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Entre Gotas de Amor e Cicatrizes

O Menino Que Alimentava Gatos

Capítulo 1 – O Menino Que Alimentava Gatos

Me chamo Haru. E, se eu tivesse que definir minha vida com uma única palavra, seria “quase”.

Quase feliz.

Quase forte.

Quase amado.

Mas naquele dia, enquanto eu me abaixava na calçada molhada para alimentar um gatinho magro e assustado, eu não imaginava que alguém estava me observando. E que a vida que eu conhecia estava prestes a se partir ao meio — e também se iluminar.

Era uma tarde cinza de segunda-feira. O tipo de dia que já nasce cansado. Eu voltava da escola com a mochila pesada e o uniforme amassado, quando o vi: um filhote branco, com as patas sujas de barro e os olhos fundos de fome. Ele miava baixinho, como se pedir ajuda já fosse vergonhoso.

Me ajoelhei sem pensar. Abri meu lanche — um pedaço de pão com ovo que minha mãe havia feito de manhã — e parti ao meio. Entreguei a parte maior ao pequeno felino, que hesitou, mas logo se aproximou, faminto.

— Ei… devagar — sussurrei, como se o gato pudesse me entender. — Você está seguro agora.

Foi quando senti um olhar queimar minhas costas. Me virei, devagar, e lá estava ele: Luan.

Cabelo castanho escuro, camisa meio aberta, fones pendurados no pescoço e aquela expressão entre curiosidade e deboche.

— Você fala com gatos, agora?

O tom era provocador, mas havia algo nos olhos dele que me paralisou. Como se ele tivesse se confundido com a própria fala. Como se estivesse… encantado.

— Não — respondi. — Só com pessoas mal-educadas.

Ele arqueou uma sobrancelha e deu um meio sorriso, meio cínico, meio divertido.

— Interessante. Mal-educado e curioso. Um combo irresistível.

Me levantei, limpando os joelhos com as mãos. O gato já lambia o que restava do pão.

— Você sempre observa os outros pelas costas? — perguntei, tentando manter a firmeza na voz, mas o coração estava acelerado demais.

Ele me encarou.

— Só quando me chamam atenção.

Fiquei em silêncio. Não sabia como responder àquilo.

Ele se virou, pronto para ir embora, mas antes jogou por cima do ombro:

— Esse gato teve sorte. Tomara que você tenha a mesma.

A partir daquele dia, Luan começou a implicar comigo na escola. Nada diretamente cruel — apenas o tipo de presença que você sente mesmo quando não vê. O olhar prolongado no corredor. Os comentários velados nas aulas. As perguntas “inocentes” que me deixavam corado na frente de todos.

Mas por trás de toda aquela encenação, eu via algo. Um desconforto. Uma hesitação. Como se ele estivesse travando uma guerra entre quem é e quem fingia ser.

— Aquele Luan tá olhando pra você de novo — dizia minha amiga Elisa, uma das poucas que sabiam que eu era gay. — Sério, Haru, esse menino te olha como se você fosse… uma pergunta sem resposta.

— Ou uma ameaça — respondi.

Ela riu.

— Ou os dois.

Luan era popular. Do tipo que todos queriam por perto, mesmo sem saber por quê. Ele jogava futebol, dizia o que queria sem medo, e sempre conseguia rir até das piores situações. Mas comigo, era diferente. O riso sempre vinha tenso. O olhar, sempre prolongado demais.

No fundo, eu sabia.

Luan escondia algo. E esse algo tinha a ver comigo.

Minha mãe, Kátia, era meu refúgio.

Desde pequeno, ela sempre foi meu porto seguro. Era daquelas mulheres que carregam o mundo nas costas, mas ainda têm colo para dar. Fazia três bicos para me manter na escola particular onde eu estudava com bolsa. Cozinhava à noite e estudava à tarde para concursos que nunca passava.

Ela dizia que meu pai tinha morrido quando eu tinha três anos. Um acidente de carro, segundo ela. Nunca entrei em detalhes. Nunca perguntei demais. A dor no olhar dela bastava.

