O som insistente do monitor cardíaco cortava o silêncio com uma cadência precisa.
Bip… bip… bip…
Foi a primeira coisa que ela ouviu ao emergir da escuridão. Um som ritmado, quase hipnótico, que lhe dizia que ainda estava viva. Mas viva onde? Como? Por quê?
A pálpebra direita de Isadora tremeu antes de finalmente se erguer. A luz branca, fria, vinda do teto, invadiu seus olhos com violência. Ela tentou se mover, mas um peso estranho a mantinha presa à cama, como se o próprio corpo ainda não reconhecesse que tinha acordado.
Engoliu em seco. A garganta doía, como se tivesse passado dias sem falar. O cheiro de antisséptico e o murmúrio abafado de vozes e passos confirmaram o que seu olhar ainda embaçado tentava entender: ela estava em um hospital.
Uma sensação opressora de confusão tomou conta de sua mente. Tudo parecia fora do lugar. O tempo. O espaço. O corpo. A alma.
Antes que pudesse formar uma pergunta, uma voz masculina preencheu o ambiente com suavidade.
— Isadora…? Você está me ouvindo?
Ela virou o rosto lentamente em direção ao som. Havia um homem sentado ao lado de sua cama. Usava terno escuro, camisa azul clara. Os cabelos castanhos estavam perfeitamente penteados, o rosto bonito moldado por feições serenas. Mas havia algo nos olhos dele — um tipo de alívio contido misturado com medo.
— Você está me reconhecendo? — ele perguntou, se inclinando um pouco mais. — Sou eu, Daniel.
Isadora piscou. O nome não despertou nada.
— Eu… — a voz saiu fraca, rouca. — Onde eu estou?
— No Hospital São Rafael. Você sofreu um acidente há quatro dias. Foi um susto enorme, mas está viva. Graças a Deus.
Ela tentou processar a informação. Acidente? Quatro dias?
— Eu… o que aconteceu?
Daniel hesitou. Seus dedos se entrelaçaram como se ele estivesse escolhendo com cuidado cada palavra.
— Você foi encontrada desacordada em uma estrada da região serrana. Disseram que chovia forte naquela noite. Os médicos disseram que você teve uma pancada forte na cabeça. E… perdeu a memória recente.
Isadora ficou imóvel. Um zumbido se instalou nos ouvidos. Ela sentiu o coração acelerar, o monitor denunciando sua reação.
— Como assim… perdi a memória?
Daniel suspirou, os ombros se contraindo levemente.
— Você não lembra… de mim?
Ela o encarou por longos segundos. Não. Definitivamente, não. Era como olhar para um rosto que deveria ser familiar, mas que não despertava qualquer sentimento — nem desconforto, nem conforto. Era simplesmente… vazio.
— Não — sussurrou, com a voz embargada. — Me desculpa, eu… não sei quem você é.
O silêncio que se seguiu foi incômodo. Ele assentiu lentamente, como se já esperasse por aquilo.
— Está tudo bem. Os médicos disseram que pode acontecer. Com paciência, as lembranças voltam. Eu estarei aqui com você… todos os dias. Como sempre estive.
Ele se levantou, andou até a beira da cama e segurou sua mão. Foi um toque leve, cuidadoso — mas Isadora sentiu vontade de puxar. Como se aquele contato não fosse bem-vindo. Como se seu corpo não reconhecesse aquela pele, aquele calor, aquele cheiro.
Ela baixou os olhos e viu, com estranheza, um anel no dedo anelar da mão esquerda. Uma aliança de ouro branco, fina, elegante. Seus olhos se arregalaram.
— Eu… estou casada?
Daniel sorriu, triste.
— Ainda não. Estamos noivos. Iríamos nos casar no fim do ano. Você estava organizando tudo. Estava tão feliz… — sua voz falhou. — Mas agora… vamos devagar. Eu não espero nada de você. Só quero que fique bem.
Isadora fechou os olhos. Uma náusea sutil se formou em seu estômago. Tudo estava errado. Tudo.
