Segunda-feira, 7h45 da manhã — Colégio Dom Felipe
— Vai mesmo usar essa apresentação? — Michael apareceu do nada, encostado na porta da sala com aquele sorrisinho irritante que Patrícia já aprendera a odiar desde os oito anos de idade.
Ela nem precisou olhar para saber que ele estava com o uniforme meio desleixado, a mochila jogada em um ombro só, e aquele ar de quem sempre acha graça de tudo.
— A diferença entre nós dois, Michael — ela respondeu, sem tirar os olhos do slide do projetor — é que eu preparo minhas apresentações. Você só espera que o brilho da sua camisa de time distraia os professores.
— E geralmente funciona — ele piscou.
Patrícia virou-se devagar, braços cruzados, sobrancelha arqueada. — Mas não hoje. Hoje é a votação do representante de turma. E adivinha só quem já tem metade dos votos?
Michael se aproximou, parando bem em frente a ela. Os dois sabiam: aquela disputa ia muito além da liderança da sala. Era mais um capítulo da história deles. E ela estava longe de acabar.
— Que vença o melhor. — Ele sorriu, mas os olhos diziam outra coisa.
Patrícia sorriu de volta. — Sempre venço.
Michael afastou-se com a mesma confiança que sempre o acompanhava nos corredores do colégio. Era como se cada passo dele fizesse parte de um espetáculo. Os amigos o esperavam no fundo da sala, rindo e batendo nas costas uns dos outros, como se a vida ali fosse apenas uma grande brincadeira.
— Não deixa ele mexer com sua cabeça, Pati — sussurrou Natália, sua melhor amiga, aproximando-se com duas canecas de café do refeitório. — Você já ganhou essa eleição antes mesmo dos cartazes serem colados.
Patrícia pegou a caneca, soltando um suspiro cansado. — Não é por causa da eleição. É que ele sempre faz isso. Sempre se mete, sempre aparece, sempre age como se tivesse o direito de invadir tudo. Até o meu espaço.
— Ou talvez ele só queira fazer parte dele. — Natália sorriu, travessa.
— Não viaja — Patrícia revirou os olhos, mas não conseguiu impedir um leve sorriso de escapar. — Michael só sabe competir. Ele não sabe gostar de ninguém. Nem dele mesmo, provavelmente.
A manhã passou com uma lentidão irritante. Em cada aula, Michael arrumava um jeito de provocar Patrícia — às vezes com bilhetinhos, outras com comentários em voz alta que arrancavam risadas da sala. Mas ela conhecia o jogo dele. E estava pronta.
Na hora do intervalo, Patrícia estava colando o último cartaz da sua campanha de reeleição como representante da turma. Letras grandes, fundo azul, tudo muito organizado. Responsabilidade, compromisso, liderança. Era o que ela queria passar.
Até ouvir o barulho de fita sendo puxada logo atrás dela.
Virando-se devagar, ela viu Michael colando um cartaz sobre o dela. Um fundo vermelho berrante com sua foto fazendo uma pose ridícula e a frase:
"Vote em quem te representa de verdade. Vote em diversão. Vote em mim."
— Você é um idiota. — Patrícia arrancou o cartaz com um puxão seco.
— Você é muito séria. Alguém precisava equilibrar isso. — Ele piscou de novo.
— Isso aqui não é um show de stand-up, Michael. É uma eleição.
— E qual é o problema em deixar as pessoas rirem um pouco? — Ele sorriu. — Talvez seja esse o seu problema. Você leva tudo a sério demais. Até nós.
Ela travou por um segundo.
— Nós?
— Digo, nossa… convivência. — Ele coçou a nuca, e pela primeira vez naquele dia, pareceu um pouco desconcertado. — Essa coisa de guerra fria desde o jardim de infância. Você nunca se perguntou por quê?
Patrícia sentiu o coração acelerar, mas disfarçou.
— Porque você sempre precisou provar que era melhor. E eu nunca deixei barato.
Antes que ele respondesse, uma voz diferente surgiu às costas deles.
— Oi, Patrícia?
Ela virou-se e deu de cara com o novo aluno.
