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Véu de Tinta

Capítulo 1 — A Casa dos Silêncios

A mansão da família Oliveira erguia-se no alto da colina como um castelo moderno, cercado por muros altos, câmeras discretas e um jardim impecável que jamais florescia fora de época. À primeira vista, era um símbolo de estabilidade e prestígio — um retrato da elite nacional. Mas por trás das colunas de mármore, dos móveis importados e das cortinas pesadas, escondia-se uma prisão feita de aparências, silêncio e controle.

Na ala oeste da casa, onde a luz entrava filtrada pelas janelas opacas, ficava o ateliê. Era o único cômodo onde Eduarda podia respirar com certa autonomia. Mesmo ali, a liberdade era vigiada, cronometrada, medida.

Ela já estava ali fazia horas. A tela à sua frente era grande, agressiva, carregada de camadas espessas de tinta. O azul do céu se misturava ao roxo das sombras e ao marrom da terra seca. Tudo nela parecia desolado.

Como ela.

Eduarda segurava o pincel como quem segura uma arma. O braço cansado, a mente tensa.

Não era apenas uma pintura. Era um desabafo sufocado, um grito calado, um fragmento da verdade disfarçado de arte.

Ela deu um passo para trás e encarou a tela.

Pintar era tudo o que ainda lhe restava — mas nem isso lhe pertencia. Assinava com mãos anônimas. Criava obras que ganhavam o nome de outra. Trabalhos que cruzavam oceanos, estampavam capas de revista, faziam sucesso entre curadores e marchands, mas que nunca traziam o nome dela.

No canto da tela, deixaria um detalhe oculto, como sempre fazia: um traço irregular em forma de “E”, camuflado entre as sombras.

Era sua única assinatura possível.

A porta do ateliê rangeu.

Luana entrou. Usava um conjunto de alfaiataria branco, óculos escuros mesmo dentro de casa e salto alto. Tinha a expressão entediada de quem está acostumada a ter o mundo a seus pés.

— Já terminou, Duda?

Eduarda odiava aquele apelido infantil.

Luana o usava de propósito.

— Falta o acabamento.

— Preciso da imagem hoje. O embaixador espanhol confirmou presença no coquetel de sexta-feira. Quer conhecer minha nova obra.

A "obra" era, na verdade, de Eduarda. Como quase todas as que decoravam a galeria "Luana Oliveira", referência no circuito artístico nacional. Nenhum dos quadros expostos era de autoria da irmã mais velha, embora sua assinatura brilhasse em cada placa dourada.

— Você está se superando — continuou Luana, inspecionando a pintura com ar técnico. — Está quase… viva.

Eduarda abaixou os olhos.

— Obrigada.

— Esse céu está muito dramático. Diminua os tons escuros. As pessoas gostam de quadros com esperança.

— Esperança não combina com verdade.

Luana virou-se bruscamente.

— Como disse?

Eduarda sorriu, meiga.

— Nada.

Luana apertou os olhos, desconfiada, mas logo voltou à sua pose calculada.

— Envie a imagem para o Augusto assim que terminar. Ele vai preparar o release de imprensa.

Sem esperar resposta, virou-se e saiu, deixando no ar o perfume caro que sempre a precedia.

Eduarda soltou o pincel com força sobre a mesa.

Na biblioteca da casa, a avó materna costumava dizer que livros guardavam almas.

Agora, a biblioteca estava trancada. Desde a morte da mãe.

E com ela, trancaram também todas as verdades.

Aquela casa já havia sido viva. Ruidosa. Alegre, até.

Antes da morte de Helena.

Antes do “acidente”.

Eduarda se lembrava claramente do dia em que sua mãe caiu da escadaria principal. Um tombo, disseram. A babá dizia que foi um desequilíbrio. O pai falava em tontura. Luana dizia que a mãe estava confusa há dias.

Mas Eduarda havia visto algo. Um movimento brusco. Uma discussão abafada. E a queda.

Desde aquele dia, tudo mudou.

Um novo diagnóstico surgiu para justificar o seu isolamento: “instabilidade emocional”.

Logo vieram os psiquiatras contratados, a terapia supervisionada, os medicamentos — alguns ela fingia tomar, outros, escondia sob o colchão.

E a reclusão.

Não era oficialmente proibida de sair. Mas nunca estava “bem o suficiente” para isso.

Sempre havia alguém a vigiá-la. Sempre uma desculpa.

Naquela noite, depois do jantar em que, como sempre, fingiu estar confusa e letárgica, Eduarda retornou ao ateliê.

