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Sob o Julgo do Tirano

O Sopro do Inverno

Capítulo 1:

A chuva fina de Seattle batia contra os altos vitrais da Biblioteca Municipal Heritage, criando uma sinfonia melancólica que combinava perfeitamente com o estado de espírito de Elena. Ela ajustou os óculos na ponte do nariz, afundando-se um pouco mais na poltrona de couro envelhecido do seu cantinho preferido, escondida atrás de uma pilha de livros sobre restauração arquitetônica. Aquela era a sua trincheira, o seu refúgio. Após dois anos fugindo do espectro de Nathan – das críticas cortantes, do controle sufocante, dos "acidentes" que deixavam hematomas fáceis de esconder –, o anonimato úmido de Seattle e o silêncio majestoso da biblioteca eram o mais próximo da paz que ela conhecera.

Trabalhar ali, organizando histórias alheias, catalogando sonhos em papel, era terapêutico. Ninguém a olhava duas vezes. Era apenas "Elena, a nova bibliotecária". E ela preferia assim. Invisível. Segura.

O som pesado das portas duplas de carvalho se abrindo ecoou no salão principal, quase vazio naquela tarde chuvosa de terça-feira. Um jato de ar frio e úmido invadiu o ambiente aquecido, fazendo Elena estremecer involuntariamente. Ela não ergueu os olhos imediatamente, focada na delicada tarefa de limpar a lombada de um volume raro do século XIX. Mas uma sensação estranha, como um peso súbito no peito, a forçou a olhar.

Ele entrou como uma tempestade silenciosa. Alto, imponente, envolto em um sobretudo preto de corte impecável que escorria água. Não era a roupa, porém, que prendia a atenção. Era a presença. O ar ao seu redor parecia ficar mais denso, mais frio. Cabelos escuros, quase negros, penteados com rigor, moldavam um rosto talhado a machado – mandíbula forte, lábios finos e uma expressão que não era exatamente cruel, mas vazia. Como mármore polido. Seus olhos, de um cinza glacial, varreram o salão com a eficiência de um scanner, desdenhando as estantes, os móveis, o ambiente. Até que pousaram nela.

Elena sentiu o fôlego faltar. Não era um olhar de reconhecimento, nem de curiosidade banal. Era... posse. Como se ele tivesse aberto a porta de um armário e encontrasse um objeto há muito tempo perdido, algo que sempre lhe pertencera. Um olhar que não perguntava, declarava. Ele a atravessou com a intensidade de um raio X, desnudando-a ali, em seu cantinho seguro, atrás de seus livros-armadura. Seus dedos congelaram sobre o papel delicado do livro.

Ele começou a andar em sua direção. Os passos eram firmes, silenciosos sobre o piso de mármore, mas cada um ecoou como um trovão nos ouvidos de Elena. O coração batia com tanta força que ela temeu que ele pudesse ouvir. Instintos primitivos gritavam: Fuja. Esconda-se. Mas as pernas pareciam de chumbo. Ela estava enraizada no medo, naquela sensação horrenda e familiar de estar encurralada.

Parou a poucos metros de sua poltrona. O cheiro dele chegou até ela: uma mistura perturbadora de algo caro e amadeirado com o frio metálico da chuva e... algo mais. Um traço indescritível de perigo. Ele não disse uma palavra. Apenas olhou. Olhou para os livros espalhados ao seu redor, para suas mãos trêmulas, para o batom discretíssimo que ela usava, até para a pequena cicatriz perto da sobrancelha esquerda – marca de um "tropeço" promovido por Nathan.

Elena forçou-se a falar, a voz saindo como um sussurro áspero: "P-Posso ajudar o senhor?"

Ele ignorou a pergunta. Seu olhar cinza finalmente travou nos dela. Era como ser mergulhada em águas árticas. Profundas, impenetráveis, carregadas de uma intensidade que fazia sua pele formigar de pavor... e de algo mais traiçoeiro, uma centelha de calor proibido que a enfureceu consigo mesma.

"Não," disse ele. A voz era mais baixa do que ela esperava, grave, aveludada, mas cortante como navalha. Uma contradição que a perturbou ainda mais. "Apenas observando."

A palavra soou como uma ameaça. Observando. Como um predador observa a presa. Como um colecionador avalia uma peça rara. Elena engoliu seco, tentando desviar o olhar, mas era impossível. Aquele olhar hipnotizante a mantinha presa.

