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Tudo Pelo Testamento

Prólogo

•• TEMPOS ATRÁS ••

TIMMMMMM DOMMMMMMMMMM

A campainha da mansão da família Scobbar estrondou os ouvidos de todos. Celine Scobbar estava organizando a mesa de jantar, com o coração palpitando em ansiedade para ver o seu namorado, Vlad Moretti. Quando escutou o som estridente, a moça suspirou pelo susto e correu até a porta, durante o caminho passando as mãos em seu vestido florido para tirar amassados que não existiam.

Ela abriu a porta num ímpeto, tinha um belo sorriso nos lábios tingidos de um rosa bem suave. E lá estava ele... Vlad tinha a sua típica postura irredutível e vestes todas trabalhadas na cor preta. Uma jaqueta de couro de igual cor por cima dos ombros, destacando seus músculos e seu bom gosto, mesmo em dias frios, como o que fazia em Londres naquela noite.

— Meu amor! — a jovem moça falou em alto e bom som, e, mesmo envergonhada, ela se esticou para beijar a boca de seu namorado, que não ostentou uma reação muito palpável.

Ele retribuiu o beijo contragosto e, discretamente, a afastou de si. — Oi, Line. — resmungou, não se dando o trabalho de olhar nos olhos da moça que o encarava com devoção, os olhos verdes brilhando em sua órbita por ter na sua frente quem ela acreditava ser o amor de sua vida.

— Pode entrar.— deu espaço para o rapaz, que deu alguns passos para além da porta, mas não entrou completamente. — O que houve? — indagou Celine, confusa.

— Meus pais... Meus pais vieram.— ele respondeu, num tom baixo e, lá no fundo, irritado. Ele não os queria ali, mas ambos queriam ter a certeza de que seu filho mais novo iria fazer o que ele precisava fazer naquela noite. Ele tinha de pedir a mão de Celine em casamento de uma vez por todas; o casamento precisava acontecer o mais rápido possível e os pais de Vlad cuidariam disso, pessoalmente. Tudo já estava preparado.

Vlad precisava estar casado legitimamente para poder ter direito à empresa e à herança milionária que seu bisavô deixou. No entanto, nas cláusulas do testamento, estava muito explicitado que ambos os bisnetos Moretti precisariam estar casados para ter direito a todo o império da família; caso assim não fosse, ambos perderiam os seus direitos e toda a fortuna de Giuseppe iria para a caridade.

Isso era o que Hannah e Mattias menos queriam. Scott, o filho mais velho, já estava casado há dois anos; ele casou-se antes do 30, que é a exigência obrigatória de Giuseppe em seu testamento: seus bisnetos precisam estar casados antes dos 30 anos para que pudessem ter acesso aos seus respectivos cargos executivos no grupo Moretti e o pleno direito à herança e cotas societárias.

A diferença entre Scott e Vlad? É que este primeiro casou-se por amor. Ele sempre foi loucamente apaixonado por sua atual esposa, ambos se conhecem desde a faculdade.

Mas Vlad não ama Celine.

Eles namoram há 9 meses. E durante este tempo, Vlad tentou se apaixonar por ela de todas as formas. Mas não conseguiu. Todas as suas tentativas foram frustradas até agora. Ele não consegue olhar com amor para uma moça que o ama mais que a tudo em sua vida. Celine, por outro lado, é completamente apaixonada por seu namorado, de tal modo a não conseguir enxergar como ele não a suporta.

Ele tentou. E tentou muito. Vlad só se envolveu com ela por ter a certeza de que é uma boa moça, recatada e que o respeitaria durante seu casamento. Mas no fundo, ele estava em profunda agonia por saber que seria obrigado a de casar e a passar o resto de sua vida com uma mulher que não ama.

— Oh! Sério?— Celine indagou, feliz da vida. Estava pronta para fazer mais perguntas, mas seus sogros já apareceram subitamente. Hannah tinha um belo sorriso no rosto; ela estava bastante satisfeita com a escolha de seu filho. Porque Vlad teve o direito de escolha... Mesmo estando com medo, ela e seu marido permitiram que o filho ao menos escolhesse com quem se casaria, desde que essa fosse uma boa moça. E vendo-a assim, Hannah percebeu que sua filho havia acertado.

Celine, uma menina tão serena. De pele branca e olhos verdes, ela tinha uma aura de pureza fortíssima. Não havia malícia alguma nos olhos da jovem; como filha de uma sensitiva e taróloga que sabe o que faz, ela herdou alguns traços místicos de sua mãe e conseguia sentir que a garota não tinha um coração ruim. Cristã, a moça acreditava veementemente na existência de Deus e Jesus Cristo. Estava sempre nos cultos e nunca, jamais, entregou o seu corpo a Vlad, nesses 9 meses de namoro.

