O vento soprava como se carregasse segredos antigos pelas frestas da floresta. As folhas se retorciam em murmúrios inaudíveis, e o ar estava impregnado de uma estranha eletricidade. Algo havia mudado desde o pacto refeito. Não apenas entre Rayhna e Lucien, mas no mundo ao redor deles. Havia olhos em todos os lugares. Alguns visíveis. Outros, invisíveis demais para que a mente humana os compreendesse.
Rayhna sentia a pressão das presenças mesmo quando o quarto estava vazio. Seu corpo, marcado por símbolos esquecidos, vibrava com uma frequência que não pertencia àquele tempo. Ela acordava com os olhos vermelhos-sangue, mesmo quando dormia em paz. Seus olhos caramelo, que antes surgiam nos momentos de calma, estavam cada vez mais raros. Como se a paz fosse uma lembrança longínqua. Como se ela mesma estivesse se tornando uma lembrança.
Lucien observava Rayhna com uma mistura de temor e fascínio. Ela não era mais a mulher que ele conhecera, mas também não era outra. Era algo entre os mundos. Algo que a profecia não ousava nomear. Ele sabia que havia passado do ponto de retorno quando aceitou o sangue dela outra vez. Mas também sabia que era tarde demais para fugir.
— Eles sabem, Rayhna — disse ele, com a voz rouca pela insônia. — Sabem que quebramos o círculo.
Ela permaneceu em silêncio por um momento, os olhos fixos em algo que Lucien não podia ver. Então ela falou:
— Sempre souberam. Apenas estavam esperando.
Naquela noite, eles partiram para o antigo templo em ruínas, guiados pelos símbolos que apenas Rayhna conseguia ler. As paredes do templo estavam cobertas de musgo, mas sob a camada verde ainda pulsavam marcas arcanas. Ao entrarem, Rayhna estremeceu. Não por medo, mas por reconhecimento.
— Foi aqui que começou tudo — ela sussurrou. — Muito antes de você. Antes de mim.
Lucien tocou uma das colunas partidas e sentiu um arrepio subir pela espinha. Havia algo ali. Algo que lembrava. Algo que dormia. Mas não por muito tempo.
No centro do templo, havia um pedestal. Sobre ele, uma pequena escultura com olhos entalhados em pedra branca. Não era um artefato comum. Era um sentinela. Um daqueles que observavam os portadores da linhagem proibida. Rayhna se aproximou devagar, sentindo os pelos do corpo eriçarem.
— Os olhos dela — murmurou. — A Deusa não esqueceu.
Lucien franziu o cenho.
— Aquilo é só pedra.
— Então pare de encarar, Lucien. Antes que ela encare de volta.
Houve um estalo. As velas que nunca haviam sido acesas se acenderam. Todas ao mesmo tempo. A chama era azul. Fria. Antiga. E naquele instante, Lucien soube que estavam sendo observados.
A voz de Nyx ecoou pelas paredes, mesmo sem que sua presença fosse visível.
— Vocês mexeram onde não deviam. A terceira linhagem vai sentir. E não vai ser misericordiosa.
Rayhna cerrou os punhos.
— Ela já sentiu.
— E você está pronta para o que vem? Porque não se trata mais de vocês dois. Se trata do que vocês criaram.
Lucien se enrijeceu. O segredo dos gêmeos era absoluto. Nem mesmo os ecos do templo podiam ouvir aquilo. Mas Nyx sabia. Claro que sabia. Ela sempre soube.
Rayhna passou a mão sobre o pedestal, ativando uma runa que brilhou em vermelho intenso. Um mapa se formou no chão. Nomes antigos. Linhagens extintas. Portais.
— Estão se reagrupando — disse ela. — Aqueles que ainda lembram. Aqueles que servem a ela.
Nyx surgiu das sombras, como se o templo tivesse a moldado.
— Então escondam bem as crianças. Porque o mundo não está pronto para o que nasce da fusão de duas maldições.
O templo estremeceu. A escultura dos olhos brancos brilhou, por um segundo, com luz prateada. Não era só observação. Era julgamento.
E a partir daquela noite, nenhum deles dormiu em paz novamente.
As paredes do antigo templo ainda vibravam com a energia despertada na noite anterior. Rayhna não retornou ao castelo. Ficou ali, entre as ruínas e os ecos de um passado que ainda sangrava sob a pedra. Havia algo que só ela podia ouvir: sussurros que se escondiam nas rachaduras do chão, que deslizavam pelas colunas partidas, que respiravam junto com o vento que soprava do leste.