— Você tem um coração bonito, Haru. Nunca deixe que o mundo te endureça — ela dizia, acariciando meu cabelo. — Amar é a coisa mais corajosa que se pode fazer.

Mal sabia ela o quanto eu ainda teria que lutar para continuar amando.

Foi numa tarde qualquer que tudo mudou.

Eu estava na biblioteca, revisando uma redação, quando ele entrou. Sozinho. Olhou ao redor e veio direto até minha mesa.

— Preciso de ajuda com literatura — disse, sem rodeios.

— Você…? Você lê?

— Não. Mas preciso passar na prova. Você é bom com palavras, não é?

Assenti, desconfiado. Ele puxou uma cadeira e se sentou à minha frente.

— Vamos fazer um trato — disse. — Você me ajuda com isso, e eu te ajudo com matemática. Ou com… sei lá, a vida.

Sorri, sem saber o porquê.

— E por que você acha que eu preciso de ajuda com a vida?

— Porque você olha o mundo como se estivesse tentando entender demais.

A partir dali, começamos a nos encontrar na biblioteca. No começo, só para estudar. Mas, com o tempo, as conversas se alongavam, os sorrisos aumentavam, e as pausas entre uma matéria e outra viravam confissões.

— Por que você sempre parece triste? — ele perguntou uma vez, enquanto folheava um livro sem realmente ler.

— Porque eu espero demais. Das pessoas. De mim mesmo.

— Eu também.

Naquela hora, ele não estava mais sorrindo. E pela primeira vez, vi Luan… vulnerável.

O primeiro toque aconteceu num sábado à tarde. Estávamos no terraço da escola, sozinhos, depois de uma simulação de olimpíada. Ríamos de uma piada interna quando nossas mãos se tocaram por acidente.

Mas ele não recuou. Nem eu.

Ficamos em silêncio, os dedos ainda encostados. E então ele me olhou.

— Você me assusta, Haru.

— Por quê?

— Porque com você, eu não consigo mentir.

— Então não minta.

Ele se aproximou. Devagar. Como se cada centímetro fosse um passo fora do mundo que conhecia.

E então, me beijou.

Foi suave. Inseguro. Mas verdadeiro.

Meu primeiro beijo. O dele também.

Nos afastamos, ofegantes, como se o ar tivesse mudado de densidade.

— Isso muda tudo — ele sussurrou.

— Só se você deixar.

Começamos a namorar escondido. Ele dizia que não podia contar para a família. Que não estavam prontos. Que nunca estariam.

Eu aceitei. Porque o amor, no início, é um bicho faminto. Aceita restos, migalhas, sobras — só para sentir que está vivo.

Passávamos horas em lugares abandonados, trocando carícias rápidas e olhares longos. Eu deixava bilhetes nos bolsos da jaqueta dele. Ele me roubava abraços no banheiro do colégio.

Minha mãe percebeu. E um dia, me chamou para conversar.

— É o Luan, não é?

Fiquei paralisado.

— Como você…?

— Mãe sabe. E eu te conheço. Quando você ama, seus olhos brilham como se estivessem contando segredos.

Ela segurou minha mão com firmeza.

— Se ele te fizer sorrir mais do que chorar, então vale a pena. Mas se o contrário acontecer… me promete que não vai se perder por ele?

Prometi.

Mas sabia, no fundo, que já era tarde.

...................................................................................

Estar com Luan era como andar na beirada de um penhasco.

Belo, excitante — e perigoso.

Havia algo nele que me puxava para mais perto, mesmo quando tudo dentro de mim gritava para recuar.

Os primeiros meses foram uma mistura de euforia e culpa.

Trocávamos mensagens escondidos, nos encontrávamos na saída da escola, mentíamos para quase todo mundo.

Mas quando estávamos juntos, sozinhos, o mundo inteiro desaparecia.

— Me promete que nunca vai me deixar? — ele sussurrou uma vez, com a cabeça apoiada no meu peito.

— Eu nunca faria isso.

— Mesmo se eu… te machucar?

Hesitei.

— Luan… por que você me machucaria?

Ele ficou em silêncio por um longo tempo. E então disse:

— Porque às vezes, eu mesmo não sei como te amar direito.