Imaculada, a moça tinha plena convicção de que somente se entregaria ao seu futuro marido; e ela não imaginava que Vlad seria ele. Já fazia um tempo que orava sobre seu relacionamento, mas Deus ainda não lhe tinha dado respostas significativas. Ele continuava em silêncio e Celine, que estava tão apaixonada, não conseguia enxergar a situação de outra maneira que não fosse a aprovação divina a respeito do seu relacionamento.

Ela tinha certeza: Sua relação com Vlad era aceita por Deus. Em seu puro e ingênuo coração, ela sentia que Vlad era o certo. Não por interesse... Ela ao menos sabia das riquezas da família Moretti, não tinha ideia do poder aquisitivo deles, não sabia do cargo que seu namorado estava prestes a assumir. Ela só sabia que ele trabalhava como assistente administrativo numa empresa (uma grande mentira inventada por Vlad, óbvio) e que era estudante de administração de igual modo.

Sempre foi ensinada a não ser interesseira e nunca se aproximar de um homem visando o poder ou a fama.

E Celine cumpriria com a promessa que fez ao Senhor. Ela se casaria por amor. Bem ao contrário de Vlad.

Ele estava odiando tudo aquilo.

— Olá, querida! Que prazer revê-la! — e sim, os pais de Vlad já haviam conhecido a nora, por isso toda a satisfação. Só não tinham o costume de vê-la com frequência.

— O prazer é todo meu, sra. Moretti.— ela respondeu, envergonhada. Acenou para seu sogro, que sempre fora muito sério, sem falar muito.

Mas no fundo, ele gostava bastante dela.

— Vamos entrar de uma vez? Sem recepções dramáticas.— Vlad interrompeu-os e antes mesmo que sua mãe o respondesse à altura, os pais de Celine surgiram.

— Ah, olá, Hannah. Olá, Mattias.— falou o pai de Celine, sério como sempre.

— Por favor, entrem. Se acomodem! Não fiquem aí fora, está fazendo muito frio hoje.— simpática, a mãe de Celine os escoltou até a sala de estar, onde haviam flores em lugares estratégicos... Tulipas, as que Celine mais ama.

A família pensou em absolutamente tudo. Queria recepcionar a família do namorado de sua única filha da melhor maneira possível, até porque, era importante para Celine. Ela amava muito Vlad, estava super feliz com a relação e, consequentemente, sua família também; eles estavam felizes se sua doce menina também estivesse.

Todos então, engataram em conversas animadas. Os pais dos futuros noivos estavam completamente alheios a qualquer fato ao seu redor. Mas Vlad... se sentia perdido. Ele passava os dedos inúmeras vezes pelo volume no bolso de sua calça. Se tratava da caixinha que se encontrava o anel que ele daria a sua namorada.

Mas ele não queria fazer aquilo.

Vez ou outra seus pais lhe enviavam olhares sugestivos. Eles precisavam que Vlad fizesse aquilo o mais rápido possível, sem perder tempo.

E, mesmo se recusando por dentro, ele o fez.

Os olhos de Celine brilharam. Seu coração palpitou. Lágrimas escorreram pelos seus olhos quando ela ouviu o rapaz que tanto ama a pedir em casamento.

Os pais de Vlad sorriam emocionados. Eles estavam orgulhosos, só esperando Celine dizer sim, mesmo que eles já soubessem que ela faria exatamente isso.

E ela, de fato, o fez. De coração aberto.

Sem imaginar que estava assinando sua própria sentença. Sem imaginar que estava sendo enganada massivamente por pessoas que ela acreditava gostar dela de verdade.

Porque nem tudo o que reluz é ouro. Nem todos os que se dizem amigos realmente são. E ela aprenderia isso da pior forma possível.

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Capítulo 01 | A Cláusula Quarta

📜 CLÁUSULA QUARTA – DAS CONDIÇÕES DE ACESSO À DIRETORIA E HERANÇA.

Fica expressamente determinado que os bisnetos legítimos do Sr. Giuseppe Moretti, fundador do Grupo Moretti, somente poderão assumir cargos executivos na diretoria da empresa, bem como fazer jus, em caráter pleno, à herança e às cotas societárias a que tiverem direito, desde que estejam legal e civilmente casados até a data em que completarem 30 (trinta) anos de idade.