Cabelos castanhos, olhos claros, sorriso tímido. Usava o uniforme impecável e carregava uma pasta presa ao peito. Era o garoto novo que havia sido transferido há uma semana. Patrícia lembrava vagamente de tê-lo visto na reunião de boas-vindas da escola, mas era a primeira vez que ele falava com ela diretamente.
— Oi...?
— Eu sou o Thiago. Eu… achei sua proposta de campanha muito madura. Você parece ser uma ótima líder. Eu estava me perguntando se... você gostaria de estudar comigo para a prova de química?
Michael se enrijeceu atrás dela.
Patrícia arqueou uma sobrancelha. — Claro, Thiago. Seria ótimo.
— Posso anotar seu número?
Ela sorriu, pegando o celular do bolso. E foi então que olhou de relance para Michael.
Ele não estava sorrindo.
Na verdade, ele estava com os braços cruzados, o maxilar levemente travado, o olhar cravado em Thiago como se o simples ato de existir fosse um insulto.
Ela quase sorriu.
Quase.
Naquela noite, enquanto relia seu discurso para a votação, Patrícia não conseguia tirar da cabeça o olhar de Michael. Nem a forma como ele hesitou antes de dizer "nós". E, muito menos, o jeito como ele reagiu ao ver outro garoto se aproximar dela com interesse evidente.
Talvez Natália tivesse razão.
Talvez houvesse mais do que rivalidade naquela história.
Mas se havia… seria perigoso demais descobrir.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Michael batia bola contra a parede do quarto, o fone nos ouvidos e a mente longe. Muito longe.
Ele odiava o Thiago. Odiava aquele sorriso bem comportado, aquele jeitinho de bom moço, aquele olhar que ele deu para Patrícia como se… como se ela fosse qualquer uma.
Ela não era qualquer uma.
Ela era a garota que tinha rido da primeira vez que ele caiu na aula de educação física. Que puxava o cabelo dele e roubava o lanche na segunda série. Que o enfrentava como se ele fosse um vilão de novela.
Terça-feira, 9h — Dia da Votação
O auditório do Colégio Dom Felipe estava lotado. Alunos da turma do terceiro ano, professores, coordenadores e até alguns curiosos de outras salas esperavam pelas apresentações finais dos candidatos à liderança estudantil.
Patrícia caminhava em direção ao palco com o coração acelerado, mas o rosto firme. Sua postura era impecável, e o discurso que segurava em mãos tinha sido revisado três vezes — por ela, por Natália e até por sua mãe. Ela não deixava nada ao acaso.
Ao passar pela primeira fileira, seu olhar cruzou com o de Michael, sentado entre os amigos, pernas esticadas, braços cruzados atrás da cabeça, como se aquilo tudo fosse só mais uma brincadeira.
Mas havia algo diferente naquele olhar. Uma intensidade que não combinava com a postura relaxada. Algo entre orgulho e provocação. Algo que mexeu com ela mais do que deveria.
— Vai arrasar — sussurrou Natália ao seu lado.
Patrícia assentiu, ajustou o microfone e começou.
— Bom dia a todos. Meu nome é Patrícia Andrade, e estou aqui hoje porque acredito que liderança é mais do que falar alto ou mandar bem nas redes sociais. Liderança é ouvir, representar e agir. É transformar reclamações em soluções e opiniões em projetos concretos...
Enquanto ela falava, Michael mantinha os olhos nela. Não como inimigo, não como competidor. Mas como quem a conhecia por dentro. Como quem lembrava de cada debate, cada briga, cada olhar atravessado nos corredores desde os oito anos de idade.
E, pela primeira vez, talvez ele estivesse se perguntando o que teria acontecido se, em vez de competir, eles tivessem tentado andar lado a lado.
A apresentação de Michael foi exatamente o oposto.
— Fala, galera! — ele começou, sem script, sem papel, sem nada além de seu sorriso convencido. — Eu não trouxe um discurso bonito. Eu trouxe ideias. Tá cansado de evento chato? Quer fazer um campeonato de verdade? Acha que os professores podiam ouvir mais a gente? Então, vote em mim. Porque eu sei o que vocês querem. E eu sei como conseguir.
A plateia explodiu em aplausos. Muitos riram. Alguns até assobiaram. E Patrícia, sentada na lateral do palco, só observava com um aperto estranho no peito.