Nas horas seguintes, ela passou por exames, perguntas e olhares comedidos. Enfermeiras diziam que ela era “muito querida”, que “o noivo era um anjo”, que “ela era sortuda por ter um homem daqueles ao lado”.
Mas cada elogio parecia ecoar dentro dela como uma nota desafinada.
Ela sabia que estava viva. Mas não se sentia inteira.
Sua mente era um corredor escuro, com portas trancadas. Cada tentativa de lembrar provocava uma dor incômoda na testa. E o pior era o vazio emocional. Como se ela tivesse voltado a um mundo onde todos a conheciam… menos ela mesma.
À noite, sozinha no quarto, depois que Daniel foi embora, Isadora finalmente chorou.
Não por tristeza. Nem por medo. Chorou pela sensação de não se reconhecer. Chorou porque havia algo — alguém — faltando. Não sabia explicar. Era uma ausência que não tinha forma nem nome, mas queimava por dentro.
E foi nessa madrugada que surgiram os primeiros flashes.
🌧️ Um beijo na chuva.
🌧️ Um toque nos cabelos molhados.
🌧️ Um sussurro urgente: “Não me esquece, por favor… volta pra mim.”
Ela acordou ofegante, os olhos arregalados, o peito disparado. Havia um rosto borrado nos seus pensamentos. Um olhar intenso. Um sorriso triste.
E aquele homem não era Daniel.
O dia seguinte amanheceu cinzento, com nuvens pesadas encobrindo o céu. Do quarto no sexto andar, Isadora observava a cidade através da janela, como se esperasse que alguma rua, prédio ou detalhe disparasse uma lembrança. Mas tudo parecia... estrangeiro.
Ela mal dormiu. O sonho — se é que podia chamar assim — ainda ecoava nela. Era vívido demais. Real demais. A sensação da chuva molhando seus cabelos, o calor das mãos que seguravam seu rosto, o tom desesperado da voz que suplicava para que ela não esquecesse.
Mas o rosto dele… ainda era uma névoa.
Alguém bateu suavemente à porta.
— Com licença? — uma enfermeira loira, de sorriso gentil, entrou com uma prancheta em mãos. — Oi, Isadora. Trouxe seu café e vim fazer alguns testes de memória.
Ela assentiu em silêncio, ainda olhando a cidade.
A rotina dos testes já havia começado no dia anterior. Palavras simples para repetir. Imagens para reconhecer. Datas, nomes, números. Tudo se confundia na cabeça dela. Era como tentar montar um quebra-cabeça com peças de outros jogos.
— Você se lembra da sua profissão?
Isadora franziu o cenho.
— Eu… acho que era designer. Algo com criação. Imagens. Mas… não sei com certeza.
A enfermeira anotou algo.
— E o nome do seu noivo?
Isadora engoliu em seco.
— Daniel.
— Ótimo. E qual a última lembrança nítida que tem?
Ela hesitou. Respirou fundo.
— Eu estava no aeroporto. Com as minhas amigas. Íamos viajar para comemorar meu aniversário. Era junho. E… depois disso, nada.
A enfermeira sorriu com doçura, embora houvesse compaixão no olhar.
— O médico vai vir te ver mais tarde. E seu noivo também disse que vem no fim da tarde, como ontem. Ele está muito dedicado a você.
Isadora forçou um sorriso, mas assim que ficou sozinha, o vazio reapareceu.
Ela não duvidava da bondade de Daniel. Ele parecia gentil, carinhoso, cuidadoso. O tipo de homem que qualquer mulher gostaria de ter ao lado. Mas havia uma lacuna entre a lógica e o coração. Ela simplesmente não sentia o que deveria sentir. Nenhum frio na barriga. Nenhuma urgência no toque. Nenhuma lembrança despertando.
E pior: quando ela fechava os olhos, o rosto que queria ver não era o de Daniel.
Naquela tarde, enquanto caminhava lentamente pelos corredores do hospital com ajuda de uma fisioterapeuta, Isadora parou diante de um quadro decorativo na parede: uma fotografia em preto e branco de um campo aberto, onde um casal corria em direção um ao outro.
