Capítulo 1 — O Sol Me Encontrou Primeiro
> Eu sempre achei que ser feliz é um estado de espírito.
Às vezes vem com um sorriso, às vezes com um café quente.
No meu caso, é quando o sol entra no quarto antes mesmo do despertador tocar.
Acordei com a luz da manhã batendo direto no rosto, atravessando a cortina bege do meu quarto. Eram seis e pouco. O despertador ainda tinha uns bons minutos de descanso, mas o sol sempre me acorda antes.
Levantei devagar, sentindo o chão gelado nos pés, e fui direto pra varanda. Lá de cima, o mundo parecia mais calmo. O mar lá no fundo, os coqueiros balançando com aquele vento gostoso e o cheiro do café subindo de algum lugar... provavelmente do apartamento da minha avó, Dona Maria, que mora no prédio da frente.
Aliás, não existe outro ser humano mais importante que ela.
Acho que eu sou quem sou por causa dela. Sempre firme, sempre doce. Foi quem me ensinou a sorrir nos dias ruins e a levantar quando o mundo empurrava. Ela e o Lucas, meu sobrinho. O maior presente que meu irmão já deu sem querer. O menino tem só cinco anos, mas já tem opinião pra tudo e mais fome do que três adultos juntos.
Sou a Lara. Tenho 25 anos, sou loira, baixinha (com muito orgulho dos meus 1,50), olhos claros, coração leve e cabeça cheia de sonhos — e de contratos.
Dona de uma das maiores redes de academia do Brasil, a Corpo em Dia. Personal trainer, empresária e professora. E mesmo assim, ainda arranjo tempo pra cuidar da pele, dar risada com as minhas amigas e visitar a vovó sempre que dá.
Moro sozinha num apê de dois quartos com suíte, em Maceió. Um dos melhores condomínios da cidade, com piscina, segurança 24h e uma vista que parece de cartão-postal. Meu apartamento é a minha bolha. Cheio de plantinhas, cheirinho de baunilha e música leve tocando o tempo todo.
Mas eu não sou só isso.
Tenho duas amigas que são minha fortaleza. A Julia e a Bianca. Julia trabalha comigo na academia, é minha parceira de treino e de vida. A gente se entende só no olhar. Já a Bianca ainda tá na faculdade — quer ser médica. Ela é mais nova, tem 22, e é o coração em pessoa. Sabe aquele tipo de amiga que manda mensagem só pra dizer "tô com saudade"? Então, é ela.
Enquanto preparava meu shake matinal, escutei o toque do WhatsApp:
[Grupo: As Três Patetas]
👵 Julia: “Vai demorar pra descer, princesa do nordeste?”
👩 Bianca: “Se ela atrasar, eu como o pão de queijo da mochila dela 😒”
Ri sozinha. É nessas horas que eu tenho certeza que a vida vale a pena.
Tomei meu shake, arrumei o cabelo num coque alto, peguei minha garrafinha, conferi a mochila e desci. O porteiro me cumprimentou com aquele sorriso de quem já sabe que eu sou a “menina do sorriso fácil”.
Lá fora, o dia estava radiante. Típico de Maceió. O céu azul, o calor chegando de leve, e aquela sensação boa de que o dia ia render.
Eu entrei no carro com Julia dirigindo e Bianca de passageira, mesmo sem trabalhar na academia.
— Hoje o dia vai ser bom, viu? Tô sentindo! — eu disse, animada.
— Isso me dá medo — Bianca respondeu, rindo — Toda vez que você fala isso, alguma bomba estoura.
Eu gargalhei, sem me preocupar. Eu estava leve. Estava feliz. O mundo podia esperar.
Só que não esperou.
Chegamos na academia com aquele cheiro de limpeza misturado com perfume de eucalipto, música ambiente tocando pop leve, e o pessoal da recepção com aquele “bom dia” ensaiado, mas sincero.
Mas foi só eu entrar na minha sala que a coisa começou a desandar.