Ela odiava admitir… mas ele tinha carisma. Sempre teve. Talvez fosse isso que a irritava tanto. Ou talvez… fosse o medo de que ele usasse esse charme para coisas que ela não podia controlar. Inclusive, para confundir o que ela sentia.
Na saída do auditório, Patrícia mal teve tempo de respirar. Thiago se aproximou com um sorriso tímido e um chocolate em forma de coração.
— É meio bobo, mas… achei que merecia algo doce depois do seu discurso.
Ela sorriu, surpresa. — Obrigada, Thiago. Foi muito gentil.
— Você tem um jeito… forte de falar. Dá vontade de seguir você.
— Você vai me fazer corar — ela riu.
E foi nesse exato momento que Michael apareceu ao lado dos dois.
— Que cena fofa — ele disse, com um sorriso forçado. — Devo voltar depois ou posso atrapalhar?
Thiago ficou um pouco sem graça. Patrícia, nem tanto.
— Só se você for educado por cinco minutos.
— Estou tentando — ele rebateu. — Mas é difícil quando alguém tenta comprar votos com chocolate.
— Ele não está me comprando — Patrícia disse, firme.
— Claro que não. — Michael olhou para Thiago. — Mas se eu fosse você, não começava um jogo que não sabe jogar.
O clima pesou. Thiago, envergonhado, murmurou um “com licença” e saiu.
— Você é insuportável — Patrícia disse, irritada.
— E você é cega. Esse cara não quer estudar química, Pati. Ele quer outra coisa.
— E se quisesse? Qual o problema?
Michael se aproximou um passo. O tom da voz abaixou.
— O problema é que você nunca percebe quando alguém tá te olhando diferente… ou quando alguém já te olha assim faz tempo.
Patrícia prendeu a respiração. A distância entre eles era mínima. As palavras pairavam entre os dois como uma confissão inacabada. Mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, a coordenadora apareceu chamando ambos para a apuração dos votos.
No fim do dia, o resultado saiu.
Empate.
Exatamente o mesmo número de votos para Patrícia e Michael.
A sala explodiu em murmúrios. Nunca antes isso havia acontecido. Seria necessária uma segunda votação, só entre os dois, na semana seguinte.
Enquanto todos reagiam, Patrícia olhou para ele.
Michael sorriu. Um sorriso de quem não ligava de perder. Porque, de alguma forma, ele já sentia que estava ganhando algo mais importante.
E, talvez… ela também.
Naquela noite, deitada em sua cama, Patrícia não pensava no resultado da eleição. Nem em projetos para a próxima semana.
Ela pensava nos olhos de Michael.
No jeito como ele olhou para ela depois do discurso.
E, principalmente, na frase que ele não completou.
"Quando alguém já te olha assim faz tempo..."
Quantas vezes ela olhou para ele e escolheu não ver?
Quantas vezes ele tentou dizer o que nem ele sabia?
Talvez o problema nunca tenha sido o ódio.
Talvez… fosse exatamente o contrário.
Quarta-feira, 12h32 — Refeitório do Colégio Dom Felipe
O refeitório fervilhava. Literalmente. Entre o barulho das bandejas, o som abafado das conversas e os boatos sobre a nova votação, o clima era de tensão disfarçada de brincadeira. Todos comentavam o empate inédito como se fosse um episódio de reality show.
— Você viu isso aqui? — Natália disse, mostrando o celular para Patrícia. — Fizeram uma enquete online: “Team Patrícia” ou “Team Michael”. Já tem mais de 500 votos.
Patrícia soltou um suspiro, pegando o suco da bandeja. — Viramos novela mexicana, é isso?
— Viraram casal de fanfic, isso sim — zombou Natália. — E, sinceramente, se você não perceber o que tá rolando entre vocês dois, vou te dar um empurrão. Literalmente.
— Não tem nada rolando, Nat — respondeu, olhando automaticamente para a mesa no canto, onde Michael ria com os amigos. Ele parecia despreocupado, o centro de todas as atenções. Como sempre. — Ele nem sabe o que quer. Nem ele entende o próprio jogo.
— E você sabe?
Patrícia não respondeu. Porque, no fundo, também não sabia.
Foi quando uma voz suave surgiu ao lado dela.
