já roncava.
Laura permaneceu acordada.
Na mente, as palavras de Marina ecoavam:
“Às vezes sinto que ele é como o vento: está, mas nunca fica de verdade.”
Ela o amava. Ainda amava, de alguma forma.
Mas começava a perceber que amar aquele homem era como abraçar uma sombra.
E agora que havia luz suficiente… ela via as sombras desaparecerem.
No domingo, Henrique acordou mais tarde do que o costume. Tomou café sozinho, enquanto Laura organizava livros na estante da sala. Ela fingia estar absorta na tarefa, mas ouvia cada movimento dele. As xícaras. A geladeira. O som do celular vibrando sobre a bancada.
— Amor — ele chamou. — Você viu meu outro relógio? O prateado, aquele que deixei na cômoda?
Laura virou-se lentamente.
— Não. Deve estar na gaveta de meias.
— Já procurei. Acho que perdi em alguma viagem.
Ela se aproximou e apoiou-se no balcão.
— Em qual viagem, exatamente?
Henrique franziu a testa.
— Como assim?
— Você viaja tanto… que às vezes eu mesma me perco. São tantos plantões, congressos, encontros médicos.
Ele a encarou por alguns segundos, como se buscasse alguma armadilha no tom calmo dela.
— Tá tudo bem, Laura?
— Claro. Por que não estaria?
Ele hesitou. Aproximou-se, tocou seu rosto com a ponta dos dedos.
— É só que… você tá diferente. Distante. Fria.
Ela sorriu. Um sorriso cheio de veneno doce.
— Engraçado… eu ia dizer a mesma coisa sobre você.
Henrique piscou, surpreso.
Mas antes que pudesse responder, ela se afastou, pegou sua bolsa e disse:
— Vou sair. Preciso pensar. Preciso respirar.
Ele não tentou impedi-la. Apenas ficou parado, vendo a porta se fechar atrás dela.
No elevador, Laura encostou a cabeça na parede acolchoada e fechou os olhos.
O jogo estava mudando.
Henrique começava a perceber.
Mas ainda não fazia ideia do quanto ela já sabia.
E ela ainda não fazia ideia de quão fundo estava disposta a ir.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!