Considera-se "casamento legítimo", para os fins desta cláusula, aquele que:

I – esteja regularmente registrado em cartório competente;

II – esteja vigente há, no mínimo, 12 (doze) meses completos à data do requerimento sucessório;

III – não configure arranjo de conveniência, acordo contratual ou qualquer fraude à boa-fé objetiva.

O descumprimento de quaisquer dos requisitos acima implicará exclusão automática e irrevogável dos direitos sucessórios e societários previstos neste testamento.

Fica ressalvada a aplicação desta cláusula nos casos de invalidez permanente ou falecimento precoce do herdeiro, mediante comprovação documental idônea.

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• Dias atuais •

A casa estava silenciosa demais para uma manhã de sábado. No quarto, Celine ainda dormia — deitada de lado, como sempre fazia, com a mão estendida no espaço vazio da cama.

Vlad a observava como quem assiste a um filme distante: a mulher perfeita, no lugar errado, na hora errada. Faltava exatamente um mês para completarem um ano de casamento.

E ele queria fugir.

Como já suspeitava, não conseguia sentir absolutamente nada por sua esposa. Nesses onze meses, sua vida se resumia a duas coisas: trabalhar e beber. Beber muito. Como se a embriaguez anestesiasse o mundo, abafasse o som da realidade, calasse o que ele não queria ouvir.

Ele não ouvia mais Celine falando sobre seu dia, sobre como estava animada com a formatura que se aproximava. Ela falava com brilho nos olhos — do estágio na clínica, dos pacientes, das aulas que amava. Ela falava sobre o futuro.

E Vlad... só queria apagar o presente.

Estava farto. Farto da casa, do silêncio, do “nós” que nunca existiu. Farto dela.

E, acima de tudo, farto de si mesmo por estar submetido a uma situação tão embaraçosa.

O sol filtrava-se timidamente pelas cortinas escuras, tocando o rosto de Celine com uma delicadeza quase divina. Ela se mexeu lentamente, os cílios trêmulos, até abrir os olhos inchadinhos de sono. Um leve sorriso se formou em seus lábios ao ver Vlad ali, sentado à beira da cama, ainda de costas.

Ela imaginou que ele estava a esperando acordar.

— Amor… — sussurrou, a voz rouca e sonolenta.

Estendeu o braço e tocou de leve as costas dele, subindo a mão para seu ombro. — Você tá acordado há muito tempo?

Ele não respondeu de imediato.

Ela se sentou devagar, ainda enrolada no lençol, e encostou o queixo em seu ombro, com a mesma ternura de sempre. Fechou os olhos por um instante e tentou envolvê-lo num abraço suave por trás, como fazia quase todas as manhãs.

Mas Vlad se levantou antes que os braços dela o alcançassem.

— Eu tenho que sair — murmurou, seco, sem olhar pra trás. Foi até o closet, fingindo procurar algo com pressa.

Celine ficou ali, parada, os braços ainda meio erguidos no ar, abraçando o vazio.

— Mas é sábado… — disse ela, tentando manter o tom leve, como se fosse só mais uma manhã qualquer. — Você disse que hoje a gente ia tomar café juntos. Lembra?

Vlad enrugou as sobrancelhas, vagando sua mente em busca do momento em que ele mencionou isso e lembrou-se, finalmente: ontem à noite. Enquanto estava bêbado, ouvindo Celine reclamar de como ele já não tem tempo para ela. Ele, de fato, prometeu que tomariam café juntos hoje.

— Mudei de ideia. Tenho coisas pra resolver — respondeu, agora já vestindo a camisa como se estivesse atrasado pra um compromisso que não existe.

Ela mordeu o lábio inferior, engolindo a pontada no peito. Queria perguntar o que estava acontecendo. Queria entender a distância. Mas engoliu tudo.

Ela sempre engolia.

— Tudo bem — sussurrou, mais pra si mesma do que pra ele. Fingindo que suas palavras não a haviam machucado.

Vlad pegou a carteira, o celular, e antes de sair do quarto, deu uma última olhada para ela. Celine ainda estava sentada na cama, o lençol cobrindo as pernas, o cabelo bagunçado, os olhos esperançosos e perdidos ao mesmo tempo.

Ele desviou o olhar.

E saiu.

Na verdade, ele estava indo a uma cafeteria com o seu melhor amigo. Izachiel. Ele já o estava aguardando. Tem sido o seu confidente, desde o casamento.

Izachiel o ouve reclamar sobre a sua vida, sobre tudo. Silenciosamente. Mas hoje isso mudaria.