A gerente da unidade principal, Marcela, estava sentada na minha mesa, com o notebook aberto e uma cara que eu já conhecia.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, tirando os óculos escuros.
— Aconteceu sim. A empresa da parceria de roupas e suplementos... rescindiu o contrato.
Pisquei. Respirei. E sentei.
— Como assim? Ontem a gente ainda estava programando o evento de lançamento.
— Pois é. E hoje eles mandaram o jurídico. Dizem que não vão seguir com a parceria. Problemas de logística interna, segundo eles. Mas o que parece mesmo é que conseguiram um contrato com a concorrente.
Fiquei em silêncio por um segundo. Peguei a pasta com os documentos que estavam em cima da mesa.
Nada no mundo dos negócios é certo. Mas eu não estava esperando isso logo hoje, quando eu tava achando que o universo tava me abraçando.
— E agora? — perguntei, respirando fundo.
— Agora a gente precisa de outro parceiro. E rápido. Porque o plano de expansão envolve essa integração de suplemento + vestuário fitness. Se não tiver isso, os novos estúdios perdem parte do conceito.
Era isso. A parte que ninguém vê no Instagram.
Atrás dos vídeos bonitos, do feed todo padronizado, da aula de funcional que termina com palmas, tem isso: cancelamentos, contratos rompidos, decisões emergenciais, reuniões fora de hora e uma mulher de 1,50 precisando segurar uma rede nacional com o próprio braço.
Mas tudo bem. A gente dá um jeito. Eu sempre dou.
— Liga pro jurídico. Pede pra revisar o contrato e ver se a quebra foi legal mesmo. E começa a listar empresas que se encaixam no nosso perfil. Eu quero um novo parceiro fechado até sexta.
— Isso dá três dias, Lara.
— Então começa agora. Eu vou fazer isso funcionar. Nem que eu tenha que vender whey na porta.
Marcela sorriu, aliviada.
Porque ela sabe. Quando eu digo que vai funcionar... vai.
Peguei meu celular e fui direto pra lista de contatos.
Eu conhecia gente. Muita gente. E eu ia fazer esse negócio acontecer.
Mas antes...
Respirei fundo, olhei pela janela da minha sala envidraçada, vi o povo treinando lá embaixo, correndo na esteira, sorrindo com os instrutores...
> O dia ainda podia ser bom.
Só ia dar um pouco mais de
Desci até o térreo depois da conversa com Marcela. Estava com a mente a mil, mas tentando manter o sorriso. Meus alunos não têm culpa das minhas tretas empresariais.
Encontrei Julia na recepção, com o tablet na mão e cara de quem já sabia que o dia tinha virado de cabeça pra baixo.
— Marcela te contou, né? — perguntei, me encostando no balcão.
— Contou. E eu já fiz o que você faria: mandei e-mail pra algumas empresas do setor, aqui e fora do país. Inclusive... — ela virou o tablet pra mim — tem uma que respondeu.
Arqueei uma sobrancelha, surpresa.
— Já? Quem?
— Uma tal de VitalShape México. Nunca ouvi falar, mas eles são gigantes lá fora. Mandaram mensagem dizendo que estavam de olho na expansão da sua marca, e que seria uma honra conversar.
— Que?
Julia riu.
— “A honra é toda nossa”, provavelmente eles esperavam que você dissesse isso.
— E eu vou dizer. — falei, pegando o tablet — Mas como assim empresa mexicana querendo negociar com a Corpo em Dia?
— Globalização, baby — ela piscou — E talvez, sorte.
Ou destino. Ou só mais uma loucura da minha vida.
— E a reunião? Remota?
— Não. Eles querem que você vá até o México. Conhecer a sede, o ambiente, os produtos, tudo. Eles vão bancar passagem e hospedagem.
— Já assim? Sem nem uma call?
— É. Eu também achei rápido demais. Mas eles foram bem diretos. Disseram que pra fechar com alguém como você, o CEO faz questão de conhecer pessoalmente. Segundo eles, “há um conceito por trás da marca que precisa ser compreendido ao vivo”.