Foi apenas um segundo.
Mas a imagem ativou algo.
Seu coração bateu forte. E, de repente, ela ouviu a voz novamente, nítida, como se estivesse dentro dela:
"Você prometeu... você disse que nunca ia me deixar."
Ela levou a mão ao peito, os olhos marejados.
— Está tudo bem? — perguntou a fisioterapeuta, preocupada.
Isadora balançou a cabeça, sem conseguir explicar. Como explicar que estava sendo assombrada por memórias que não pareciam inventadas?
Ela precisava entender. Precisava encontrar respostas.
Mais tarde, no quarto, Daniel chegou com flores nas mãos e um sorriso cansado.
— Trouxe suas favoritas — disse, depositando um buquê de lírios brancos na mesinha. — O cheiro te acalma. Sempre dizia isso.
Ela agradeceu com um aceno. Estava mais calada que o normal, e ele notou.
— Está tudo bem? — ele perguntou, sentando-se.
Ela respirou fundo. Precisava perguntar.
— Daniel… você tem fotos nossas? De antes do acidente?
Ele sorriu.
— Claro. Muitas. Você sempre postava no Instagram, e eu também. Eu trouxe seu celular, carregado. Está aí na gaveta. — Ele apontou. — Achei melhor esperar até você se sentir pronta.
Ela assentiu lentamente.
— Posso ver?
— Claro — respondeu ele, se levantando para pegar o aparelho. Entregou-o com cuidado, observando-a com olhos atentos. — Se ficar angustiada… para, tá bem?
Isadora desbloqueou o celular. Sua digital ainda funcionava. Um alívio estranho. Como se uma parte dela ainda estivesse ali.
Começou a rolar a galeria.
Havia fotos com Daniel em restaurantes, em festas, em viagens. Sorrisos, abraços, legendas apaixonadas. Mas… tudo parecia encenado. Como se ela estivesse olhando para uma vida de outra pessoa.
Então, algo a fez congelar.
Entre as fotos com Daniel, havia uma pasta separada. Oculta.
"Arquivo Protegido", era o nome.
Ela clicou. E pediu uma senha.
Franziu a testa.
— Você sabe essa senha? — perguntou a Daniel, tentando parecer casual.
Ele se aproximou e olhou.
— Isso? Não… talvez você tenha protegido algo pessoal. Documentos, talvez. Não lembro de ter visto isso antes.
Isadora disfarçou a decepção.
Mas agora, havia mais uma certeza.
Havia algo que estava sendo escondido.
E ela iria descobrir.
Naquela noite, o sonho voltou.
Só que agora, ele falava seu nome.
"Isadora... você prometeu. Me encontra. Eu te espero. Sempre te esperei."
Ela acordou ofegante, suando frio. E, pela primeira vez, sentiu que talvez… estivesse sendo vigiada.
No terceiro dia, Isadora já conseguia caminhar sozinha. Seus passos ainda eram lentos, mas firmes, como se cada metro percorrido fosse uma pequena conquista contra o vazio que morava em sua mente.
Daniel apareceu pela manhã, mais cedo do que nos outros dias, com café e uma caixa de bombons que ela, segundo ele, costumava amar. Conversou por alguns minutos, atualizou notícias da família, mencionou um casal de amigos em comum que queria visitá-la — e, antes que ela pudesse responder, ele já tinha recusado por ela.
— Acho melhor você descansar mais um pouco antes de ter visitas — disse com gentileza. — Quando se sentir pronta, eu aviso a todos.
Ela forçou um sorriso e concordou. Mas algo naquele controle todo a incomodava. Havia um cuidado... excessivo. Como se cada passo dela estivesse sendo monitorado com zelo demais.
Quando ele saiu, Isadora decidiu explorar um pouco o corredor do andar. Precisava respirar, pensar longe da cama e da presença constante de Daniel.