Ele estendeu a mão, não para ela, mas para o livro que ela estava limpando. Luvas de couro preto, finíssimas. Seus dedos, longos e fortes, passaram pela lombada que ela acabara de limpar, quase tocando os dela. Elena recuou a mão como se tivesse sido queimada.

"Um exemplar raro," ele comentou, o tom absolutamente plano, sem qualquer indicação de interesse genuíno. "Cuidado frágil exige mãos firmes." O olhar subiu novamente para o rosto dela, pesando, medindo sua reação.

Elena sentiu-se nua. Exposta. Ele falava do livro, mas ela sabia, com uma certeza visceral, que não era só do livro. Era dela. Um aviso? Uma avaliação? O medo se transformou em uma raiva fria, familiar. Ela não era um objeto. Não mais.

"Sei cuidar do que é meu, senhor," ela respondeu, forçando uma firmeza que não sentia, erguendo o queixo um milímetro.

Um sopro quase imperceptível – poderia ser um suspiro, ou o início de um sorriso cruel – passou por seus lábios. Os olhos cinza brilharam com algo que poderia ser... interesse? Desafio?

"Thorne," ele disse, abruptamente. "Silas Thorne."

O nome ecoou na mente de Elena como um badalar de sino fúnebre. Thorne. O Silas Thorne. O magnata recluso, o tubarão dos negócios implacável, o homem sobre quem os jornais falavam em tons de fascínio e medo. O homem cuja fortuna era rivalizada apenas pelas histórias sombrias que o cercavam. O sangue pareceu congelar em suas veias. Por que ele estava ali? Por que a olhava daquela maneira?

Antes que ela pudesse articular qualquer resposta, reagir, ele deu um passo para trás. O olhar de posse não diminuiu; se intensificou, como se a tivesse marcado ali mesmo.

"Até breve, Elena," ele disse, seu nome saindo de seus lábios como uma carícia perversa, íntima demais, assustadora demais.

Como ele sabia seu nome? Ela nunca o tinha visto antes! O pânico a estrangulou. Ele virou-se e começou a andar em direção à saída, seu sobretudo preto esvoaçando como asas de um corvo. A porta se fechou atrás dele com um baque surdo, deixando para trás o cheiro de chuva, couro caro e uma ameaça palpável no ar.

Elena ficou paralisada, tremendo, as mãos geladas agarradas ao livro raro. A paz que encontrara desmoronara em segundos. O passado, na forma daquele olhar glacial e possessivo, a alcançara. E ele sabia seu nome.

Foi então que ela viu. Em cima da mesa, onde seus dedos estiveram segundos antes, onde os dedos dele quase tocaram os seus, havia um pequeno cartão de visita. Branco, pesado, texturizado. Nenhum logotipo, nenhum título. Apenas um nome gravado em relevo, em letras sóbrias e imponentes:

SILAS THORNE

E, escrito à mão, com uma caligrafia forte e decidida, em tinta preta, abaixo do nome, uma única frase que fez seu estômago embrulhar e seu coração disparar num ritmo de puro terror:

"Você já é minha."

Sombra no Café

Capítulo 2:

O cartão pesava como uma pedra no bolso do casaco de Elena. Mesmo depois de sair da biblioteca, sob uma chuva que agora parecia agulhas frias contra seu rosto, ela conseguia sentir o relevo das letras – SILAS THORNE – e a marcação visceral daquela frase: "Você já é minha." Cada passo em direção ao seu pequeno apartamento no bairro modesto de Belltown era uma batalha contra o pânico que tentava subir pela sua garganta.

Como ele sabia meu nome? A pergunta martelava em seu crânio, sincronizada com o bater do seu coração contra as costelas. Ela não usava crachá visível. Raramente interagia com o público mais abastado; seu trabalho era nos bastidores, com os livros antigos. Thorne. O nome era uma entidade por si só, sinônimo de poder impenetrável e rumores sussurrados sobre métodos obscuros e inimigos que desapareciam. E ele a escolhera. Observando.

O apartamento, minúsculo e acanhado, com móveis de segunda mão e as paredes pintadas de um branco desbotado, costumava ser seu santuário. Naquela noite, porém, as sombras pareciam mais longas, os ruídos da rua – uma buzina, uma gargalhada distante – soavam como ameaças. Ela trancou a porta com duas voltas na chave e encostou as costas na madeira fria, fechando os olhos.