— Traduzindo: o bonitão quer me ver de perto.
— Ou ele é só um velho mexicano metódico que gosta de ver o brilho nos olhos do parceiro de negócios. — ela disse, rindo.
— Pior ainda.
Sentei ali mesmo, no sofá da recepção. Peguei o tablet, reli o e-mail umas três vezes. Tava tudo certo: a empresa existia, tinha redes internacionais, uma base sólida no México e unidades na Colômbia, Argentina e até Espanha. Eles estavam em expansão no Brasil e queriam uma marca sólida pra “fusão de imagem e estrutura”.
E ali estava meu nome. Lara Mendes. Destacada.
Queriam negociar comigo.
— Aceita, né? — Julia perguntou, sentando ao meu lado.
— Você duvida?
— Nunca.
Peguei meu celular e respondi o e-mail com toda a elegância que a situação pedia.
Meu espanhol era afiado. Sempre foi. Não precisava de tradutor, nem de ajuda. Conseguia me virar perfeitamente — e até mais do que isso.
Falei com segurança, sem medo, como se fosse minha segunda língua.
Assim que cliquei em "Enviar", senti aquela coisa no peito.
Não era medo.
Era... alguma coisa entre ansiedade e curiosidade.
> Uma viagem. Uma reunião. Uma chance de reconstruir o que parecia perdido.
— Então é isso — eu disse, me levantando — Vou pro México.
— A gente vai, né? — Julia rebateu, com aquele olhar malicioso.
— Claro que vai. Eu não viajo sem minha secretária, minha guia emocional e minha caixa de calmantes natural.
— Ainda bem que você me ama.
— Mais do que amo meu whey de baunilha.
---
Alguns dias se passaram. Correria com os contratos, ajustes com o jurídico, reserva de passagem e preparação da apresentação da Corpo em Dia. Tudo nos trinques.
O embarque tava marcado pra quinta. E eu tava tentando me convencer que ia ser só uma reunião. Só uma negociação como tantas outras.
Mas dentro de mim...
Eu sentia que isso não era só mais uma página.
Talvez fosse o começo de outro livro inteiro.
---
Capítulo 2 — Areia, Sal e Um Toque de Destino
Se tem um lugar onde eu me sinto inteira, é na praia.
Sol, mar, vento bagunçando o cabelo... e o riso do Lucas ecoando como se fosse trilha sonora da minha vida.
Antes de qualquer viagem, de qualquer contrato, de qualquer salto no escuro, eu precisava disso. Um último fim de semana com eles. Com minha base.
Avisei Julia que passaria o sábado e domingo off, desliguei o modo empresária, vesti meu biquíni favorito, coloquei a vovó Dona Maria e Lucas no carro e fui pra aquele canto do paraíso que a gente frequenta desde que eu me entendo por gente.
É uma praia mais afastada, nada de badalação. Só gente simples, clima leve e aquele restaurante de madeira de frente pro mar, com cheiro de peixe frito e lembrança boa em cada canto.
A manhã passou rápido demais. Brinquei com Lucas na areia, corri com ele até a água, deixei que ele me enterrasse inteira como se fosse a maior diversão do mundo. E era. A vovó ria tanto que até esqueceu da dor no joelho.
Era como se o tempo tivesse parado. Eu, ali, sem maquiagem, com areia grudada na pele, ouvindo meu sobrinho dizer que eu era a melhor pessoa do mundo. E, olha... naquele momento, eu até acreditei.
Quando bateu meio-dia, o sol começou a castigar mais forte. Levamos nossas coisas de volta pro carro e fomos direto pro restaurante. O mesmo de sempre. O meu lugar no mundo.
Lá dentro, o movimento tava surreal. Cheio. Lotado. Filas se formando. Os garçons indo de um lado pro outro, bandejas voando, música ambiente misturada com gargalhadas. E mesmo assim, quando eu entrei com minha avó e o Lucas, abriram espaço.