O sino da porta soou com um tilintar abafado quando Vlad entrou. Izachiel já estava lá, encostado no estofado marrom da cafeteria, girando a colherzinha dentro da xícara com a paciência de quem já conhece o atraso do amigo.

O cheiro predominante na cafeteria era de café e croissant amanteigado. Vlad se sentiu em casa... Ele odiava sentir cheiro de lar em lugares que estavam longe de ser, mas a verdade é que qualquer que fosse o local, este seria mais confortável para ele do que estar em sua casa, na companhia de sua esposa.

Vlad sentou-se em silêncio, largando o celular sobre a mesa. A garçonete chegou sem que ele pedisse, deixando um café preto fumegante à sua frente.

— Você saiu cedo hoje, — comentou Izachiel, com um meio sorriso. — Ou fugiu?

— Precisava de ar. — respondeu Vlad, com o olhar fixo na rua molhada do outro lado da vidraça.

— E a esposa perfeita? — Izachiel provocou, pegando sua xícara. — Ainda te olha como se você fosse a última esperança da humanidade?

— Ela tentou me abraçar — disse Vlad, seco. Um gosto amargo na boca ao relembrar cada parte da cena — Acordou sorrindo, falando sobre o café da manhã que eu prometi a ela quando estava bêbado ontem, toda feliz... E eu não consegui fingir.

Izachiel bufou uma risada baixa. — E você fez o quê?

— Saí. Disse que tinha coisa pra resolver.

— Você sabe que tá vivendo com uma mulher que te ama de verdade, né? — disse Izachiel, encarando-o com seriedade. — Você trata ela como se fosse um boleto vencido, mas ela continua lá. Firme.

— Ela é boa demais — Vlad disse, quase como um insulto. — Ingênua até demais.

— Ou talvez só tenha fé onde você já não tem mais nada. — rebateu instantâneamente, como se já soubesse que essa seria a resposta dele.

Vlad apertou a ponta do nariz, visivelmente incomodado. — Não começa com esse papo, Izachiel.

— Tá, então me diz. Qual é o plano? Esperar o mês passar, pegar a herança, assumir o cargo, meter o pé e deixar ela com o coração em frangalhos?

— Não sei ainda. — respondeu ele. Dizer que não pensou nessa alternativa seria uma grande farsa.

— Mentira. Você sabe. Você só não quer admitir.

— Admitir o quê

— Que você tem medo, Vlad. Não dela. De você mesmo. — Vlad desviou o olhar, fixando-o na fumaça que subia da xícara.

— Eu só quero terminar o que comecei. Cumprir o que esperam de mim. Depois disso, cada um segue o seu caminho. — ele falou como se fosse fácil.

Izachiel deu um sorriso sarcástico. — E você acha mesmo que vai sair ileso disso tudo?

— Quando eu entrei nessa situação já não estava bem.

— É. Mas dessa vez... você vai perder algo que talvez nem mereça. Mas que te faria bem.

Vlad não respondeu.

Ficou apenas ali, encarando a rua, ignorando o café e fingindo que as palavras do melhor amigo não o haviam atingido.

Mas tinham. E ele sabia.

Izachiel recostou-se no assento, cruzando os braços e observando o amigo como quem analisa uma bomba-relógio.

— Cara, eu realmente não queria ser você — disse, sem rodeios. — Tá na cara que você tá odiando esse casamento. E não adianta dizer que a culpa é da Celine, porque é sua. Toda sua.

Vlad soltou uma risada seca, sem humor.

— Obrigado pela solidariedade.

— Não é piada, Vlad. Você parece um prisioneiro com aliança no dedo. Você vai pra casa como quem volta pra cela.

— Eu tô fazendo o que precisa ser feito — rebateu, o tom mais defensivo do que queria demonstrar.

— Tá fazendo o que mandaram você fazer — corrigiu Izachiel. — E tá fingindo que tá tudo bem. Só que não tá.

Vlad apertou a xícara entre os dedos, a mandíbula travada.

— Você acha que eu queria isso? Que eu escolhi essa porra de vida?

— Você escolheu mentir pra ela. Escolheu se calar. Escolheu continuar. E agora tá aí, preso num casamento com uma mulher que daria tudo por você, enquanto você fica fingindo que é a vítima.

Vlad soltou o ar com força, encarando o amigo.

— Eu não sou a porra da vítima. Mas também não sou o vilão.

— Não? Então o que você é? — Izachiel provocou. — Um cara confuso demais pra ir embora, orgulhoso demais pra ficar de verdade?

