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Cristal, Casamento por Contrato

Capítulo Um...

O ar estava pesado, denso como um lamento preso na garganta. Uma mistura sufocante de perfume barato, cigarro e suor escorria pelas paredes descascadas daquele lugar, grudando na pele de Helena como uma segunda pele indesejada. No palco estreito e mal iluminado, ela surgiu — um espectro de beleza e tristeza, envolta num vestido de cetim vermelho que parecia mais uma armadilha do que uma roupa.

Os holofotes opacos mal conseguiam atravessar a névoa de fumaça, mas ainda assim delineavam cada curva do corpo de Helena, agora completamente exposto aos olhos famintos da plateia. E como devoravam. Olhares como facas, cortando sua dignidade, arrancando dela o pouco que ainda tentava preservar. Havia silêncio entre os sussurros sujos. Um silêncio de predadores observando a presa se contorcer antes do bote.

Ela dançava.

Não porque queria. Mas porque precisava.

Cada movimento seu era forçado, como se seu corpo lutasse contra a alma para obedecer. A música, um samba arrastado que gemia das caixas enferrujadas do andar de baixo, fazia o chão vibrar sob seus pés descalços. Era como se o inferno tivesse ritmo, e ela estivesse condenada a dançar ali, noite após noite.

— "Olha só pra isso, parece uma virgem se fingindo de santa!" — gargalhou um homem de camisa aberta, já bêbado, jogando uma nota amassada de cinquenta aos pés dela.

— "Rebola mais, Cristal! Mostra o que eu vou comprar hoje!" — gritou outro, com um dente de ouro reluzente e olhos vermelhos de álcool. A risada dele ecoou como uma sirene de escárnio no salão.

Helena nem piscou. Apenas girou, seu vestido subindo demais, revelando mais do que gostaria. Não havia escolha. O dinheiro pagaria o remédio do irmão.

Seus cabelos negros, lisos e reluzentes, contrastavam com a palidez quase fantasmagórica do rosto, cuidadosamente maquiado para esconder a dor. O batom vermelho — vibrante, quase grotesco — tremia em seus lábios como um sorriso falso no rosto de uma boneca quebrada.

— "Parece de porcelana... Será que quebra se a gente apertar?" — murmurou um homem à frente, com a mão estendida, tentando tocar sua coxa enquanto ela girava. Ela recuou de leve, um movimento sutil, treinado. Mas sentiu o nojo subir pela garganta.

Outro se levantou da cadeira, aproximando-se do palco com a ousadia de quem se acha dono de tudo.

— "Desce daí, linda... vem ganhar um extra no camarim!" — sua voz era pastosa, o hálito de conhaque invadindo o ar como uma agressão.

Ela não respondeu. Nunca respondia. Se respondesse, apanharia depois. Os olhos claros, tão claros que mais pareciam vidro, não olhavam para ninguém. Não podiam. Se ela olhasse, veria o desejo cru, a avidez podre de homens que a queriam apenas por minutos, sem sequer imaginar o peso da alma que aquele corpo carregava.

Mas eles não viam Helena.

Apenas Cristal.

A boneca de vitrine. A ilusão vendida em carne viva. Um corpo alugado pela noite, uma fantasia embalada em tristeza.

Cada aplauso que ouvia soava como um tapa. Cada assobio, como uma lembrança cruel de que seu corpo não lhe pertencia mais. Ela girava lentamente, os cabelos acompanhando o movimento com suavidade, mas os olhos… ah, os olhos continuavam duros, distantes, mergulhados em um passado de abandono, fome e perda.

A meia-noite se aproximava.

E enquanto lá embaixo as vozes se elevavam e o vinho barato escorria em gargantas sujas, no palco, Helena era um retrato vivo da tristeza — um quadro que sangrava beleza e dor sob luzes opacas, vendida em pedaços para quem tivesse trocados no bolso e a consciência morta no peito.

Capitulo Dois - O Silêncio do Abandono...

No Passado,

Era uma madrugada fria e úmida, daquelas em que o vento parece sussurrar segredos que ninguém quer ouvir. A lona puída que servia de teto balançava levemente com o sopro da brisa, e sob ela, quatro pequenos corpos dormiam encolhidos, protegendo-se do mundo como podiam.