Todo mundo ali me conhecia. Eu fazia doações frequentes pra projetos locais, ajudava com ONGs, e sempre apoiava os pescadores da região com programas de saúde e bem-estar. A Lara empresária era conhecida, mas a Lara ser humano era amada ali. E isso me orgulhava mais do que qualquer prêmio.
Sentamos numa mesa grande, de seis lugares, debaixo do sombreiro de palha que eu amava.
Pedi o de sempre: moqueca, arroz, pirão e suco de caju. Lucas quis hambúrguer. Dona Maria, peixe na brasa.
Tava tudo indo perfeito… até que um garçom se aproximou, um pouco sem graça.
— Dona Lara… me desculpa incomodar. É que… tem um casal lá fora. Recém-casados, mexicanos. Tão em lua de mel. Não tem mais nenhuma mesa livre. Será que a senhora se incomodaria se eles dividissem essa mesa com vocês?
Olhei pra minha avó. Ela deu de ombros com aquele sorriso sereno.
— Claro que não — eu disse, abrindo espaço.
Minutos depois, eles chegaram.
Ele veio primeiro. Alto, moreno, cabelo escuro bem penteado, barba por fazer, camisa leve de linho branco, olhar curioso e um sorriso tão... educado que dava até gosto de ver.
Atrás dele, vinha ela. A noiva. Morena, salto na areia (socorro), maquiagem intacta mesmo no calor dos infernos, e um olhar... frio.
Totalmente diferente da vibe dele.
— Hola, buenas tardes — ele disse, puxando a cadeira. — Muchas gracias por permitirnos compartir la mesa.
Sorri de volta. Meu espanhol era afiado.
— No hay problema. Bienvenidos. Espero que disfruten la comida, es la mejor de la región.
Ele sorriu mais largo.
— Qué amable. Soy Gael. Y ella es... mi esposa, Renata.
Renata mal olhou pra mim. Soltou um "hola" quase mudo e já puxou o cardápio como se fosse a rainha da Espanha com raiva do garçom.
— Ela tá amando o calor — ele brincou em voz baixa, com um sorriso meio torto.
Ri. Porque rir é minha melhor arma.
Lucas, do nada, puxou conversa com ele.
— Você fala espanhol? — perguntou, todo curioso.
— Falo, sim. Eu sou do México. E você?
— Eu sou do Brasil. E minha tia é famosa!
Eu quase cuspi o suco de caju.
— Lucas! — repreendi, sem saber onde enfiar a cara.
— Mas é verdade! — ele retrucou — Todo mundo aqui conhece ela. Ela tem academia e cuida de um monte de gente. E ela também é boazinha.
Gael riu, olhando pra mim com aquele olhar que parecia enxergar além da superfície.
— Parece que estou en buena compañía.
— Está mesmo — minha avó comentou, sorrindo.
O almoço seguiu com conversas leves entre nós quatro — sim, quatro, porque a Renata parecia não querer fazer parte de nada.
Ela criticou a comida, o calor, a cadeira, o garçom e até o cheiro do mar. Em espanhol, em voz alta, achando que ninguém entendia. Mas eu entendi.
Eu entendia cada palavra.
Mas preferi sorrir. Sempre prefiro sorrir.
Já Gael... não parecia desconfortável. Pelo contrário. Era gentil com o garçom, agradecia cada coisa, conversava com Lucas com atenção, e me lançava olhares que eu fingia não perceber. Não porque eram invasivos. Mas porque eram... intensos. Interessantes. Humanos.
Como se ele tivesse fome de vida.
Não da comida.
Da simplicidade. Da leveza. Da paz que ele talvez não tivesse.
Depois do almoço, eles agradeceram e foram embora.
Ele se despediu apertando minha mão com firmeza.
Ela saiu na frente, bufando, como se o mundo tivesse que se curvar aos desejos dela.
Quando ele me olhou uma última vez, juro que vi algo nos olhos dele.
Não era interesse.
Era reconhecimento. Como se dissesse "eu vejo você".