Vlad ficou em silêncio.

Izachiel se inclinou um pouco pra frente, baixando o tom, como quem vai direto no centro da alma:

— Você tá odiando esse casamento, Vlad, porque não teve coragem de amar. E agora, tá com medo do que vai sobrar de você quando tudo acabar. Você está enganando a Celine, impediu ela de conhecer um cara que gostasse dela de verdade. Você sabe que vai pagar por isso, não sabe?

Vlad desviou o olhar, encarando a rua nublada mais uma vez. A cidade continuava viva lá fora. Mas dentro dele, tudo estava em ruínas.

— A culpa não foi minha, Izachiel. Eu não tinha escolha.

Izachiel soltou uma risada curta, quase incrédula. — Não tinha escolha? —, repetiu, encarando o amigo como se não acreditasse no que ouviu. — Você sempre teve escolha, Vlad. Só não teve coragem.

Vlad não respondeu. Apenas firmou os olhos no asfalto molhado lá fora, tentando não demonstrar que a frase tinha entrado como faca.

— Você podia ter dito não. Podia ter sido honesto com ela. Podia ter ido embora antes do altar. Mas não. Você preferiu prender uma mulher incrível num casamento sem amor só por dinheiro. A verdade é essa, cara. Você está fazendo ela passar por tudo isso só pelo seu bem financeiro.

Izachiel fez uma pausa, pegou a xícara e bebeu o resto do café já frio, antes de continuar, mais baixo:

— E o pior... é que ela ainda acredita em você. Acha que você tá só estressado. Que com o tempo, as coisas vão melhorar. Mal sabe ela que tá casada com um homem que já desistiu antes mesmo de tentar. Que só está com ela por causa de uma droga de testamento ridículo. Tô te falando, cara... Você acha que vai ser fácil, mas essa situação vai te destruir por dentro. Não se brinca com os sentimentos dos outros desse jeito, Vlad.

Vlad fechou os olhos por um instante, sentindo a nuca pesar. A frase ressoou fundo — mais do que ele admitiria.

— Você sabe que vai perdê-la, né? —, completou Izachiel. — E quando perder... vai ser tarde. Não vai ter volta. Essa garota gosta de você de verdade, Vlad. Ela te ama.

— Ela não vai embora —, respondeu Vlad, baixo. — Ela é o tipo de mulher que aguenta até o fim. Mas sou eu quem vou. Eu só estou com ela até os 12 meses se completarem. Depois disso, ela está livre para ir.

Izachiel encarou-o, sério. — Você é louco, cara. Você poderia ter escolhido uma moça que gostasse. Isso tornaria as coisas mais fáceis pra você. Estaria com uma mulher que ama e não plantando frutos amargos que você vai odiar colher mais tarde.

Vlad passou as mãos pelo rosto, como quem tenta tirar o peso das palavras do ar. Mas o peso estava dentro dele.

— Não é sobre gostar, Izachiel — respondeu, seco. — É sobre cumprir um maldito testamento. Eu precisava de alguém confiável, que não fosse escandalosa, que mantivesse as aparências, que fosse decente. E a Celine... servia.

Izachiel arregalou os olhos, quase derrubando a xícara.

— Servia? —, repetiu, indignado. — Você tá ouvindo o que tá dizendo? Ela não é uma peça de xadrez, Vlad. É uma mulher. Uma mulher que tá se entregando inteira a um casamento que, pra você, é só um prazo.

— Não torna isso menos verdade —, murmurou Vlad, evitando o olhar do amigo. — Tá, ela é boa. Boa demais. Mas não pra mim. Por isso vou liberá-la depois de conseguir o que eu quero.

Izachiel se inclinou na mesa, o semblante carregado.

— Você sabe que ela vai se despedaçar quando souber. Sabe disso, né? Ela não é do tipo que simplesmente junta os pedaços e segue. Você vai quebrar ela num ponto que talvez nem se reconstrua.

— Por isso eu não vou contar —, disse Vlad, frio. — Pelo menos não tudo. Ela vai entender quando acontecer. Vai me odiar. Vai embora. E segue a vida.

— Você vai continuar fingindo mais um mês? Comendo do prato que ela faz com amor, dormindo ao lado dela toda noite, ouvindo ela planejar um futuro que você já sabe que não vai existir?

— É só um mês. — ele rebateu, como se tentasse se convencer também.

Izachiel balançou a cabeça, incrédulo.

— Você é o homem mais frio que eu conheço. E, sinceramente, espero que um dia você sinta na pele o que é amar alguém e não ser correspondido.