Victoria permaneceu em pé por um longo tempo, observando os filhos sob a luz fraca de um poste distante. Usava um casaco surrado e os cabelos estavam presos às pressas. Ao lado do pé, repousava um saco de lixo preto — dentro, suas roupas, seus poucos pertences, e junto a eles, a decisão mais cruel que já tomara.

Aproximou-se de cada um devagar. Keven, com os lábios entreabertos, dormia agarrado ao cobertor furado. Juliano ressonava baixinho, os braços jogados para fora, com uma bolacha quebrada ainda na mão. Lara, encolhida contra Helena, apertava um boneco sem um dos braços. E Helena... mesmo dormindo, franzia a testa, como se pressentisse a tragédia que se aproximava.

Victoria se ajoelhou ao lado da filha mais velha. Uma lágrima grossa desceu por seu rosto sujo de poeira e cansaço. Tocou com a ponta dos dedos os cabelos de Helena, sem ousar um carinho inteiro. O medo de acordá-la era menor que a covardia de encará-la.

— Me perdoa, minha menina... — sussurrou, num fio de voz que se perdeu no vento.

Ela se levantou devagar, pegou o saco, olhou uma última vez para os filhos — seus filhos — e virou as costas. Saiu sem fazer barulho, como uma sombra. Atravessou o lixão com passos vacilantes, desviando de montes de lixo e restos queimados. A cada passo, o peso da culpa apertava mais o peito, mas ela não olhou para trás. Não podia. Sabia que, se o fizesse, não teria forças para continuar.

Desapareceu na escuridão como quem nunca existiu.

A manhã chegou envolta por nuvens cinzentas. O céu parecia carregar o mesmo luto que Helena sentiria minutos depois.

O choro de Lara rompeu o silêncio abafado da barraca. Um som agudo, desesperado. Helena abriu os olhos, ainda sonolenta, e viu a irmã menor sentada, esfregando os olhinhos, com o rosto sujo de lágrimas.

Juliano, com apenas oito anos, remexia o bolso tentando encontrar algo para distraí-la. Estendeu uma bolacha seca, quebradiça.

— Cadê a mamãe? — perguntou Keven, os olhos grandes, azuis e assustados. Com o carinho sem rodas apertando contra o peito, como um escudo.

Helena se sentou devagar. Seus olhos percorreram a barraca.

O cobertor da mãe... não estava ali.

A sacola com os mantimentos... havia sumido.

A caixa de madeira, onde guardavam suas moedas... vazia.

O estômago de Helena deu um nó. Ela se levantou num salto, o coração batendo alto nos ouvidos. Saiu correndo pela trilha de barro, os pés descalços afundando no chão molhado. Chegou até o ponto de ônibus perto da cerca de arame. O banco estava vazio. Um homem dormia mais adiante, embrulhado em papelão, mas não vira ninguém.

— Moça... a senhora que tava com três crianças? Sumiu de noite. Pegou um ônibus — disse uma senhora, mexendo em sacos de latinha. — Nem olhou pra trás.

Helena não disse nada. Apenas sentiu o chão ceder.

Voltou em passos lentos, cada passo mais pesado que o outro. Juliano, Lara e Keven a esperavam, sentados como filhotes perdidos.

— Ela... ela não vai voltar? — perguntou Juliano, tentando parecer forte, mas a voz falhava.

Helena olhou para ele, e pela primeira vez, sentiu-se arrancada da infância.

— Não. Agora sou eu que cuido de vocês.

Naquela noite, todos dormiram colados ao corpo dela. Lara sobre seu peito, os meninos um de cada lado. Do lado de fora, o mundo era hostil e escuro, mas ali dentro, a menina de dez anos aprendeu o que era ser mãe, irmã, pai, tudo ao mesmo tempo.

E quando finalmente o silêncio caiu de novo, Helena abriu os olhos e encarou o teto de lona. A respiração estava presa na garganta. O abandono tinha gosto de ferro na boca, e a dor — a dor era funda demais para ser chorada.

Ela não sabia como faria.

Mas faria.

Porque agora ela era o último abrigo deles.

Helena, Juliano, Keven e lara.

Capitulo Três - O menino do farol...

Dois dias sem comer.