Mas eu não dei importância.
Era só um casal qualquer.
De passagem. De lua de mel.
Só que o universo...
Ah, o universo nunca joga peças aleatórias no meu tabuleiro.
O almoço acabou, mas a tarde estava só começando.
A gente voltou pra areia com o sol ainda brilhando, e mesmo depois de tanto tempo morando em Maceió, eu ainda me emocionava com aquele mar verde-esmeralda, que parecia mais uma pintura. Lucas quis fazer castelo de areia, depois quis tomar mais banho, depois quis caçar conchas. E, claro, a vovó Dona Maria quis sentar e admirar tudo com aquele sorriso de quem vê a vida passar devagar, no ritmo certo.
Eu me sentei na toalha com ela, debaixo de um guarda-sol. Ficamos em silêncio por alguns minutos, só observando.
— Você tá nervosa com essa viagem, né? — ela perguntou, sem nem me olhar.
— Um pouco — admiti — É tudo muito de repente. Mas, ao mesmo tempo… parece certo, sabe?
— Quando o coração não treme, não é decisão grande. Vai com Deus, minha filha. E lembra do que eu sempre te disse: gentileza não é fraqueza. É poder.
— Eu sou você, vó. Com glitter e Instagram.
Ela gargalhou.
Lucas veio correndo com uma estrela-do-mar na mão, gritando que era mágica.
E naquele momento, era mesmo.
Tudo era.
A gente passou a tarde inteira ali. Rindo, brincando, molhando o pé, comendo picolé, e esquecendo que o mundo lá fora tinha contratos, agendas, números e formalidades.
Quando o céu começou a se pintar de laranja, a gente recolheu tudo.
Fiz questão de deixar Lucas na porta do prédio, com um beijo estalado na bochecha e uma promessa de trazer um presente do México. Ele pediu um sombreiro. Enorme. Listrado. Com sininho.
— Pode deixar, meu amor — falei, rindo — Você vai ficar insuportavelmente estiloso.
Em casa, tomei um banho demorado, lavei o cabelo, hidratei o rosto, e fiquei olhando a mala aberta na cama. Julia já tinha mandado mensagem:
[Julia]: “Não esquece o vestido branco de botão. Vai que rola um jantar chique com tequila.”
[Eu]: “Amiga, vou pra uma reunião, não pra lua de mel.”
[Julia]: “Nunca se sabe. Confia no roteiro.”
Ela tem dessas.
De prever as reviravoltas da minha vida melhor do que eu mesma.
**
O domingo chegou com céu limpo, cheiro de café e coração apertado.
Vôo marcado pras 11h da manhã. Aeroporto tranquilo. Júlia me encontrou lá, já acompanhada de dois homens enormes vestidos de preto.
— Lara, esses são os nossos protetores de traseiro internacional — ela disse, rindo — Maicon e Heitor.
Eles eram exatamente o que se esperava de seguranças de executiva rica: discretos, sérios e bem treinados. Maicon era mais alto, de olhar atento. Heitor, mais calado, mas firme. Já estavam com todos os protocolos acertados, passaportes revisados, e os detalhes do trajeto até o hotel no México.
— Vocês são tipo guarda-costas de filme? — perguntei, rindo, só pra quebrar o gelo.
— Só falta a explosão no fundo e a música de ação — Maicon respondeu, com um meio sorriso.
— Tomara que não chegue a tanto — Heitor murmurou.
Embarcamos. Primeira classe, assentos reclináveis, serviço VIP. Mas mesmo assim, meu estômago estava inquieto. Não de medo, nem de insegurança.
Era só aquela sensação que dá quando você sente que sua vida vai mudar... mas ainda não sabe como.
Durante o voo, Julia dormiu ouvindo música. Eu tentei me distrair com um filme, mas minha mente vagava. Pensei em Lucas. Na vovó. Na praia. No olhar daquele cara do restaurante. Gael. A esposa dele era tão áspera quanto ele era gentil. Um contraste estranho.