Vlad sorriu de canto, amargo. — Você é meu amigo ou não? Está contra mim agora, Izachiel?— indagou, com uma sobrancelha erguida.

— Eu só não concordo com o seu posicionamento e frieza quanto aos sentimentos alheios, Vlad. Ela é um ser humano e, cara, te ama. — ele continuou insistindo. Na verdade, já estava com o coração na mão por essa situação há um tempo. A crueldade de Vlad estava o assustando, ele não conseguia nem imaginar o que seria dessa garota ao descobrir tudo o que ele estava fazendo.

Vlad se levantou, irritado. — Já chega. Estou indo embora. Izachiel, se você não vai me ajudar, não atrapalhe. Você sabe as minhas razões e motivos, eu precisava fazer isso — murmurou, a voz rouca, carregada de tensão. — Mas eu não te devo satisfação. Se você não vai me entender, eu prefiro não falar mais nada.

E foi embora. Carregando o mundo nos ombros.

No fundo, ele também não estava bem com toda a situação. Mas não tinha muito o que se fazer sobre isso. Vlad não tinha escolhas.

Ele só queria se ver livre daquele casamento.

...❀ • ❀ • ❀ • ❀ • ❀ • ❀ • ❀ • ❀...

Capítulo 02 | Deslize.

Dias depois, o céu continuava cinzento como de costume em Londres, mas dentro da casa da família Scobbar o ambiente era acolhedor. O cheiro de bolo de laranja recém-assado preenchia cada cômodo, misturado ao perfume suave de lavanda que Hannah, a mãe de Celine, sempre usava.

Celine estava sentada à mesa da cozinha, com uma xícara de chá entre as mãos. Os olhos verdes fitavam a cerâmica como se buscassem alguma resposta ali dentro. Estava mais quieta do que de costume.

Do outro lado da mesa, Hannah observava a filha em silêncio. Já havia aprendido, com o tempo, a reconhecer quando sua filha estava incomodada com alguma coisa.

— Faz dias que você não vem aqui, minha filha. — comentou, com aquele tom calmo de quem fala e acolhe ao mesmo tempo. — Aí chega e fica com esse olhar perdido no nada... O que foi, hein?

Celine deu um sorriso leve, tentando parecer tranquila. — Ah, mãe... é só cansaço. Faculdade, casa, casamento... tudo junto parece muito pra mim às vezes.

Hannah serviu duas fatias de bolo e empurrou uma delas para a filha.

— E o Vlad? Como ele tá?

— Ele tá... bem — respondeu Celine, depois de uma pausa. — Só anda muito na dele, sabe? Mais calado que o normal. Vive cansado, volta tarde do trabalho. Mal come direito. Eu até tento animar ele, mas... sei lá. Às vezes acho que ele tá carregando alguma coisa sozinho.

Hannah assentiu, tranquila.

— Homem é bicho esquisito, filha. Quando a cabeça tá cheia, eles travam. Ficam calados, fecham o rosto... e se a gente insiste, eles se recolhem mais ainda.

Celine mordeu o canto do lábio. — Será que é comigo, mãe? Alguma coisa que eu fiz?

— Não, meu amor. Não se culpe por um silêncio que não é seu. Às vezes é só o peso da vida mesmo. O Vlad tá lidando com muita coisa, imagino eu. Trabalho, pressões, expectativas... não é fácil. E olha, casamento é assim mesmo no começo. Vocês ainda estão se ajustando.

— Eu fico orando, sabe? — confessou Celine. — Pra que Deus traga leveza pra gente. Que Ele me ajude a entender o Vlad. Eu sei que é só uma fase. Talvez por ser o nosso início seja mais complicado. Espero que mudemos com o passar dos anos.

— Você tá certa, meu bem. Deus tá no controle. Sempre esteve. Se for pra durar, Ele vai sustentar. Se for só um teste, Ele vai te dar sabedoria pra passar. Confia. E segue sendo quem você é. O amor se alimenta disso: constância. — ela a tranquilizou. — Eu e seu pai éramos assim no começo. Depois tudo foi se ajustando... Vai ser assim com você. Você vai ver.

Celine sorriu, um pouco mais aliviada. — Obrigada, mãe. Às vezes eu só preciso ouvir isso. Que vai ficar tudo bem.

— Vai sim. Mas se não ficar... você vai. Porque você é forte. E tem fé. Deus admira isso, filha.