Fingia para sobreviver.

Havia aprendido a simular pequenos tremores nas mãos. A murmurar coisas sem sentido quando o pai entrava no cômodo. A manter o olhar vago durante as reuniões familiares. Tudo para manter intacta a narrativa que criaram para ela: a irmã quebrada. A artista louca. A herdeira inapta.

E funcionava.

Eles acreditavam.

Ou queriam acreditar.

O diário escondido atrás da segunda prateleira do closet era sua confissão silenciosa.

“Eles pensam que me enterraram num manicômio invisível, feito de protocolos e vigilância. Mas eu cresço no escuro. Eu lembro de tudo. Da queda. Da assinatura falsa. Da herança. Da minha mãe morrendo sem que ninguém pagasse por isso.”

“Eu pinto porque é o que resta. Mas um dia, eu vou assinar meu nome com tinta e sangue.”

Em um canto da casa, trancada a sete chaves, estava a antiga suíte da mãe.

Desde a morte de Helena, ninguém mais entrou lá.

Naquela noite, Eduarda caminhou até lá.

Passou os dedos pela maçaneta.

Trancada.

Mas ela já sabia onde estava a chave.

No escritório do pai, sobre a mesa, havia uma miniatura da casa feita em prata. Um presente de um parceiro de negócios alemão.

Eduarda já observara, em uma das noites em que fingia dormir no sofá da sala, o momento em que o pai removia a base da peça e retirava uma pequena chave dourada de dentro.

Naquela noite, ela esperou a mansão adormecer.

O silêncio era quase absoluto.

Foi até o escritório descalça, deslizando como sombra.

Abriu a miniatura. Pegou a chave.

E caminhou de volta.

Com o coração aos pulos, encaixou a chave na maçaneta da antiga suíte de Helena.

Girou.

A porta se abriu com um estalo suave.

O ar era denso. Antigo.

E diante de si, Eduarda viu o que parecia intocado desde a morte da mãe:

os vestidos pendurados no mesmo lugar, a penteadeira com frascos de perfume, a tela em branco no cavalete ao lado da cama...

...e um cofre semiaberto dentro do armário.

Dentro, envelopes. Papéis. Um testamento.

Ela parou de respirar por alguns segundos.

— Eu sabia... — sussurrou.

Mas não viu — nem ouviu — a câmera de segurança que havia sido instalada discretamente no batente da porta.

Na sala de segurança da mansão, onde um funcionário sonolento assistia a imagens em preto e branco, uma luz vermelha acendeu no canto da tela:

“Movimento detectado — Ala Helena.”

Capítulo 2 — O Homem do Mirante

O amanhecer chegou cinza.

Na mansão, o aroma de café e flores frescas não conseguia disfarçar a tensão silenciosa que pairava desde as primeiras horas da madrugada.

Eduarda acordou cedo, embora mal tivesse dormido. A imagem do testamento ainda dançava por trás das pálpebras, e a assinatura de Helena — firme, elegante — parecia mais viva do que qualquer retrato da mãe espalhado pela casa.

O testamento estava ali. Real. Intocado.

Com ele, tudo que seus avós construíram voltava para ela. E só para ela. Nem uma linha mencionava Luana. Nem o pai. Nenhuma cláusula deixava dúvidas: Eduarda era a única herdeira legítima.

Mas a alegria era um fio que se partia fácil.

Quando voltou para o quarto, a câmera passou despercebida. O erro era pequeno, quase invisível, mas suficiente para desencadear a primeira retaliação.

Pouco depois das oito, um dos seguranças bateu à porta.

— A senhora Ana Cláudia deseja vê-la no escritório.

Eduarda sabia que não era um convite. Era uma convocação.

Vestiu-se com calma, penteou o cabelo e colocou sua máscara de sempre: a de fragilidade, de passividade, de “boazinha”. E desceu.

No escritório, a mãe a esperava em pé, ao lado da lareira apagada.

— Algum motivo especial para estar andando pela casa durante a madrugada? — perguntou, direta.

Eduarda manteve o olhar baixo.

— Tive um pesadelo. Caminhei um pouco para... aliviar a cabeça.

— Estranho. As câmeras mostram você entrando na suíte da sua mãe.

— A porta estava aberta — respondeu, com voz trêmula. — Eu não lembrava que estava trancada. Só... senti falta dela.

Ana Cláudia estreitou os olhos, mas não insistiu.

— Vou reforçar o controle. Pela sua segurança, é claro.

“Pela sua segurança.”