Na hora, não entendi.

Achei que fosse só mais uma insegurança. Uma daquelas frases profundas que adolescentes dizem quando se sentem expostos.

Mas não era.

A primeira briga aconteceu por causa de uma mensagem.

Um colega de sala — Caio — me mandou um áudio perguntando sobre a aula de física. Nada demais.

Mas Luan viu. E seu rosto se transformou.

— Quem é esse? — ele perguntou, seco.

— O Caio. Ele só perguntou sobre a prova…

— E por que está mandando áudio? Às nove da noite?

— Porque ele não entendeu o exercício?

Luan ficou em silêncio por um tempo, os olhos vidrados na tela do celular.

E então, sem aviso, apagou o áudio e bloqueou o número.

— Luan! — me levantei, assustado. — O que você está fazendo?

— Protegendo o que é meu.

Aquilo deveria ter me soado como um alarme.

Mas, ao invés disso, senti o coração bater mais forte.

Como se ser "dele" fosse, de alguma forma, uma medalha.

Ele me abraçou com força, colando sua testa na minha.

— Não quero que ninguém tire você de mim, Haru. Você é tudo que eu tenho de verdadeiro.

E, como sempre, cedi.

Porque amar Luan era isso: abrir mão de pequenos pedaços de mim mesmo, esperando que isso fosse amor também.

Com o tempo, ele começou a controlar mais coisas.

Quais amigos eu podia ver. Que roupas eu devia usar.

Chegava a vasculhar meu celular quando achava que eu estava "estranho".

E eu... deixava.

Deixava porque achava que era cuidado.

Porque crescer num mundo onde o amor é escasso nos ensina a aceitar migalhas como banquetes.

Minha mãe, com seu olhar afiado, percebeu.

— Ele te ama... ou quer te possuir? — perguntou uma noite, enquanto colocava a mesa.

— Mãe…

— Não. Me responde com sinceridade.

Fiquei em silêncio.

— Amor, Haru, é liberdade. Se você está preso, não é amor. É medo disfarçado.

Mas eu não queria ouvir aquilo.

Eu queria acreditar que era só o jeito dele.

Que ele me amava tanto que não sabia como lidar.

E, no fundo, queria ser amado por ele — custasse o que custasse.

A relação com a família de Luan, por outro lado, era como caminhar num campo minado.

A primeira vez que fui até sua casa, o clima era sufocante.

Seu pai mal me olhou nos olhos.

A mãe sequer sorriu.

— Eles acham que isso é só uma fase — Luan murmurou, depois que saímos. — Que logo eu “viro homem de verdade”.

— E o que você acha?

Ele me olhou como se a pergunta o machucasse.

— Eu só queria que eles me olhassem como olham pro meu irmão. Com orgulho.

Senti uma dor funda no peito.

Por ele. Por mim.

Por todos nós que só queremos ser aceitos como somos.

Certa tarde, após mais uma briga por ciúmes, Luan chegou na minha casa de surpresa.

Minha mãe o atendeu e, antes mesmo que eu descesse, ela o convidou para entrar.

— Senta, Luan — disse ela, firme. — Vamos conversar.

Ele pareceu desconfortável, mas obedeceu.

Eu fiquei parado na escada, escutando tudo.

— Eu vejo como você olha pro meu filho. E sei que você o ama. Mas o amor, Luan, não pode vir com dor. — Ela fez uma pausa. — Se você quer ficar com o Haru, vai ter que aprender a não feri-lo no processo.

Luan engoliu seco.

Fiquei esperando uma resposta agressiva. Um deboche. Mas não.

Ele abaixou a cabeça.

— Eu… não sei como não machucar.

Minha mãe estendeu a mão e tocou no ombro dele.

— Então aprenda. Porque meu filho não nasceu pra ser metade de ninguém. Ele é inteiro. E quem quiser estar com ele, vai ter que ser inteiro também.

Nunca me senti tão protegido e tão exposto ao mesmo tempo.

À noite, Luan me mandou uma mensagem:

"Sua mãe é incrível.

E eu… não sei se te mereço."

Respondi:

"Então aprenda a me merecer."

