A Primeira Chama Não Queima: Ela Marca
— Você tem três ciclos restantes. Talvez menos.
A voz do Guardião de Cinzas soou como um trovão calmo no salão dourado.
Ela não respondeu.
Apenas olhou para a ampulheta invertida à sua frente, onde a areia escarlate corria lentamente — cada grão, uma lembrança. Cada queda, um passo a menos até o fim.
—
Na Terra de Aurenys, os Imortais Flamejantes não envelheciam.
Eles queimavam.
Renasciam das cinzas.
E a cada renascimento, perdiam algo da vida anterior: um nome, uma memória, um amor.
Mas ela não queria esquecer.
Ela queria lembrar de tudo.
Principalmente da traição.
—
Seu nome era Calanthe.
Companheira de Chama do Comandante Aric Solmar, um dos mais respeitados líderes do Norte.
Vinculados desde a Primeira Cerimônia, ela havia queimado com ele em três renascimentos.
Sempre juntos.
Sempre fiéis.
Ou assim ela acreditava.
—
Tudo mudou quando Calanthe salvou Aric durante o Cerco de Kharon.
Ele estava prestes a queimar de forma final — sem possibilidade de retorno.
E ela, desafiando as leis antigas, entregou parte de sua Essência Vital para impedir sua extinção.
O preço?
A ruptura do equilíbrio.
Desde aquele dia, seu corpo queimava devagar.
Por dentro.
De forma invisível.
O vínculo entre os dois se desequilibrou.
Aric ficou mais forte.
E ela… começou a morrer.
—
— Três ciclos… — ela repetiu em voz baixa, encarando o reflexo da chama viva em seus olhos.
— Não há cura, Calanthe — disse o Guardião. — O que você deu… não pode ser devolvido. E ele já se uniu a outra.
— Eu sei.
— Você poderia renascer, se aceitasse o Fogo Final.
— Não.
— Por quê?
Ela olhou para o céu escurecendo pela vidraça alta do santuário.
— Porque ainda não terminei de queimar.
—
Naquela noite, Calanthe voltou para a antiga fortaleza onde vivia com Aric.
Ninguém a esperava.
Era o aniversário da União de Chama deles.
Três ciclos atrás, ela havia preparado um banquete com pétalas incendiadas e vinho de brasa.
Ele havia prometido que nunca se afastaria dela.
Agora, a cozinha estava silenciosa.
O grande salão escuro.
O quarto… vazio.
—
Calanthe acendeu a lareira com um sopro.
A madeira queimou lentamente, como seu peito.
Sentou-se à mesa e deixou o vinho escorrer entre os dedos.
Era simbólico.
Tudo sempre foi.
Ela esperou até o tempo ultrapassar meia noite.
Aric não voltou.
Mas ela já sabia.
Ela sentia.
A Marca de Chama ainda ardia em sua nuca — e mesmo sem vê-lo, ela sentia quando ele se deitava com outra.
Não por ciúmes.
Mas porque, em cada toque, ele sugava um pouco mais do fogo que ela havia lhe dado.
—
Ela subiu as escadas com as pernas trêmulas.
Não de dor.
De raiva contida.
Sentou-se no antigo escritório — o mesmo onde, anos atrás, escreveram seus votos de união em pergaminhos dourados.
Agora, ali, ela encontraria sua nova forma de vingança.
As palavras.
Puxou o papel grosso e a pena de prata.
Respirou fundo.
E escreveu.
Carta 1 — Ao homem que ainda carrega minha chama, mesmo depois de me apagar
Você me pediu minha força.
E eu dei.
Você me pediu minha alma.
E eu entreguei.
Você me pediu silêncio.
E por amor… eu calei.
Mas agora, peço apenas que leia.
Leia com o peso que eu carrego.
Leia com a lembrança de cada noite em que esperei.
Hoje seria nosso aniversário.
Mas você não voltou.
Você não quebrou a promessa…
Você a queimou.
Essas palavras são meu último fogo.
E eu prometo —
Você vai queimar com cada uma delas.