Mas eu sacudi aquilo da mente. Eu tinha coisas mais importantes pra pensar.
Tipo o futuro da minha rede de academias.
**
Aterrissamos no início da tarde. O calor era diferente. Seco. Com cheiro de especiarias no ar. O céu do México parecia mais denso. A cidade onde ficamos era moderna, vibrante, cheia de vida e movimento.
Fomos recebidas por um motorista da empresa VitalShape, com uma placa com meu nome. Nos levou direto para o hotel cinco estrelas, com vista pra cidade inteira. O quarto era deslumbrante. Camas king-size, varanda, frigobar personalizado. Tinha até flores me esperando.
Julia já entrou de câmera na mão, filmando tudo pra mostrar depois pro Lucas.
— Isso sim é padrão Lara Mendes de viagem — ela disse, pulando na cama.
— É, mas só amanhã começa o que realmente importa — respondi, tirando os sapatos.
— Sim, mas até lá… a gente pode aproveitar, né? A empresa deixou a tarde livre. E olha isso aqui — ela me mostrou um folder deixado no quarto — “Spa, restaurante, rooftop com vista pro pôr do sol, e tequila de boas-vindas”.
— Cês tão querendo me corromper logo na chegada — falei, rindo.
— A gente só quer te ver sorrindo — respondeu ela.
**
E ali, com vista pra um lugar novo, cheia de possibilidades à frente, eu respirei fundo.
Era só domingo.
Mas parecia que minha história tava começando de novo.
Capítulo 3 – Parte 1 – Estrategicamente Cego
Me chamo Gael Ramírez. Tenho trinta e dois anos.
Muita gente me vê como um cara de sucesso. CEO de uma multinacional mexicana, dono de uma rede de suplementos e equipamentos que está se expandindo para o Brasil e Europa. Mas, honestamente? Nem eu tenho certeza se isso tudo foi mesmo escolha minha.
Nasci na Cidade do México, filho do homem mais exigente que conheço: Francesco Ramírez.
Ele é o presidente da VitalShape e, mesmo agora, com seus sessenta anos, comanda tudo como se tivesse trinta.
Enquanto eu tô aqui, em lua de mel, é ele quem tá segurando as rédeas da empresa.
Meu pai é um daqueles homens que acreditam em sacrifício, meritocracia e trabalho duro. Me treinou desde pequeno pra ser o sucessor.
Minha mãe, Leonor, é o oposto dele: delicada, calma, sensível. Uma mulher de fé, que acalma os nossos dias com chá de camomila e orações antes de dormir.
Meus irmãos, Alejandro e Camila, seguem a mesma linha: fortes, determinados, mas apaixonados pelo que fazem.
Cresci cercado de estrutura e responsabilidade. A empresa era nossa vida.
Quando completei 25, meu pai me colocou como diretor de expansão internacional da VitalShape.
Foi aí que conheci Rui. Ele entrou como meu braço direito e se tornou meu melhor amigo. Pelo menos… era o que eu achava.
Foi também nessa época que conheci Renata.
Ela era... magnética. Inteligente, segura, bem relacionada. Em dois meses, já era presença nos eventos da empresa. Em seis, namorada oficial.
Um ano depois, noivamos.
Adiei o casamento o quanto pude — o trabalho sempre servia de desculpa — mas ela pressionou.
“Ou agora ou nunca.”
E eu fui.
Casamos há três semanas. A cerimônia foi exatamente como ela queria: grandiosa, luxuosa, impecável.
Eu apenas fui levado.
Na nossa noite de núpcias, ela dormiu antes de mim. Postou fotos no Instagram, comentou curtidas… depois apagou.
---
Enquanto isso, no quarto ao lado — literalmente, o quarto 705 do mesmo hotel em Maceió —
Renata se olhava no espelho com um sorrisinho discreto.
— Ele assinou tudo — disse, prendendo o cabelo.
— Você é uma gênia — respondeu Rui, sentado no sofá, com uma taça na mão.