Celine respirou fundo, tentando guardar cada palavra da mãe dentro do coração. Pegou mais um pedaço de bolo, dessa vez com mais calma, e mordeu devagar, como se mastigasse também o consolo.

— Você sempre sabe o que dizer — comentou, baixinho.

Hannah sorriu. — É que eu conheço você desde o primeiro suspiro, minha flor. E sei quando tá tentando parecer forte só pra não preocupar ninguém.

Celine desviou os olhos, rindo de leve, um pouco envergonhada. — Peguei isso da senhora.

— Pegou mesmo — respondeu Hannah, levantando-se para começar a juntar a louça. — Mas promete pra mim que vai cuidar do seu coração, tá bem? Seja qual for o rumo da vida, não deixe ele endurecer.

— Prometo. — ela sorriu para a mãe, acalmando o coração dela.

• • •

Já era fim de tarde quando Celine se despediu, envolta no casaco bege que sua mãe a presenteou. Do lado de fora, a chuva havia cessado, mas o céu ainda carregava um cinza melancólico, típico da cidade. Ela apertou a bolsa contra o corpo e foi caminhando em direção ao ponto de ônibus com passos calmos, quase serenos. Como se aquela conversa com a mãe tivesse sido o bálsamo que precisava pra continuar acreditando.

Ao entrar no ônibus, encostou a testa no vidro e ficou observando os prédios passarem. Seu telefone vibrou.

Era uma mensagem de Vlad. Curta. Fria.

>> Chego tarde. Reunião estendida. Não precisa me esperar.

Celine soltou um suspiro longo e apoiou o celular no colo, encarando o reflexo da própria expressão no vidro.

Ela sorriu.

Não porque estava feliz.

Mas porque acreditava que o amor era escolha. E ela escolheria todos os dias — até ele aprender a escolher de volta.

• • •

O relógio marcava às 2h45 da manhã quando Vlad abriu a porta do quarto, com bastante cuidado. Ele olhou para a sua esposa deitada na cama, sua camisola de seda rosa bebê era evidente, ela estava descoberta pelo lençol.

Ele observou o corpo dela. Torneado, ela tinha uma bunda arrebitada, característica muito diferente de algumas mulheres que ele já esteve. Ele estava muito bêbado, tinha ingerido uma quantidade de álcool exacerbada, ele queria esquecer da sua realidade e naquele momento, nutria um desejo estranho. — Celine? — chamou por ela, a voz rouca pela bebedeira, mas ele não se importou.

Ela despertou rapidamente, levantou-se devagar, os olhos ainda meio sonolentos, e encarou-o. Estava esperando por ele. — Você demorou. Eu estava preocupada.— respondeu já se levantando, sem ao menos esperar se recompor.

Celine caminhou até ele, o olhar firme, e sentiu o cheiro forte do álcool vindo dele. Um misto de tristeza e alarme apertou seu peito.

Vlad se aproximou, vacilante, e segurou o rosto dela entre as mãos. Não deixou que ela falasse muito mais, sabia que por aí viria um belo sermão, que ele ao menos se importaria.

— Eu... eu preciso de você.— Ela engoliu em seco, surpresa com aquela vulnerabilidade inesperada.

Ele puxou-a para perto, os lábios deslizando num beijo lento, urgente. Sabia que se arrependeria disso amanhã, mas naquele momento, não fez a menor diferença pra ele.

— Faz amor comigo, Celine. Eu preciso tanto de você. — A voz dele era um sussurro áspero, pedindo mais do que apenas um encontro físico — um resgate. Ele estava louco por um toque a mais, já ostentando uma bela ereção entre as pernas e ele se espremeu no corpo de sua mulher, fazendo com que ela sentisse o quanto estava a desejando naquele momento.

Ela hesitou, mas o desejo, a saudade e a ternura escondida por trás daquele homem quebrado falaram mais alto. Eles não se envolviam dessa forma há meses... Vlad a evitava, não a procurava mais. Celine estava mal com tudo aquilo. E sentia-se ainda pior por estar enfraquecida nos braços dele, pois era ali que ela amava estar; ela se sentia culpada por não conseguir resistir e realmente cogitar a ideia de fazer amor com ele nessas condições.

— Eu estou aqui — murmurou ela, entregando-se ao momento que ambos precisavam. Vlad sentia que precisava. Pelo menos por essa noite.

Ele a beijou novamente — mais forte, mais intenso — como se tentasse, com a boca, calar tudo o que não conseguia dizer. As mãos deslizaram pelas costas dela, firmes, mas ainda cuidadosas, como se estivessem reconhecendo um território esquecido.