"Você já é minha." A voz grave, aveludada e cortante de Silas ecoou em sua mente, mesclando-se com outra voz, mais áspera, cheia de desdém e raiva contida: "Você não é nada sem mim, Elena. Ninguém mais vai te querer, sua inútil." Nathan. A lembrança foi um soco no estômago, trazendo consigo o cheiro de uísque barato e o gosto metálico do sangue na boca.

Flashback (3 anos atrás - Nova York):

A porta do apartamento estoura contra a parede. Nathan entra, cambaleando, os olhos injetados de fúria e álcool. Elena tenta se esconder atrás do sofá, mas é inútil. Ele a vê.

"Onde você estava?" ele rosna, avançando. O medo paralisa Elena; ela conhece aquele tom.

"T-Trabalhando, Nathan. Eu juro..."

Um tapa brutal a faz girar, a visão escurecendo por um instante. Ela cai de joelhos, a cabeça batendo na quina da mesa de centro. Dor aguda explode na têmpora.

"Mentira!" Ele a puxa pelos cabelos, forçando-a a olhar para ele. Seu hálito a enoja. "Você estava com ele, não estava? Aquele idiota do seu trabalho!"

"Não! Eu estava sozinha, catalogando..."

Outro golpe. Desta vez no estômago. Ela curva-se, engasgando, sem ar.

Ele se ajoelha ao seu lado, os dedos apertando seu queixo com força brutal, forçando-a a encarar seu ódio. "Você é minha, Elena. Minha propriedade. Eu decido onde você vai, com quem fala, o que faz. Entendeu? Minha." O olhar dele é de possessão doentia, mesclada a um desprezo profundo. "E se você tentar fugir de novo..." Ele não precisa terminar. A ameaça está no ar, mais pesada que qualquer palavra.

Fim do Flashback

Elena abriu os olhos no presente, ofegante, as mãos trêmulas tocando a pequena cicatriz perto da sobrancelha esquerda – marca deixada pela quina da mesa naquela noite. O mesmo medo gelado, a mesma sensação de impotência, a mesma voz declarando posse. Minha. Silas Thorne usara a mesma palavra, com a mesma certeza absoluta, mas envolta em um poder diferente, mais frio, mais calculado, infinitamente mais perigoso. Nathan era um furacão destrutivo; Silas parecia um inverno nuclear, implacável e silencioso.

Na manhã seguinte, o pânico havia se transformado em uma ansiedade aguda, um fio de arame farpado enroscado em suas entranhas. Cada som alto na biblioteca a fazia saltar. Cada homem alto de terno preto que passava pela rua a fazia congelar. O cartão de Silas estava escondido no fundo de uma gaveta, sob pilhas de roupas, mas ela sentia sua presença como uma pulsação maligna.

Foi durante a pausa para o café, no pequeno refeitório dos funcionários, que a primeira interferência sutil aconteceu. Elena sempre tomava o mesmo café: preto, forte, sem açúcar. Um hábito reconfortante, uma pequena âncora de normalidade. Ela se aproximou da mesa onde deixara sua caneca favorita – uma peça simples, branca, com uma pequena rachadura no cabo – e parou, confusa.

A caneca estava lá, mas fumegando, cheia. E não de café preto. Era um latte, com uma espuma perfeita, e um delicado coração desenhado no centro com canela. Ao lado da caneca, havia uma pequena embalagem de seu chocolate amargo favorito, a marca importada cara que ela raramente se permitia comprar.

Elena olhou em volta, o coração batendo descompassado. O refeitório estava quase vazio. Só Brenda, a bibliotecária sênior, mexia em seu telefone no canto oposto.

"Brenda?" Elena chamou, a voz um pouco trêmula. "Você... você colocou isso aqui?"

Brenda ergueu os olhos, distraída. "O quê, querida? Ah, o latte? Não, não fui eu. Deve ter sido o Carl, aquele estagiário novo. Ele anda muito solícito." Ela sorriu, sem suspeitar. "Aproveita, está com uma cara ótima."

Carl. Elena tentou se convencer. Carl era um jovem tímido, estudante de literatura. Talvez... talvez fosse mesmo ele. Um gesto inocente. Mas o chocolate? Ela nunca comentara sobre sua preferência por aquele chocolate específico com ninguém. E o coração na espuma... parecia uma assinatura. Uma marca.

Ela não tocou no latte. Nem no chocolate. Empurrou a caneca para o centro da mesa como se estivesse quente e foi pegar água. O café preto, naquele dia, parecia cinzas em sua boca.