Era assim que eles falavam quando queriam justificar os limites, as grades, os remédios.

— Você ainda está instável, Eduarda. Sabe disso, não sabe?

— Sei — respondeu. E sorriu. Um sorriso triste, que ela já dominava com perfeição.

— Então, comporte-se.

No fim da manhã, Luana bateu à porta do ateliê.

— Você vai sair comigo hoje — disse, como quem ordena.

Eduarda a encarou.

— Sair?

— Preciso de uma acompanhante na visita à fundação de artes. Tem fotógrafos esperando, e é bom para a imagem de família. Você com aquele seu olhar perdido ajuda. Dá autenticidade à artista trágica que sou.

Eduarda quase riu. Mas assentiu.

Ser vista fora da casa era algo que não acontecia há meses. Mesmo que fosse uma encenação, poderia observar, explorar. Talvez até... experimentar a liberdade.

Elas chegaram à fundação às 13h em ponto. Um prédio moderno de concreto e vidro, com jardins geométricos e esculturas em tons metálicos.

Luana desceu do carro com o andar ensaiado de uma celebridade.

Eduarda, com os cabelos presos num coque simples e vestido bege, caminhava dois passos atrás, como uma sombra bem treinada.

Lá dentro, sorrisos, cumprimentos, flashes. Luana posava ao lado dos quadros, discorria sobre “influências expressionistas” e “as pinceladas intuitivas que refletem o feminino profundo da alma”.

Eduarda mal ouvia. Estava distante. Observava.

E foi ali, junto à janela lateral do segundo andar, que ela o viu.

Ele estava do lado de fora, encostado no corrimão do mirante que dava vista para o jardim. Alto, cabelo escuro desalinhado, camisa com as mangas dobradas até o antebraço. Observava uma escultura curva, como se realmente estivesse tentando entender algo invisível.

Eduarda não sabia por que ficou tão fixada nele.

Talvez fosse o modo como parecia alheio à ostentação. Ou a leveza com que mexia os dedos, como quem dedilha ideias no ar.

— Aquele ali é Ricardo Silva — disse uma voz atrás dela.

Era um dos assistentes da fundação.

— O nome me parece familiar.

— Filho do Emílio Silva, do grupo financeiro Aurora. Mas dizem que ele quer se afastar dos negócios da família. Anda investindo em arte independente.

— Independente? — Eduarda sorriu de lado. — Isso ainda existe?

— Para quem tem dinheiro, sim.

Eduarda observou Ricardo mais uma vez. Ele tirou uma foto com o celular e depois, como se sentisse o olhar dela, ergueu os olhos.

Os dois se encararam por um instante.

Ela desviou.

Mas rápido demais.

Quando olhou de novo, ele ainda estava ali, olhando para ela.

E então, sorriu.

Na volta para casa, Luana falava sobre os elogios que recebera, as novas parcerias, o convite para uma entrevista em Lisboa.

Eduarda apenas ouvia, olhando pela janela, os dedos tamborilando no colo.

Na cabeça dela, Ricardo ainda estava lá.

No mirante.

O homem que observava o mundo como se ele ainda pudesse ser redesenhado.

E pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu algo novo: curiosidade.

Naquela noite, ao voltar ao quarto, Eduarda tirou do bolso um pequeno panfleto da exposição.

No verso, anotado à mão, algo que não estava ali antes.

"Às vezes, é a sombra que mostra de onde vem a luz."

— R.

Ela arregalou os olhos.

Olhou ao redor.

E soube: ele a viu. E não apenas com os olhos.

Capítulo 3 — Sangue Seco em Tela

A chave ainda estava com ela.

Escondida no forro da bainha do vestido bege que usara no dia anterior. Aquela pequena peça dourada, que destrancava o quarto da mãe, agora pesava como se fosse feita de chumbo — não por seu valor material, mas pelo que ela abria: verdades.

Na madrugada seguinte ao passeio com Luana, Eduarda esperou novamente a casa mergulhar no silêncio noturno. Àquela altura, já sabia os passos do segurança que rondava os corredores, o momento exato em que o pai dormia e quando Ana Cláudia ativava os sensores externos antes de recolher-se.

Com a chave em mãos, atravessou a mansão sem ruídos. A cada passo, o coração batia forte — não de medo, mas de uma ansiedade antiga, quase esquecida: vontade de saber.

Ela destrancou a porta da suíte de Helena com mais confiança.

Já não era uma intrusa, pensava. Era a filha da dona daquele quarto.

Dessa vez, tinha um plano.