Ela não precisava vê-los. Sabia que estavam ali.
Sussurros.
Chamados sem voz.
Verdades que recusavam o silêncio.
Lucien retornou ao templo ao amanhecer. Trazia consigo um objeto envolto em veludo negro: o relicário que encontrara escondido sob o assoalho da Casa Morta. Rayhna o encarou antes mesmo que ele falasse. Seus olhos estavam vermelhos, intensos, como se não tivesse dormido. Mas não havia cansaço em sua expressão. Havia algo mais sombrio: lucidez.
— Onde encontrou isso? — perguntou ela, sem tocar no relicário.
— Ele me chamou — respondeu Lucien. — Como se soubesse que eu estava pronto para lembrar.
Rayhna finalmente estendeu a mão e abriu o tecido. O relicário era de prata antiga, em forma de olho. No centro, uma pedra escura pulsava, como se fosse feita de sombra viva.
— Isso não é um objeto qualquer — disse ela. — É um dos três selos.
Lucien respirou fundo.
— Selos de quê?
— De contenção. Cada selo prende uma parte daquilo que foi separado da Deusa. Coração. Voz. Visão. Este... é a visão.
Ele sentiu a pulsação do relicário através do tecido. A pedra escura o observava, mesmo sem pupilas. E quanto mais a encarava, mais lembranças vinham — memórias que não eram inteiramente suas.
Rayhna afastou-se do objeto.
— Você precisa decidir se quer ver. Porque uma vez que se enxerga o que está escondido, não há como desver.
Lucien, teimoso como sempre, pegou o relicário. Quando o fez, seu corpo enrijeceu. Seus olhos se voltaram para trás, e a sala pareceu recuar. O templo desapareceu. As colunas sumiram. Tudo foi substituído por uma escuridão líquida, onde olhos pairavam como estrelas em um céu invertido.
Ele viu Nyx.
Não como ela era agora, mas como havia sido. Antes da ruptura. Antes de escolher a neutralidade.
Ela estava ajoelhada diante de um altar de ossos. Suas mãos estavam cobertas de sangue. Seus olhos, vazios. Atrás dela, três sombras assistiam em silêncio. E no centro, onde o altar ardia com fogo branco, havia uma criança.
Rayhna o puxou de volta.
Lucien caiu de joelhos, arfando. Sangue escorria de seu nariz. Mas ele não largou o relicário.
— É uma chave — sussurrou. — E também é uma ameaça.
Rayhna assentiu. Sua expressão estava pesada.
— Precisamos esconder isso. Antes que os sussurros encontrem uma forma de gritar.
Nyx apareceu horas depois. Como sempre, como se nunca tivesse partido.
— Não era hora de abrir o selo — disse ela, com um olhar mais sombrio que o habitual. — Mas já que abriram... precisam saber:
Ela se aproximou. O ar ao redor esfriou.
— Existem olhos em corpos vivos, e olhos em corpos mortos. Mas os mais perigosos são os que espreitam por dentro.
Ela olhou para Rayhna.
— E os seus já começaram a mudar.
Rayhna recuou um passo. Nyx tocou levemente o rosto dela. Foi como se um espelho se partisse dentro da vampira. Fragmentos de memória, sangue e tempo caíram entre elas.
— Estão tentando acordar a visão completa. E se conseguirem, ela verá os filhos.
Lucien interrompeu.
— Não! Eles estão protegidos. Longe de qualquer portal, de qualquer vestígio.
Nyx o olhou, séria.
— Enquanto os selos estiverem intactos, sim. Mas agora falta só dois.
Rayhna estava imóvel. Sua mente tentava conter os fragmentos que explodiam dentro dela. As vozes, os ecos, os nomes antigos que voltavam com força.
— Onde estão os outros selos? — ela perguntou.
Nyx sorriu, enigmática.
— Um está em um lugar onde ninguém quer voltar. O outro... dentro de alguém que ainda não sabe o que carrega.
O templo estremeceu levemente. O relicário vibrou nas mãos de Lucien.
Sussurros se intensificaram nas paredes.
E todos sentiram o mesmo arrepio: estavam sendo vigiados de dentro para fora.
Porque agora, os olhos que nos observam... estavam acordando.