Mas dentro de mim, algo já começava a se partir.

Apesar de tudo, havia momentos bons.

Beijos longos no terraço. Abraços demorados no final das tardes.

Mensagens bobas antes de dormir.

Foi por causa desses momentos que eu permaneci.

Porque acreditava que, com tempo, amor curava tudo.

Mas o que eu não sabia era que, às vezes, o amor precisa se curar antes de poder curar alguém.

A história de Haru e Luan começava a ser construída sobre alicerces trincados: paixão intensa, inseguranças, ciúmes e medo.

E Haru, mesmo sabendo que estava se machucando, ainda acreditava que podia salvar aquele amor.

Ainda não sabia que, um dia, também precisaria ser salvo.

Gotas de Silêncio

Capítulo 2 – Gotas de Silêncio

As coisas entre mim e Luan não desmoronaram de uma vez.

Elas racharam.

Em silêncio.

Em pequenos gestos que, sozinhos, pareciam inofensivos — mas, somados, começaram a me sufocar.

No início, eu nem percebia.

Ou melhor, fingia não perceber.

Porque aceitar que algo tão bonito estava se transformando em dor… era admitir que eu havia me perdido nele.

Luan ainda era o mesmo garoto dos beijos intensos, das promessas sussurradas na varanda, das mensagens carinhosas no meio da madrugada.

Mas agora ele também era o garoto que pegava meu celular sem pedir.

Que sumia por horas e dizia que era “coisa da cabeça” quando eu perguntava.

Que me chamava de exagerado quando eu ficava triste.

Que pedia desculpas e dizia “é que eu te amo demais” quando me fazia chorar.

E eu acreditava.

Porque eu também o amava demais.

E amar demais, às vezes, é o primeiro passo pra se perder de si mesmo.

— Você tá diferente — Elisa comentou, uma manhã, enquanto eu mexia distraidamente no meu caderno de química.

— Tô cansado, só isso.

— Você sempre tá cansado. Tá pálido, quieto… Haru, o que tá acontecendo?

Balancei a cabeça, tentando disfarçar.

— Só ando dormindo mal. Muita coisa na cabeça.

Ela franziu o cenho.

— É o Luan, né?

Não respondi.

Ela suspirou e tocou minha mão com leveza.

— Eu gosto de você. De verdade. E fico com medo de você estar se apagando pra caber na vida de alguém que não sabe te iluminar.

Olhei pra ela, com os olhos marejados.

— Eu só quero fazer dar certo.

— Às vezes, fazer dar certo não é amar mais. É saber a hora de parar de se machucar.

Mas como parar de amar alguém que você acredita que pode melhorar?

Eu via o Luan inseguro. Cheio de feridas que a família ajudou a cavar.

Pais frios, um irmão perfeito que era o modelo que ele nunca conseguiu alcançar, e uma adolescência cheia de cobranças e vergonha.

Ele não se aceitava. E me amava com medo.

— Eu sou um erro — ele disse uma vez, com os olhos vermelhos de chorar. — Um erro ambulante. Você devia estar com alguém melhor. Alguém inteiro.

— Eu não quero alguém perfeito. Quero você.

Ele me abraçou com tanta força naquela noite, que achei que seu peito ia colar no meu.

E por um tempo, achei que aquilo bastava.

Até o dia em que ele me empurrou.

Foi num momento de raiva, depois de eu questionar uma conversa estranha dele com uma garota da sala.

Estávamos no terraço da escola, como sempre, onde ninguém nos ouvia.

— Você tá me chamando de mentiroso? — ele gritou.

— Eu só quero entender por que você falou com ela daquele jeito! Ela é minha amiga!

— Você tá paranoico!

— Então me prova que não tem nada acontecendo!

E foi então que ele me empurrou.

Não foi forte. Eu não caí.

Mas o gesto… o gesto queimou mais do que qualquer palavra.

Ficamos em silêncio.

Ele pareceu perceber o que fez assim que minhas lágrimas surgiram, silenciosas.

— Haru… eu… não era pra…

Me afastei.

— Já aconteceu.

Ele tentou me abraçar. Eu recuei.

— Eu te amo! — ele implorou.