Celine sentia o corpo inteiro estremecer, confuso entre o prazer e o vazio. Havia sede naquele toque. Sede de algo que ele não nomeava, mas que ardia por dentro. E ela... ela o amava. Mesmo ferida, mesmo desconfiada, mesmo temendo que aquilo fosse só uma consequência do álcool.

— Você é linda demais, caralho… — murmurou ele contra sua pele, beijando o pescoço dela com um desespero que misturava luxúria e desamparo.

As mãos dele encontraram a barra da camisola e subiram por suas coxas. Ela arfou, sentindo o calor crescer, se espalhar. Seu corpo já conhecia aquele caminho. Mas o coração... o coração hesitava.

— Vlad…— ela sussurrou, com a voz embargada. — Por favor… não some depois disso.

Ele parou por um segundo, os olhos fixos nos dela. Estavam vermelhos, marejados, como se tivesse engolido mil gritos e não soubesse como soltar nenhum.

As palavras de Izachiel reverberaram pelos seus pensamentos naquele momento. A repreensão do seu melhor amigo, o fato de ele estar brincando com os sentimentos de Celine.

Mas Vlad espantou tudo aquilo pra longe, tornando a pensar somente no seu próprio bem-estar.

— Eu só quero você agora — ele respondeu, com honestidade crua. — Só isso. Só você.

Ela assentiu, mesmo sem certezas. Mesmo em completa confusão.

As roupas foram caindo uma a uma, sem pressa, como se cada peça retirada fosse também uma camada de distância arrancada à força. E, por alguns minutos, só existiram eles dois — nus, ofegantes, entre lençóis bagunçados e promessas que não se fizeram.

Ele a tocava como se quisesse se lembrar de quem era. Ela o recebia como quem acolhe uma tempestade com os olhos fechados e o peito aberto.

E, naquela madrugada cinzenta, Londres continuava dormindo… Enquanto no quarto deles, o amor — ou algo muito parecido com ele — renascia entre o caos.

• Dia seguinte •

O sol mal havia nascido, mas um feixe pálido de luz atravessava as frestas da cortina. A cidade ainda estava silenciosa, mergulhada na calmaria de uma quarta-feira gelada.

Vlad abriu os olhos devagar. A cabeça latejava, a boca estava seca e havia um gosto amargo no fundo da garganta — típico da ressaca. Por um momento, não soube onde estava. Até sentir o toque frio do lençol nos quadris… e perceber que estava nu.

Franziu a testa, confuso, se apoiando nos cotovelos. Olhou ao redor. O quarto ainda cheirava a lavanda e… sexo. Seu corpo doía em lugares que ele sequer lembrava de ter usado. E foi então que escutou o som da água.

O chuveiro ligado.

Celine estava no banheiro.

A memória veio como um relâmpago: a porta se abrindo, o corpo dela vindo em sua direção, os beijos, o toque… o pedido dele. — Faz amor comigo, Celine.

Ele fechou os olhos com força e passou as mãos pelo rosto, praguejando em silêncio.

— Merda.

Levantou-se num rompante, ignorando o enjoo, e começou a vestir-se às pressas. Pegou a calça do chão, a camisa amarrotada da poltrona. Vestia-se como quem tentava apagar um erro com as próprias mãos trêmulas.

A raiva crescia como veneno na garganta.

Não dela.

Dele mesmo.

— Por que eu fiz isso...? — murmurou, baixo, amargo.

O som do chuveiro cessou. E o coração dele bateu mais rápido. Não por saudade. Por pânico e muito ódio.

Ele precisava sair dali. Precisava pôr distância antes que ela abrisse a porta com aquele olhar calmo e ingênuo. Antes que ela dissesse algo doce — algo que fizesse tudo parecer real.

Porque não era.

Porque, na cabeça dele, não podia ser. Aquilo não estava certo, nada daquilo estava.

— Eu não a amo — ele repetia isso em sua cabeça inúmeras vezes.

Vestiu os sapatos sem meias. Pegou a carteira e o celular com pressa. Olhou uma última vez para a porta do banheiro, hesitante. O vapor começava a escapar pela fresta de cima.

E ele sabia. Se visse o rosto dela agora, se ouvisse a voz suave chamando seu nome, ele perderia o controle. Diria coisas que não quer dizer, não agora. A culpa só aumentava, principalmente depois de sentir o cheiro dela na sua pele.

Vlad não queria piorar as coisas. Ele precisava manter a distância — afinal de contas, só resta um mês.

Um mês para todo esse "pesadelo" acabar.

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