O relicário estava guardado, mas sua presença ainda latejava dentro do templo como uma ferida exposta. Rayhna sentia o peso dele em sua mente. Não bastava escondê-lo — era como se o próprio objeto a perseguisse, costurado aos seus sentidos. À noite, sonhava com olhos cravados nas paredes, olhos que choravam sombra. E fome. Sempre fome.
Ela conhecia aquela fome.
Não era apenas o desejo por sangue.
Era algo mais primitivo. Algo que se contorcia sob a pele, que sussurrava entre as costelas, que sintonizava com os pulsos alheios como se pedisse permissão para devorar. E não era só dela. Lucien também começava a senti-la.
Desde que tocou o relicário, ele não conseguia mais dormir. E quando conseguia, acordava com as mãos tremendo, os olhos ardendo, os lábios feridos por mordê-los demais. Como se houvesse uma presença dentro dele querendo sair. Quase como... uma sede sem fim. Mas nem mesmo o sangue aliviava. Pelo contrário: aumentava.
— Há algo me corroendo por dentro — confessou ele. — Mas não consigo dizer se é fome, culpa ou...
— Ou a visão dela — completou Rayhna.
Estavam sentados na parte mais funda do templo, um lugar que só existia para os que sabiam como abrir os selos de pedra. Abaixo do altar central havia uma cripta esculpida com símbolos da primeira linhagem. Aqueles que haviam dado origem às três. Ali, o ar era mais denso. Quase sólido.
Rayhna observava Lucien como se o estudasse. Como se tentasse enxergar o que estava tentando despertar dentro dele.
— O que você viu quando tocou o relicário? O que mais viu além de Nyx e o altar?
Lucien fechou os olhos. Era sempre doloroso lembrar.
— Vi uma mulher de branco. Cega, mas com olhos desenhados em cada parte do corpo. Nas mãos. No pescoço. Nas costas. Ela caminhava sobre uma superfície de espelhos. E cada reflexo mostrava uma versão diferente de nós. Em uma delas... você estava com nossos filhos. Em outra, você me matava. Em outra ainda, eu te oferecia aos olhos.
Rayhna sentiu um arrepio. A Deusa estava se revelando, ainda que fragmentada. Aquela fome não era só deles. Era dela. Era um eco da ausência. Da separação. Quando os três selos foram criados, parte da essência da Deusa foi arrancada — e a fome permaneceu onde não havia mais voz.
Nyx surgiu novamente. Sempre entre sombras. Sempre no momento certo — ou errado.
— Estão sentindo o que ela quer que sintam. O vazio. A falta. A necessidade.
Lucien a encarou.
— Mas por quê? Por que agora?
Nyx sorriu, enigmática.
— Porque vocês a acordaram. E ela quer lembrar quem é. E para lembrar... precisa devorar o que vocês são.
Rayhna se levantou.
— E se nós a enfrentarmos? E se a impedirmos de chegar até os outros selos?
Nyx se aproximou dela. Seus olhos estavam mais escuros que o normal.
— Rayhna, você já sabe que não é possível vencer uma força esquecida. Só se pode barganhar com ela. E, às vezes, nem isso.
Lucien se levantou, a respiração acelerada.
— E se essa fome alcançar os nossos filhos? — sussurrou. — E se ela sentir a presença deles?
Nyx não respondeu. O silêncio dela foi resposta suficiente.
Rayhna se virou para uma das paredes da cripta. Tocou um dos símbolos em espiral, ativando uma memória ancestral. Um holograma de sangue surgiu no ar, mostrando uma mulher encapuzada com os olhos costurados.
— Isso... — sussurrou Rayhna. — Isso é o que ela era quando foi selada. Privada da visão, para que não reconhecesse seus filhos.
Lucien se aproximou, tocando a imagem.
— Ela teve filhos?
— Todos tivemos — respondeu Nyx, quase com pesar. — Só que alguns sangraram até não restar mais nada. Outros foram escondidos. E um... foi dividido em dois.
O casal de gêmeos.
Rayhna sentiu o relicário pulsar, mesmo trancado em uma das camadas mágicas do templo. Sua ligação com a Deusa estava crescendo. Aquela fome... não era dela. Mas também não era totalmente alheia.
— Eu não vou permitir — murmurou. — Eles não vão sentir essa dor. Não vão carregar a nossa sede.
Nyx a olhou, fria.
— Então você precisa estar disposta a sangrar por eles antes que o tempo acabe.
A fome crescia. A sede se espalhava.
E a Deusa, ainda cega, já começava a farejar seus descendentes.
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