— Então por que dói tanto?

Fiquei dois dias sem falar com ele.

Desativei minhas redes sociais, ignorei mensagens, evitei todos os lugares onde ele poderia estar.

Elisa tentou me distrair, mas eu estava um caco.

E foi nesses dias que minha mãe percebeu algo a mais.

— Você tem tido dores de cabeça frequentes?

Assenti.

— Tem se sentido fraco?

— Às vezes. Mas deve ser estresse.

Ela me olhou com aquele olhar de mãe que enxerga além.

— Vou marcar uma consulta. Só por precaução.

Na hora, revirei os olhos.

— Mãe, para. É só uma fase ruim.

Ela não respondeu. Apenas pegou o celular.

No fundo, eu sabia.

Alguma coisa não estava certa.

Mas naquele momento, tudo que eu conseguia pensar era em Luan.

No terceiro dia, ele apareceu na porta da minha casa.

Com flores.

E os olhos vermelhos.

— Me deixa explicar.

Minha mãe me olhou.

Eu respirei fundo.

— Tá. Cinco minutos.

Fomos até o quintal. Nuvem nos seguiu e deitou entre as plantas, como se entendesse que algo importante estava prestes a acontecer.

— Eu sou um lixo — ele começou. — Eu fui criado achando que amor era controle. Que carinho era fraqueza. Que homem de verdade não chora, não se apaixona por outro homem, não se entrega. E aí você apareceu.

Ele engoliu em seco.

— Você apareceu com esse seu jeito calmo. Esse olhar que vê tudo. Esse amor que não exige nada. E eu… eu entrei em pânico. Porque você me viu. Como ninguém nunca viu.

— E por isso você me machuca?

— Porque eu sou burro. Porque eu tenho medo de que você perceba que pode ter alguém melhor. Porque eu tô tentando aprender a te amar do jeito certo.

Hesitei. O coração lutando contra a razão.

— Eu não quero promessas, Luan.

— Não vou prometer. Mas quero tentar. Me deixa tentar?

O problema é que ele sabia dizer as palavras certas.

E eu ainda era viciado nelas.

O abracei.

E naquele abraço, me prometi que seria a última vez que deixaria o medo dele se tornar o meu.

Mal sabia eu quantas vezes ainda deixaria.

Na consulta médica, uma semana depois, a médica fez alguns exames e solicitou outros.

Os resultados vieram com uma interrogação preocupante: alterações no sangue, baixa imunidade, perda de peso inexplicada.

— Vamos investigar mais — disse ela, com cuidado. — Pode não ser nada grave. Mas precisamos de certeza.

Minha mãe segurou minha mão com força.

E por um segundo, o mundo pareceu se inclinar.

Mas não falei nada pra Luan.

Nem pra Elisa.

Não queria que ninguém se preocupasse.

Mal sabia que aquele seria só o início de uma nova tempestade.

Luan voltou a ser doce. Por duas semanas.

Me levava chocolate na escola. Escrevia bilhetes. Dizia que queria me apresentar a um primo distante “que era mais cabeça aberta”.

Eu me permiti acreditar que talvez… ele estivesse mudando.

Até que uma noite, recebi uma mensagem anônima.

Era uma foto.

Luan.

Com a mesma garota da sala.

Se beijando no pátio, à noite, perto da quadra.

Senti como se meu estômago tivesse sido arrancado.

Larguei o celular no chão.

Minha mãe entrou no quarto pouco depois e me encontrou chorando, encolhido.

— Haru! O que foi?

Mostrei a foto.

Ela não disse nada. Apenas me abraçou.

— Vai doer, meu amor. Mas passa. Eu juro que passa.

Mas não passou.

Não naquela noite.

Nem nos dias que seguiram.

Luan tentou negar.

Depois, tentou justificar.

— Eu tava confuso. Ela me forçou. Eu não sei o que tô sentindo.

— Você sabia o que estava fazendo, Luan!

— Eu te amo, Haru!

— Você não ama. Você fere.

E então, sem me deixar terminar, ele disse:

— Se você me deixar agora, vai se arrepender. Porque ninguém vai te amar como eu.