— A empresa, as cotas, o fundo de investimentos da filial europeia... ele assinou como “presente de confiança matrimonial”.
Ela deu uma risada curta. — E agora quem tá com a confiança sou eu.
— E quando ele descobrir?
— Ele não vai. Não enquanto eu continuar sorrindo e dizendo que o amo.
E mesmo que desconfie, já será tarde demais.
— Acha mesmo que vai conseguir tomar tudo dele?
— Não preciso de tudo. Só o suficiente pra que ele não consiga se levantar depois.
Rui levantou o copo.
— À mulher mais perigosa que já conheci.
— À nossa vitória — ela respondeu, brindando com o olhar.
---
Voltemos a mim.
Acordei hoje com uma sensação estranha. Renata nem me olhou.
Reclamou do quarto, do café da manhã e da água de coco.
Falou que a areia da praia era “agressiva demais”.
Mas insistiu pra irmos. Disse que tinha escolhido uma praia famosa por sua tranquilidade e restaurantes pé na areia.
Chegamos por volta das dez da manhã. O mar tava impecável. Céu azul, vento leve, um calor gostoso.
Mas Renata não se deu ao trabalho de sorrir. Pediu um guarda-sol, uma cadeira de praia acolchoada e protetor solar fator 90.
Ficamos ali por menos de vinte minutos. Depois, ela quis almoçar.
O restaurante era lindo, todo de madeira rústica, vista pro mar, garçons simpáticos.
Mas tava lotado. Como não fizemos reserva, só havia uma mesa grande sendo ocupada por três pessoas: uma senhora, um menino e uma mulher.
O garçom perguntou se eles se importariam de dividir a mesa com um casal em lua de mel.
A senhora olhou pra moça e depois assentiu com a cabeça.
E foi assim que conheci Lara.
Ela estava descalça, com os pés ainda sujos de areia, cabelo preso num coque desajeitado, e o rosto queimado de sol — com um sorriso tão genuíno que me desarmou.
Falava com o menino com uma ternura que eu não via há muito tempo.
O menino era o sobrinho dela — Lucas. E a senhora era a avó — Dona Maria.
Uma família. Uma conexão. Algo… bonito de se ver.
Sentamos.
Renata ignorou todos à mesa. Pediu um vinho branco, exigiu o prato mais caro e não olhou pra mais ninguém.
Já Lara... me olhou nos olhos, estendeu a mão e falou em espanhol perfeito:
— Bienvenidos. Siéntanse cómodos.
("Bem-vindos. Sintam-se à vontade.")
— Gracias. No queremos interrumpir. — respondi, surpreso com a fluidez dela.
("Obrigado. Não queremos atrapalhar.")
— No están interrumpiendo nada. Solo estábamos contando historias tontas sobre el mar. — disse ela, rindo, enquanto acariciava os cabelos do menino.
("Não estão atrapalhando nada. Estávamos só contando histórias bobas sobre o mar.")
— ¿Eres de aquí? — perguntei, curioso.
("Você é daqui?")
— Sí, nací en Maceió. Pero aprendí español viajando... y escuchando muchas canciones mexicanas.
("Sim, nasci em Maceió. Mas aprendi espanhol viajando... e ouvindo muitas músicas mexicanas.")
Ela piscou, divertida.
— ¿Y tú? ¿Luna de miel?
("E você? Lua de mel?")
— Sí — falei, sem muita empolgação — recién casados.
("Sim, recém-casados.")
— Pues... felicidades. Espero que esta playa traiga más bendiciones que arena.
("Pois... felicidades. Espero que essa praia traga mais bênçãos que areia.")
— Eso espero.
("Também espero.")
Durante a refeição, eu me peguei observando cada gesto dela. Como falava com o menino. Como ria das piadas bobas dele.
Era como assistir a uma vida que eu não sabia que sentia falta.
Quando nos despedimos, ela apertou minha mão com firmeza. E deixou um peso em mim.