O estômago de Helena já não doía. Estava vazio demais até para isso. O frio e a fraqueza colavam nela como segunda pele. Keven, encolhido no canto da lona, dormia de olhos entreabertos, abraçado ao um boneco mutilado. Lara mal chorava — só soluçava baixinho, num lamento resignado. Juliano, com os lábios rachados, apenas a observava, esperando por uma decisão.

Helena sabia o que precisava fazer.

Prendeu os cabelos com um pedaço de barbante encontrado no lixo. Vestiu a camiseta que, embora furada e manchada, ainda cobria o tronco magro. Amarrou o short com um nó firme, para não escorregar. Pegou Lara, de três anos, no colo — a mais nova do grupo, deixada por outra mãe que sumira tempos antes — e puxou Juliano pela mão.

O céu estava coberto de nuvens cinzas quando saíram.

A caminhada até o semáforo era longa, passando por terrenos baldios, lixeiras tombadas, barracos improvisados e olhares indiferentes. Mas Helena tinha um destino: o cruzamento onde os carros ricos paravam por alguns segundos antes de desaparecerem para sempre.

— Moço, uma moeda? Um pão? — repetia, com a voz rouca, os olhos baixos. Não tinha coragem de encarar ninguém.

Alguns fingiam que ela não existia. Outros fechavam o vidro com pressa, como se o toque da pobreza contaminasse. Teve um que gritou “sai da frente, pestinha!” e acelerou antes que o farol abrisse.

Helena engoliu o orgulho junto com a fome.

Juliano, ao lado, mantinha Lara nos braços, e juntos tentavam manter-se de pé. O tempo passava. A esperança murchava.

Foi então que um carro preto e brilhante parou na linha branca. Os vidros eram escuros. O motor fazia um ronco grave. Helena hesitou. Já esperava a mesma frieza de sempre.

Mas o vidro começou a descer.

Do outro lado, um menino.

Doze anos, talvez. Cabelos castanhos bem penteados, uniforme impecável de colégio particular. Ele olhou diretamente para ela. Não com pena. Não com repulsa.

Com curiosidade.

— Você tá com fome? — perguntou, com uma voz clara e segura.

Helena piscou, surpresa. Firmou os pés no chão e respondeu com firmeza, como se recitasse um juramento:

— Eu e meus irmãos. Sempre. — respondeu, com firmeza.

O menino abriu a lancheira. Pegou um sanduíche embrulhado e, com as próprias mãos, dividiu em quatro pedaços. Estendeu o lanche pela janela com um sorriso discreto.

— Toma. Divide com eles. — disse, estendendo o lanche pela janela.

Helena hesitou por um momento, mas depois pegou o sanduíche com cuidado. Seus dedos sujos tocaram os dele por um instante. Era como se aquele breve contato trouxesse uma faísca de esperança. Havia migalhas de pão em seus olhos enquanto ela sussurrou um simples "Obrigada".

— Qual o seu nome? — ele perguntou.

— Helena.

— O meu é Heitor. Você vem aqui sempre? — perguntou Heitor, curvando-se um pouco para mais perto da janela, seus olhos brilhando com curiosidade.

— Às vezes — Helena respondeu, admirando a pureza daquele menino que não parecia se importar com o que os outros pensavam.

O farol abriu, mas o carro não andou de imediato. O motorista olhou para trás pelo retrovisor, depois para o menino, e esperou.

Na manhã seguinte, ele voltou.

E no outro dia também.

Não falava muito no começo. Apenas entregava sacolas com frutas, pães, às vezes brinquedos usados, roupas pequenas demais para ele. Helena esperava sem saber se ele realmente viria — e se surpreendia toda vez que o via descer do carro e caminhar até ela.

Com o tempo, Heitor começou a ficar.

Sentava no meio-fio com Juliano e ensinava truques com bolinhas de papel. Dava lápis de cor para Lara e elogiava cada desenho que ela fazia, mesmo os mais tortos. Trazia cobertores velhos, meias coloridas, biscoitos, e às vezes ficava ali, só ouvindo Helena contar sobre os dias, a saudade da mãe, o medo das noites frias.

Helena não sabia explicar o que era aquilo. Por que um menino rico perderia tempo com ela? Não entendia. Não confiava. Mas aos poucos, começou a esperar. Esperar o som do motor. Esperar o sorriso gentil. Esperar por alguém que a via de verdade.

Heitor - Criança

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