No fundo do armário, o cofre estava do mesmo jeito. Entre os documentos, havia recibos de transferências bancárias antigas, contratos, cartas, fotos. Mas o que realmente importava estava dentro de uma pasta de couro preto, etiquetada à mão: Testamento Helena Ramos Oliveira — 2004.

Eduarda sentou no chão, acendendo a luz do celular.

Abriu a pasta e começou a ler.

“Em pleno uso das minhas faculdades mentais e emocionais, deixo todos os meus bens, inclusive direitos sobre obras, patentes e coleções, à minha filha legítima, Eduarda Ramos Oliveira.”

A assinatura era clara.

Data: 17 de março de 2004.

Apenas dois meses antes da morte de Helena.

Atrás do documento, um anexo:

“Em caso de minha morte, desejo que Eduarda seja acompanhada por curadores de confiança e mantenha total liberdade sobre sua produção artística. Ninguém — repito, ninguém — poderá representar seu trabalho sem consentimento direto e assinado por ela.”

Eduarda fechou os olhos por um segundo.

A verdade era um soco no estômago. Tudo que viveu nos últimos anos — as restrições, a alienação, o roubo das obras — ia contra a última vontade de sua mãe.

Ao lado do testamento, havia uma carta. Escrita à mão. Dobrada três vezes.

Reconheceu a letra de Helena imediatamente.

“Duda, se você estiver lendo isso, é porque as coisas saíram do controle.”

“Eles não vão entender sua arte. Mas vão tentar usá-la.”

“Seja mais inteligente que eles. Use o silêncio como arma. Deixe que pensem que você é frágil. Artistas de verdade sempre foram subestimadas.”

“Não busque vingança. Busque justiça. E se encontrar alguém que veja você de verdade — mesmo sob o véu — não fuja.”

A letra tremia no final.

Como se Helena soubesse que estava em risco.

Eduarda dobrou a carta com cuidado. Não chorou.

Já não era tempo de lágrimas.

Na manhã seguinte, Luana entrou no ateliê com os olhos fixos no celular.

— Seu quadro novo viralizou. Postei sem dizer que era da nova série. As pessoas estão pirando.

Eduarda continuou pintando, silenciosa.

— Aliás, você parece... diferente. — Luana se aproximou. — Dormiu bem?

— Melhor do que nunca — respondeu, com voz mansa.

Luana a observou com desconfiança.

— Cuidado, Duda. Você sabe que o papai não gosta quando você se empolga demais. Ele prefere quando você está mais... quietinha.

Eduarda parou de pintar e olhou nos olhos da irmã.

— Eu sou uma boa atriz, Luana.

Luana arqueou as sobrancelhas.

— Como assim?

Eduarda sorriu.

— Nada. Vai querer que eu altere algo na tela?

Luana recuou, desconcertada.

Mais tarde, sozinha no quarto, Eduarda ligou o celular escondido que mantinha desligado dentro de um livro falso, no fundo de uma gaveta trancada. Era um aparelho antigo, sem rastreio. Só usava quando precisava escapar, planejar.

Pesquisou por “Ricardo Silva Aurora Investimentos”.

Milhares de resultados.

Mas um deles chamou atenção: uma reportagem em um blog de arte independente.

“Filho mais velho de Emílio Silva, Ricardo se afastou do grupo financeiro aos 24 anos. Criou um fundo voltado para artistas que não têm acesso a editais públicos ou galerias comerciais. Não aparece em eventos tradicionais. É conhecido por comprar quadros de autores anônimos e ajudá-los a emergir com identidade preservada.”

Aquilo era inesperado.

Alguém que usava o próprio poder... para dar nome a quem não tinha.

Por impulso, digitou:

“Às vezes, é a sombra que mostra de onde vem a luz.”

Clicou em buscar.

A frase retornou com uma única correspondência: um poema publicado em 2013, num blog desativado, assinado apenas como “R.”

No rodapé, um e-mail criptografado.

Ela não sabia ainda se era uma armadilha ou uma porta aberta.

Mas respondeu.

“Li seu poema numa parede que ninguém pintou. E vi você no mirante. Eu sou a sombra. E você me viu.”

Ela não usou nome. Nem assinatura.

Apenas E.

Enquanto isso, em um restaurante discreto no centro da cidade, Ricardo observava a tela do celular. Um novo e-mail em sua caixa. Sem título. Texto breve. Enigmático.

Ele releu três vezes.

E depois sorriu.

— Finalmente — murmurou, tomando um gole de vinho.

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