A interferência seguinte veio no fim do expediente. Enquanto arrumava sua bolsa, o telefone fixo da biblioteca tocou. Elena, sendo uma das últimas, atendeu por instinto.

"Biblioteca Heritage, boa tarde."

Silêncio por um segundo. Um silêncio denso, carregado, que fez os pelos de seus braços se arrepiarem. Então, a voz. Baixa, grave, inconfundível, chegando pelo fio como um toque de gelo na nuca.

"Elena."

Foi só seu nome. Dito da mesma maneira íntima e ameaçadora da biblioteca. Como se ele estivesse ali, sussurrando em seu ouvido. Ela congelou, os dedos apertando o receptor com força branca.

"O... o que você quer?" ela sussurrou, a voz falhando.

"Você não bebeu o café." A afirmação foi simples, plana, mas carregada de uma reprovação perigosa. Como um dono desapontado com um animal de estimação desobediente. Ele sabia. Ele estava vigiando.

Elena olhou freneticamente em volta. As estantes vazias, as longas sombras do fim da tarde. Estaria alguém observando? Uma câmera oculta? O pânico estrangulou suas palavras.

"Deixe-me em paz," ela forçou, com mais coragem do que sentia. "Não me perturbe."

Um leve ruído do outro lado da linha – poderia ser um suspiro, ou um riso abafado. "Perturbar?" A voz soou quase contemplativa. "Estou apenas... cuidando do que é meu. O chocolate é para você. Coma. Você precisa recuperar as forças."

A frieza da afirmação, a naturalidade com que ele reafirmava sua posse, a deixou nauseada. "Eu não sou sua!" ela retrucou, a voz subindo de tom, ecoando no salão vazio.

O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante do que qualquer resposta. Ela podia quase sentir o peso do seu olhar cinza através da linha, calculando, analisando sua rebeldia.

"Tudo a seu tempo, Elena," ele disse finalmente, o tom mais suave, quase uma carícia venenosa. "Tudo a seu tempo. Tenha uma boa noite. E trance bem sua porta."

O clique da linha sendo desligada soou como uma sentença. Elena ficou parada, o receptor mudo na mão, o corpo tremendo incontrolavelmente. Ele sabia onde ela trabalhava. Sabia seu nome. Sabia seus gostos. Sabia que ela não bebera o café. E agora... sabia onde ela morava? "Tranque bem sua porta."

A caminho de casa, a paranoia atingiu níveis insuportáveis. Cada carro que passava mais devagar era uma ameaça. Cada vulto em uma porta parecia um observador oculto. Ela mudou de rota três vezes, dobrando esquinas aleatoriamente, seu coração batendo como um tambor de guerra. Quando finalmente alcançou seu prédio, subiu as escadas de serviço, evitando o elevador, e trancou a porta com todas as trancas que tinha, encostando uma cadeira sob o trinco.

Dentro do apartamento, na escuridão, encolhida no sofá, Elena sentiu as lágrimas finalmente chegarem. Não eram apenas lágrimas de medo, mas de raiva. Raiva por se sentir tão vulnerável novamente. Raiva por Silas Thorne ter invadido sua frágil paz com tanta facilidade. Raiva por aquele medo antigo, aquele instinto de presa, ter voltado com força total.

Ela olhou para a gaveta onde o cartão estava escondido. "Você já é minha." As palavras queimavam em sua mente. Nathan a quebrara, mas ela sobrevivera, escapara. Silas Thorne, porém... ele parecia uma força da natureza. Implacável. Onipresente.

Como se combatia uma sombra? Como se fugia de um homem que parecia saber tudo, controlar tudo?

A resposta veio na forma de um desespero frio: talvez não fosse possível fugir. Talvez a única saída fosse enfrentar. Mas o preço do enfrentamento poderia ser a sua própria destruição.

O telefone celular, esquecido na bolsa, vibrou sobre a mesa de centro. Um único bip, sinalizando uma mensagem. Elena olhou para ele como se fosse uma cobra pronta a atacar. Lentamente, com mãos trêmulas, ela o pegou.

A tela iluminou-se. Não havia número registrado. Apenas uma mensagem curta, anônima, mas cujo remetente ela não tinha dúvidas:

"Boa noite, Elena. Durma bem. Amanhã é um novo dia. Meu novo dia."