Voltamos pro hotel. Renata reclamou do ar-condicionado. Do motorista. Do tempo.
No dia seguinte, embarcamos às 7h da manhã para o México. Ela dormiu o voo inteiro.
Eu não. Eu só pensava nela.
Na mulher de alma leve que, sem saber, me mostrou o quanto eu estava afundado naquilo que chamam de “vida perfeita”.
E sem saber, também... me puxou de volta à superfície
---
A Cidade do México nos recebeu com aquele caos urbano típico de uma capital que nunca dorme. Carros buzinando, gente correndo com café na mão, vida pulsando em cada esquina.
Mas nada disso me despertava por dentro.
Renata falava sem parar ao meu lado no carro.
Reclamava do voo, do hotel de Maceió, da praia, do garçom que “demorou mil anos” pra servir o vinho.
E eu?
Eu só pensava no olhar calmo daquela mulher na praia.
Lara.
Não era sobre beleza. Era sobre leveza.
Ela era... diferente. Do tipo que não precisa se esforçar pra te fazer respirar mais devagar.
Chegamos em casa no final da tarde.
A mansão dos Ramírez, em Santa Fe, zona nobre da cidade, parecia ainda mais fria naquele domingo cinza.
Renata subiu direto pro nosso quarto. Pediu pra não ser incomodada — disse que precisava “recuperar o emocional” da viagem.
Fui pro meu escritório. Liguei o computador. Verifiquei e-mails. Respondi três pendências.
E foi então que ouvi a voz dela.
Não a voz doce que ela usava comigo.
Era outro tom. Frio. Objetivo. E... revelador.
— “Você precisa dar um jeito de sumir com aquele contrato antes que ele volte pro escritório.”
Minha coluna travou. A voz vinha do andar de cima. O quarto de hóspedes.
Subi em silêncio. Encostei na porta, sem fazer barulho.
— “Gael ainda tá encantado com aquela ideia de amor ideal. Nem desconfia.”
— “Não sei por quanto tempo você consegue manter essa farsa, Renata.”
— “Até tudo estar no meu nome, Rui. E depois... que se exploda.”
Meu coração parou.
Não foi exagero. Parou mesmo.
Por um segundo, eu quis abrir a porta e gritar.
Quis quebrar tudo. Expulsar os dois. Mandar o mundo à merda.
Mas me contive.
Porque eu aprendi desde pequeno que, quando você é ferido...
Você não grita.
Você observa. Você espera.
Você revida quando a faca estiver bem afiada.
Desci as escadas com passos firmes.
Abri uma garrafa de uísque. Bebi em silêncio.
E pensei em cada detalhe daquela conversa.
Ela me usou. Me enganou. Me colocou na palma da mão dela por cinco anos...
E ainda assim teve a ousadia de continuar aqui, na minha casa, deitada na minha cama.
Foi nesse momento que o telefone tocou.
Era meu pai.
— Gael, a reunião com a brasileira tá confirmada pra amanhã, às 10h. Você vai poder comparecer?
Engoli o nó na garganta.
— Não vou, pai. Tô... indisposto.
— Tudo bem. Eu cuido disso. Mas fique atento. Essa Lara Mendes parece ser uma daquelas pessoas difíceis de impressionar.
— Eu confio em você.
— E você sabe que eu confio em você.
Vamos conversar melhor sobre isso amanhã à noite.
Desliguei e olhei pela janela.
Lara Mendes.
O nome me soava como música.
Me perguntei o que ela pensaria se soubesse que, no andar de cima, uma mulher tramava pra me destruir.
Se soubesse que por trás do terno impecável e do título de CEO... tinha um homem prestes a explodir por dentro.
Mas eu não sou qualquer homem.
Sou um Ramírez.
E agora... ela mexeu com o homem errado.
Não ia confrontar ninguém ainda.
Eu ia deixar eles pensarem que venceram.
Que estavam no controle.
E então, no momento certo...
Eu puxaria o tapete.
E eles iam cair tão fundo, que nem o inferno ia aceitar.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!