Olhei nos olhos dele.

E soube.

Aquele não era o menino que me fez sorrir no terraço.

Era alguém que me amava doente.

E que estava me arrastando com ele.

Mas eu ainda o amava.

Mesmo depois da traição.

Mesmo depois de tudo.

Era isso que me destruía por dentro: amar alguém que não me amava do jeito certo.

Amar alguém que me despedaçava… e depois pedia desculpas como se isso curasse os cacos.

E então, naquela madrugada, saí.

Sem rumo.

Sem guarda-chuva.

A chuva batendo no meu rosto como tapas gelados.

As luzes da rua borradas pelas lágrimas.

Desmaiei no meio da calçada.

O corpo sem forças.

A alma, mais ainda.

E então… alguém me encontrou.

O Início de Um Silêncio Diferente

Capítulo 3 – O Início de Um Silêncio Diferente

A primeira coisa que senti foi o cheiro.

Um perfume amadeirado, leve, misturado com algo doce. Lavanda, talvez.

Depois, veio a luz. Fraca, filtrada por cortinas escuras.

E então, o som de passos firmes, porém suaves, ecoando num ambiente muito mais silencioso do que qualquer hospital.

Tentei abrir os olhos, mas uma pontada aguda na têmpora me fez fechar de novo. O corpo inteiro doía, como se tivesse sido atropelado por um trem de emoções — e talvez eu tivesse mesmo.

Estava vivo. Mas não entendia por quê.

A última lembrança era da chuva. Do frio da calçada. Do gosto metálico do sangue que tossi.

E da ausência. Da certeza de que, se eu morresse ali, ninguém viria.

Mas alguém veio.

— Você acordou — disse uma voz masculina, calma, grave.

Abri os olhos devagar.

Havia um rapaz parado ao meu lado, vestido com uma camisa preta de mangas dobradas e calça de moletom escura. Os cabelos eram escuros e caíam levemente sobre os olhos intensos, como se carregassem segredos demais para alguém tão jovem.

— Onde eu tô? — murmurei.

— Em minha casa. Eu te encontrei na rua. Desmaiado. Vomitando sangue.

— Eu…

— Calma. — Ele levantou as mãos. — Não vou fazer nada com você. Já chamei um médico. Ele te deu soro, cuidou do que precisava. Você dormiu por quase dois dias.

— Dois… dias?

Tentei me sentar, mas o corpo protestou.

— Devagar. Você perdeu muito líquido. E peso.

— Por que você me ajudou?

Ele me encarou por um longo tempo, antes de responder.

— Porque você estava quebrado. E eu entendo como é isso.

Houve um silêncio denso. Como se aquelas palavras carregassem mais dor do que ele deixava transparecer.

— Meu nome é Renji.

— Haru.

Ele assentiu, como se já soubesse.

— Eu sei quem você é. E sei quem te quebrou.

Arregalei os olhos.

— Você… me conhece?

Ele respirou fundo, puxando uma cadeira e se sentando ao meu lado.

— Não pessoalmente. Mas… digamos que eu tenho olhos espalhados. Sou… filho de alguém que precisa saber de tudo. Por segurança.

— Você é… mafioso?

Ele riu. Um riso seco, sem graça.

— Não. Meu pai é. Eu sou só um cara tentando sobreviver no meio disso.

— E por que está me ajudando?

— Porque eu vi você. Naquela noite. Chorando. Gritando por dentro. Mesmo sem emitir um som.

Fechei os olhos. A vergonha queimava mais do que a febre.

— Você não tinha o direito de me seguir.

— Talvez não. Mas ainda assim, eu te carreguei nos braços até aqui.

E fiquei. A noite toda. Porque alguém precisava.

Renji me deu tempo. Não fez perguntas demais. Nem esperou respostas.

Apenas deixava comida perto da cama, controlava a temperatura do quarto, e aparecia para checar se eu precisava de algo.

Não tentava arrancar minha dor. Só… ficava por perto.

E isso, para alguém como eu, era mais do que qualquer cura imediata.

— Você vai voltar pra casa? — ele perguntou, no quarto dia.

— Não sei se tenho uma casa pra onde voltar.