O telefone escapou de seus dedos gelados e caiu no chão com um baque surdo. Na escuridão do seu apartamento trancado, Elena percebeu a verdade mais aterrorizante: sua gaiola, dourada ou não, já estava sendo construída. Tijolo por tijolo, gesto por gesto, palavra por palavra. E Silas Thorne tinha a chave.

A Armadilha Dourada

Capítulo 3:

A mensagem anônima – "Meu novo dia." – ecoou na mente de Elena como um sino de morte durante toda a noite. Ela não dormiu. Cada som do prédio velho – um cano rangendo, passos no corredor distante – a fazia saltar da cama, o coração disparado, as mãos suadas agarradas ao celular como uma arma inútil. O apartamento, antes seu refúgio, transformara-se em uma cela de vidro, onde ela se sentia exposta, vigiada. Ele sabia onde ela morava. A certeza era um peso de chumbo no peito.

Na biblioteca, na manhã seguinte, a paranoia atingia níveis novos. Ela evitava janelas, saltava quando alguém se aproximava de repente, e o simples toque do telefone fixo a fazia estremecer. O latte e o chocolate haviam desaparecido da mesa do refeitório, mas o fantasma deles permanecia. Brenda comentou que Carl negara ter deixado o café. “Estranho,” murmurara a bibliotecária sênior, sem suspeitar do terror que semeava em Elena.

Foi ao voltar do almoço, caminhando rápido sob um céu cinzento que ameaçava nova chuva, que Elena sentiu de novo. Aquele frio na nuca, a sensação de ser observada com uma intensidade quase física. Ela parou bruscamente em frente a uma vitrine, fingindo admirar roupas que não via. No reflexo embaçado do vidro, entre os transeuntes apressados, uma figura destacou-se. Alto, terno preto impecável, postura imóvel como uma estátua, do outro lado da rua. Ele.

Silas Thorne. Não tentava se esconder. Estava ali, plantado na calçada, os olhos cinza fixos nela através do reflexo, como se a desafiasse a olhar diretamente. Um sorriso quase imperceptível curvou seus lábios finos quando seus olhares se cruzaram no vidro. Era um sorriso predatório, de satisfação por tê-la encontrado, por vê-la paralisada pelo medo.

Elena girou no salto, o impulso de correr quase incontrolável. Mas para onde? Ele estava ali, e algo na sua postura imóvel, na calma absoluta que emanava, dizia que fugir seria inútil. Humilhante. Ela respirou fundo, engolindo o gosto amargo do pânico. Não era Nathan. Nathan era explosivo, caótico. Silas era gelo e controle. Correr poderia ser exatamente o que ele queria – uma caça. Ela forçou os pés a andarem, mantendo um ritmo constante, sem olhar para trás. Cada célula do seu corpo gritava, alerta máxima. Ela sentia o peso do seu olhar nas costas, queimando como duas brasas.

Milagrosamente, chegou à biblioteca sem incidentes. Mas a sensação de vigilância não diminuiu. Pelo contrário. Às três da tarde, um motoboy entrou no salão principal, o capacete nas mãos, carregando um arranjo de flores tão exuberante que chamou a atenção até dos leitores mais distraídos. Orquídeas raras, de um roxo profundo quase negro, envoltas em seda negra e um laço prateado. Sem perguntar, ele caminhou direto para o balcão onde Elena catalogava novos livros, os dedos tremendo levemente.

“Elena Martins?” perguntou o motoboy, jovem e descontraído, ignorando a palidez súbita dela.

Elena engoliu seco, assentindo quase imperceptivelmente.

“Para você. Com instruções especiais.” Ele colocou o arranjo pesado e exótico em cima do balcão, ao lado dos livros. Havia um cartão pequeno, preso a um fino fio de seda prateada.

Antes que ela pudesse reagir, o motoboy se virou e saiu. Brenda e outro colega, James, se aproximaram, curiosos.

“Quem é o admirador secreto, Elena?” Brenda perguntou, os olhos brilhando com romantismo ingênuo, tocando uma pétala aveludada. “Orquídeas negras! Isso deve ter custado uma fortuna!”

Elena não ouviu. Seus dedos, frios e desajeitados, abriram o cartão. O mesmo papel pesado, texturizado. Nenhum nome. Apenas uma frase escrita com a mesma caligrafia forte e decisiva, em tinta prateada:

"A escuridão combina com você. Mas a luz que vejo em você... essa é só minha."