— Patrícia?
Ela se virou e deu de cara com Thiago. Sorriso gentil, postura impecável, pasta na mão — o garoto novo que aos poucos vinha ganhando espaço não só na sala, mas também nos pensamentos dela.
— Oi, Thiago — ela sorriu. — Tudo bem?
— Sim. Queria te perguntar uma coisa… — Ele olhou para Natália com certo receio, mas ela se levantou antes mesmo que ele terminasse a frase.
— Vou buscar sobremesa. Fiquem à vontade. — E saiu com um sorrisinho maroto.
Thiago pigarreou. — Eu estive pensando... você tem sido muito gentil comigo desde que cheguei. E eu queria agradecer isso. Mas também... queria aproveitar a chance.
— Que chance?
— De te conhecer fora daqui. Sem pressão, sem livros. Só… uma saída. Um café, talvez?
Patrícia hesitou. A proposta a pegou de surpresa, embora ela soubesse que cedo ou tarde ele faria esse convite. Thiago era gentil, educado, bonito. Tudo nele parecia seguro. Equilibrado. Correto demais, talvez.
— Eu... não sei se vou estar livre no sábado — ela disse, com honestidade.
— Eu estarei no Doce Refúgio, às 14h. Se você quiser aparecer… vai ser ótimo.
Ela assentiu, ainda digerindo a situação, quando sentiu um arrepio na espinha. Não precisou olhar para saber. Michael estava atrás dela.
Michael vinha caminhando entre as mesas quando viu Thiago inclinado sobre Patrícia. A forma como ela sorriu, a postura aberta… aquilo fez algo dentro dele se contrair. De novo.
Ele ainda não sabia nomear o que sentia. Era incômodo. Era inquietação. Era aquela estranha vontade de interromper o momento, de dizer que ela estava perdendo tempo com alguém sem graça.
Mas ele não podia dizer isso.
Não era nada dela. E ela não era nada dele.
Ele passou por trás da mesa fingindo ignorar, mas quando avistou uma garota da turma do segundo ano — Lara, se não se enganava — com a bandeja na mão, aproveitou a deixa.
— Lara — chamou, com um sorriso despreocupado.
Ela parou surpresa. — Oi… Michael?
— Amanhã, às 14h. Doce Refúgio. É um encontro — disse, do nada, alto o suficiente para Patrícia ouvir.
Lara arregalou os olhos, surpresa e claramente sem saber o que estava acontecendo, mas sorriu. — É… claro!
Michael piscou, como se nada fosse demais, e seguiu em frente, saindo do refeitório como se tivesse acabado de comentar a previsão do tempo.
Patrícia observou tudo com os olhos semicerrados.
— Que idiota — murmurou.
— O quê? — perguntou Thiago.
— Nada.
Mais tarde, sentada com Natália no pátio, Patrícia contou o que aconteceu.
— Ele marcou um encontro só pra me provocar. Você precisava ver a cena. Nem sabia o nome da garota até ontem!
— E você vai no sábado?
— Não sei.
— Se você não for por interesse, vá por justiça. Mostra que a vida não gira ao redor de Michael.
Patrícia ficou em silêncio.
Era isso que ela queria?
Mostrar algo? Provar algo?
Ou fugir do que estava começando a sentir?
Enquanto isso, no vestiário da quadra, Michael girava a bola nas mãos, com a testa suada, o corpo cansado… e a mente ainda mais.
Lara? Sério? O que ele tinha na cabeça?
Ele não gostava dela. Mal conversavam. Mas a ideia de ver Patrícia indo a um encontro com Thiago parecia mais insuportável do que fingir interesse por outra pessoa.
E ele odiava isso.
Odiava não entender o próprio coração.
Talvez o problema fosse esse: com Patrícia, ele nunca teve controle. Ela o desafiava. Fazia ele perder o ritmo. E, por algum motivo, fazia tudo nele girar como se o mundo inteiro estivesse prestes a virar de cabeça pra baixo.
Naquela noite, Patrícia encarava o celular com a notificação piscando:
Thiago: “Te espero amanhã. 14h. :)”
E, no fundo, sentia que estava entrando em um jogo perigoso.
Não com Michael.
Mas com o próprio coração.
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