Caminhou até a pequena sala de espera ao fim do corredor. Era um lugar simples, com cadeiras estofadas, uma estante de livros empoeirada e uma máquina de café antigo. Havia um quadro na parede com uma paisagem marinha e uma janela larga com vista para o estacionamento do hospital.
Ela se sentou e apoiou as mãos sobre o colo.
Foi quando percebeu algo estranho.
No braço da poltrona ao lado, havia um envelope pardo, amassado nas pontas. Não parecia ter sido esquecido por um funcionário — estava limpo, cuidadosamente deixado ali, como se estivesse esperando por alguém.
Ela olhou em volta.
Ninguém no corredor.
Com hesitação, pegou o envelope. Estava sem remetente. Na frente, escrito à mão com letras firmes, apenas uma palavra:
"Isadora."
O coração dela disparou.
As mãos tremiam quando ela abriu o envelope.
Dentro, havia uma única folha de papel dobrada. Nenhum nome, nenhuma assinatura. Apenas um texto breve, escrito em letras maiúsculas:
VOCÊ NÃO ESTÁ LOUCA. VOCÊ ESTÁ SENDO ENGANADA. VOCÊ NÃO AMA ELE. VOCÊ AMA OUTRO. PROCURE PELA VERDADE ANTES QUE ELE TE FAÇA ESQUECER DE NOVO. EU ESTOU TE ESPERANDO.
Ela leu uma, duas, três vezes. As palavras pulsavam diante dos seus olhos como um grito.
De novo?
"Antes que ele te faça esquecer de novo?"
Ela sentiu o chão sumir sob os pés.
Segurou a carta com força, dobrando-a e escondendo-a no bolso do roupão antes que alguém entrasse. O medo e a adrenalina percorriam suas veias.
Aquilo era real? Alguém estava tentando alertá-la? Ou... era um trote cruel?
Mas no fundo, no lugar onde as memórias pareciam dormir, algo nela acreditou em cada palavra.
Naquela noite, ela fingiu estar dormindo quando Daniel apareceu. Ele a observou por alguns minutos, fez carinho em sua testa, como fazia todas as noites, e então saiu em silêncio. Quando os passos dele sumiram no corredor, Isadora se sentou na cama com rapidez.
Pegou o envelope do bolso da gaveta e leu novamente, com atenção. Virou o papel ao avesso, examinou todos os cantos. Nenhum sinal de quem poderia ter deixado. Mas agora, ela sabia: alguém a conhecia. E alguém estava tentando ajudá-la.
Decidiu voltar ao celular. Precisava ver mais. Buscar pistas, tentar entender. Daniel dissera que não conhecia a pasta protegida — mas ela não acreditava. Tentou senhas simples: sua data de nascimento, seu nome completo, o nome de Daniel... nada.
Mas quando digitou "Salinas23", o arquivo se abriu.
E Isadora sentiu o corpo inteiro gelar.
Lá dentro, havia vídeos. Fotos. Áudios. Todos com o mesmo homem.
O homem do sonho.
Ele tinha olhos escuros, barba por fazer, um sorriso que parecia esculpido nas lembranças que ela ainda não recuperara. Havia um vídeo em que ele a filmava rindo, em um parque, dizendo:
— Se você estiver vendo isso e esqueceu de mim… volta. Eu sou real. A gente era real. Te espero até o fim.
Ela levou a mão à boca, em choque.
Ela o conhecia.
Ela o amava.
E tudo dentro dela gritava que essa era a verdade que tentaram apagar.
Antes de poder assistir ao resto dos arquivos, um barulho no corredor a fez se sobressaltar. Escondeu o celular debaixo do travesseiro.
A porta se abriu.
Mas não era Daniel.
Era ele.
O homem da tela. O homem dos sonhos.
Parado ali, à porta do quarto, como um fantasma que finalmente encontrara o caminho de volta.
— Isadora? — a voz saiu trêmula. — Sou eu…
Ela arregalou os olhos. O coração disparou.
— Quem é você?
Ele sorriu, triste. E seus olhos se encheram de lágrimas.
— Sou o homem que você amava… antes de tudo isso acontecer.
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