Náusea. Uma onda violenta de náusea subiu pela garganta de Elena. Não era uma declaração de amor. Era uma afirmação de posse, uma lembrança da "luz" que ele acreditava ter visto nela – e que agora reivindicava como propriedade exclusiva. Era perverso. Era assustador. As flores, lindas e mortais, pareciam emanar a mesma aura fria e perigosa de Silas.

“Elena? Você está bem? Parece que viu um fantasma!” James perguntou, preocupado, ao ver sua expressão.

“T-Tudo bem,” ela gaguejou, afastando-se do balcão como se as flores fossem venenosas. “Só... uma surpresa. Inesperada.” Ela pegou o arranjo com repulsa, como se segurasse uma cobra, e o levou para o pequeno escritório dos fundos, trancando a porta. Ali, longe dos olhares curiosos, jogou as flores no lixo, o cartão prateado rasgado em pedaços minúsculos. Mas o cheiro doce e pesado das orquídeas permaneceu, envenenando o ar, envenenando seus pensamentos.

O dia terminou em um turbilhão de ansiedade. Ao sair, o céu cinza havia descarregado uma chuva fina e insistente. Elena levantou a gola do casaco, apertou a bolsa contra o corpo e mergulhou na multidão úmida, decidida a perder qualquer possível perseguidor. Ela entrou em lojas aleatórias, pegou ônibus em direções opostas, desceu em pontos errados. Depois de quase uma hora de trajeto errático, sentindo-se exausta mas um pouco mais segura, desceu perto de seu prédio, em uma rua paralela menos movimentada.

Foi então que ela o viu. Não Silas. Nathan.

Ele estava encostado em um poste, quase em frente à entrada de serviço que ela usava, fumando um cigarro. O mesmo casaco de couro gasto, a mesma postura desleixada e agressiva. Os anos não tinham sido gentis; seu rosto estava mais marcado, mais cruel, os olhos pequenos e duros varrendo a rua com impaciência. Quando seu olhar pousou nela, parada a poucos metros de distância, congelada pelo horror absoluto, um sorriso lento e sinistro esticou seus lábios.

“Elena,” ele chamou, a voz rouca pelo cigarro e pelo álcool que ela conhecia tão bem. Jogou a bituca no chão e esmagou-a com o pé, avançando em sua direção. “Que surpresa. Ou não. Sabia que ia te encontrar cedo ou tarde, minha querida.”

O mundo desabou. O passado que ela enterrara com tanto custo voltava, tangível, perigoso, ali na rua escura. E Silas Thorne… Silas parecia saber tudo. Tudo. A mensagem, as flores, a vigilância… e agora Nathan? Coincidência? Ou algo muito mais sinistro?

“O que você quer, Nathan?” Elena forçou, recuando um passo, a mão dentro da bolsa procurando freneticamente o celular, as chaves, qualquer coisa que pudesse servir de arma.

Ele riu, um som seco e desagradável. “Saudade, linda. Saudade do que era meu.” Ele chegou mais perto, o cheiro de tabaco e desleixo invadindo seu espaço. “Ouvi dizer que você está se dando bem aqui. Arrumou um patrão rico, né? Um tal de Thorne.” O nome saiu como um cuspe. “Pensei que podia dar um pulo, pedir uma ajuda. Afinal, o que é dele… podia ser nosso, não é?” Seus olhos percorreram seu corpo com cobiça e posse, um olhar que a fez sentir suja, violada.

Elena entendeu. Nathan não estava ali por acaso. Alguém o soltara no seu caminho. Como isca? Como punição por sua “desobediência”? O jogo de Silas era muito mais profundo e perverso do que ela imaginara. Ela estava encurralada entre dois predadores, e ambos a viam como propriedade.

“Não tenho nada a ver com você nem com Thorne!” ela gritou, a voz estridente com pânico e raiva. “Saia da minha frente!”

Nathan roncou de raiva. “Ainda é teimosa, hein?” Ele estendeu a mão para agarrar seu braço.

Elena reagiu por instinto. Girou o corpo, escapando por um triz do toque dele, e começou a correr. Não para o prédio – ele sabia onde ela morava! – mas para a rua principal, mais movimentada. Os passos pesados de Nathan ecoaram atrás dela, junto com palavrões e ameaças.

“Você não foge de mim, sua puta! Você é MINHA!”