— Sua mãe…

— Morreu. Há alguns meses.

Renji assentiu em silêncio.

— E o seu… namorado?

Engoli em seco.

— Ainda é complicado.

Ele não insistiu. Apenas disse:

— Quando quiser ir embora, eu te levo. Mas se quiser ficar mais um pouco, o quarto é seu.

Olhei ao redor. O lugar era diferente de tudo que eu conhecia.

As paredes não tinham quadros, mas haviam livros por toda parte.

As janelas tinham grades de ferro, mas cortinas de linho macio.

O caos da casa contrastava com a delicadeza dos detalhes. Como Renji.

— Por que você parece tão… gentil?

Ele riu de novo. Dessa vez, com mais sinceridade.

— Porque crescer em um mundo de brutalidade me fez ter certeza de que eu não quero fazer parte dele.

Ser gentil… é minha forma de resistir.

Naquela noite, não consegui dormir.

Fiquei olhando para o teto por horas, ouvindo o som do vento batendo nas janelas.

Me levantei e encontrei Renji na cozinha, fazendo chá.

— Camomila? — ele perguntou.

Assenti.

Nos sentamos em silêncio por um tempo.

— Você ainda o ama, né? — ele perguntou, sem olhar pra mim.

— Amo.

— Mesmo depois de tudo?

— Justamente por tudo.

Ele não respondeu de imediato. Depois, disse:

— O amor… não deveria doer tanto.

— Eu sei. Mas às vezes, você se acostuma tanto com a dor que acha que é isso que merece.

Renji apertou a xícara com mais força.

— Você merece mais.

— E você? — perguntei. — Já amou?

Ele ficou quieto por um tempo, antes de responder:

— Já. Uma vez.

Mas a vida nos levou pra lados opostos.

— E ainda dói?

— Menos do que antes. Mas não some.

Tomamos o chá até o fim, em silêncio.

E foi nesse silêncio que começamos a nos curar.

Fiquei na casa de Renji por mais de uma semana.

Aos poucos, voltei a comer. A dormir. A sorrir um pouco.

Mas dentro de mim, uma guerra silenciosa ainda acontecia.

Porque, mesmo com tudo que Luan havia feito, eu ainda esperava que ele… sentisse minha falta.

E ele sentiu.

Na manhã em que decidi voltar para casa, encontrei Luan na porta do meu prédio.

— Por que você sumiu? — ele disse, os olhos fundos, o cabelo bagunçado.

— Você sabe por quê.

— Não atende minhas ligações. Não responde minhas mensagens.

— Porque você me traiu.

— Eu não queria…

— Mas fez.

Ele tentou se aproximar. Dei um passo para trás.

— Haru… eu errei. Mas eu te amo.

— Você me ama como? Do seu jeito? Porque seu jeito me destrói.

— Você… vai me deixar?

— Eu já deixei. Só você não percebeu.

Fechei a porta com força.

E, do outro lado, ele gritou:

— Você nunca vai encontrar alguém que te ame como eu!

Do lado de dentro, sentei no chão.

A mão trêmula. A respiração pesada.

E tossi.

Tossi forte.

Tossi sangue.

E, mais uma vez, tudo escureceu.

Quando abri os olhos, estava de volta ao hospital.

Renji segurava minha mão.

O rosto dele estava coberto de preocupação.

— Você teve um colapso. A médica disse que você está anêmico. E que seu sistema imunológico está… frágil demais.

— O que eu tenho?

— Ainda não sabem. Mas… é sério.

Fechei os olhos.

— Eu… tô cansado, Renji.

— Eu sei. Mas você não tá sozinho. Eu tô aqui.

Mesmo que de longe, mesmo que você não me queira por perto.

Eu vou cuidar de você.

Nos dias que seguiram, Renji passou a me visitar com frequência.

Não me cobrava nada. Só ficava lá.

Às vezes, lendo em voz alta. Às vezes, só me ouvindo.

E aos poucos, meu corpo foi melhorando.

E algo em mim também.

Não era amor.

Ainda não.

Mas era paz.

E depois de tudo que vivi… paz parecia o primeiro passo para voltar a existir.

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