Elena correu como se sua vida dependesse disso – porque dependia. A chuva batia em seu rosto, misturando-se com lágrimas de desespero. Ela dobrou uma esquina, depois outra, entrando em um beco escuro que levava a uma avenida movimentada. Quando finalmente alcançou a luz e o barulho dos carros, ofegante, o coração parecendo querer sair do peito, olhou para trás. Nathan não estava mais lá. Ele desaparecera, engolido pela escuridão do beco ou por ordens de alguém que controlava o jogo.

Encostada na parede fria de um prédio, tremendo incontrolavelmente, Elena sentiu uma mistura de alívio agudo e terror renovado. Nathan era um demônio conhecido. Mas Silas Thorne… ele era a sombra que manipulava os demônios. Ele a observava, testava seus limites, soltara Nathan como um cão de caça para lembrá-la de seu lugar. E a mensagem era clara: ela não tinha para onde correr. O mundo dela, aquele frágil refúgio que construíra, estava completamente invadido e controlado por ele.

Foi quando um carro preto, longo e silencioso como um ataúde sobre rodas, um Bentley Continental, deslizou até a calçada ao seu lado. A janela traseira desceu sem um ruído. E lá estava ele. Silas Thorne. Sentado na penumbra do interior luxuoso, o rosto iluminado apenas pela luz fraca do painel. Seus olhos cinza brilhavam como gelo sob a lua, fixos nela, na sua miséria, no seu terror.

“Parece que você teve um dia… agitado, Elena,” ele disse, a voz grave e suave cortando o ruído da chuva e do tráfego. Era uma afirmação, não uma pergunta. Ele sabia. Tudo. “Entrar. Está na hora de terminarmos esse jogo de gato e rato. Você está molhada e tremendo.” Uma pausa carregada. “E eu detesto ver minhas coisas mal cuidadas.”

A porta do carro abriu suavemente, revelando o convite silencioso do interior de couro bege e luzes discretas. Uma armadilha dourada, reluzente e inescapável. Do outro lado da rua, na boca do beco escuro, uma figura alta e escura – Nathan? – observava, imóvel, como um cão de guarda aguardando ordens.

Elena olhou para o carro, para Silas, para a escuridão onde Nathan esperava. O medo era uma entidade viva dentro dela, sufocante. Mas sob o medo, uma faísca de fúria renitente acendeu. Ele achava que ela se renderia tão facilmente? Que entraria no carro como um cordeiro para o abate?

“Vá para o inferno,” ela cuspiu, a voz trêmula mas cheia de um ódio que a surpreendeu.

Os olhos de Silas estreitaram imperceptivelmente. O ar ao redor do carro pareceu ficar mais frio. “Uma escolha, Elena,” ele sussurrou, o tom perigosamente suave. “Entrar no carro agora, comigo. Ou ficar aqui, com ele.” Ele fez um pequeno gesto com a cabeça em direção à sombra no beco. “Escolha.”

O dilema dilacerou-a. Confiar no diabo que conhecia (Nathan) ou no diabo infinitamente mais poderoso e imprevisível que a queria possuir (Silas)? Ambos eram abismos. Mas um abismo, pelo menos, era temporariamente coberto de veludo.

Com um último olhar de puro ódio para a figura sombria no beco, Elena engoliu o orgulho, o medo e o nojo. Ergueu o queixo, numa última tentativa de dignidade, e entrou no Bentley. A porta fechou-se atrás dela com um clique suave e final, isolando-a do mundo exterior, da chuva, do perigo conhecido. O cheiro do carro – couro novo, madeira polida e o aroma distinto, perigosamente masculino de Silas – envolveu-a como uma segunda pele.

Ele não a olhou imediatamente. Ajustou o punho da camisa imaculadamente branca, um gesto minúsculo que exalava controle absoluto. O carro começou a mover-se, fluindo pelo tráfego noturno como um tubarão nas profundezas.

“Boa escolha,” Silas murmurou, virando-se finalmente para encará-la. Seus olhos percorreram seu rosto encharcado, seu corpo trêmulo, com a posse de um colecionador examinando uma aquisição preciosa. “Agora, vamos para casa, Elena. Minha casa. É hora de você entender, de uma vez por todas, o que significa pertencer a mim.”

O destino selado. A gaiola dourada, reluzente e inescapável, finalmente se fechava ao seu redor. E dentro do carro silencioso, com o olhar glacial de Silas Thorne perfurando sua alma, Elena sentiu a última réstia de liberdade se dissolver na escuridão da noite de Seattle.

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