Assinou com sua própria essência, pingando uma gota de chama viva no papel.
As letras se acenderam levemente.
Ela selou o envelope e chamou sua guardiã:
— Leve esta carta a ele.
Mas entregue apenas quando ele estiver sozinho.
A mulher assentiu.
— E quando quiser que eu envie a próxima?
Calanthe olhou pela janela. A lua refletia no lago de brasas ao longe.
— Quando ele dormir com ela de novo.
A Chama que Arde Mesmo Longe
O quarto de Aric cheirava a mirra e cinzas frescas.
O corpo de Laedra ainda estava enroscado ao dele, mas a pele dela, fria após o calor, não acalmava a inquietação que crescia dentro dele.
Ele não conseguia dormir.
E isso não era comum.
Era noite de lua cheia — o auge do poder de um Comandante.
Mas em vez de sentir força, ele sentia…
Falta.
Laedra virou-se, sorrindo preguiçosa.
— Ainda pensa nela?
— Não — respondeu rápido demais.
Ela se levantou nua, o cabelo cor de cobre caindo pelas costas.
Pegou a túnica leve e amarrou na cintura com um sorriso ensaiado.
— Se pensa, tudo bem.
Só não minta pra mim, Aric.
Não sou tola como ela era.
— Calanthe não era tola.
A frase saiu antes que ele percebesse.
O silêncio entre os dois se estendeu.
Laedra encarou-o de forma dura.
Depois, riu sem humor.
— É sempre assim com os homens marcados.
Vocês se apaixonam por quem dá tudo…
E depois abandonam porque não sabem o que fazer com alguém que não precisa de vocês.
Ela saiu, batendo a porta com força.
—
Aric ficou sozinho.
O brasão do Comando Flamejante estava pendurado acima da lareira — uma chama dourada com duas espadas cruzadas.
Mas aquela sala parecia menos quente do que antes.
Havia cinzas demais.
—
Foi então que um envelope foi deslizado por debaixo da porta.
Sem selo real.
Sem brasão.
Somente uma pequena inscrição, escrita em prata:
“Para Aric Solmar. Quando estiver sozinho.”
Ele hesitou.
Mas as mãos abriram sozinhas.
O papel queimava levemente nas bordas — a marca da assinatura de Calanthe.
As letras, quando lidas em voz baixa, vibravam dentro do peito.
Como se tivessem alma.
Como se fossem vivas.
“Você me pediu minha força.
E eu dei.
Você me pediu minha alma.
E eu entreguei...”
A cada linha, a lembrança vinha como uma labareda.
O sangue no campo de batalha.
O momento em que sentiu sua alma escapando…
E ela, Calanthe, ajoelhada diante dele, com a palma da mão em chamas, unindo a dele à dela, selando o salvamento.
O calor… a salvação… e o peso.
Ele segurou a carta com mais força.
“Hoje seria nosso aniversário.
Mas você não voltou.
Você não quebrou a promessa…
Você a queimou.”
As últimas palavras arderam como se tivessem sido escritas com ferro quente.
Ele se levantou num impulso, empurrando a cadeira para trás.
Olhou em volta.
Sozinho.
Mas sentia.
Como se ela ainda estivesse ali.
Na lareira.
Na madeira.
No ar.
A Marca de Chama no fundo da nuca começou a pulsar.
Ele passou a mão por cima.
Não estava com febre.
Mas seu corpo tremia.
—
No dia seguinte, Aric compareceu ao Conselho das Chamas.
Olhares o seguiam.
Todos sabiam da união recente com Laedra — filha de um General do Leste, politicamente vantajosa.
Mas ninguém ousava mencionar Calanthe.
Ela estava sumida.
E muitos diziam que havia aceitado o Fogo Final, o renascimento da morte sem memória.
Aric sabia que não era verdade.
Porque ele ainda sentia.
A cada vez que fechava os olhos.
—
Naquela noite, Laedra retornou.
Tentou envolvê-lo novamente.
Mas algo havia mudado.
Ele não conseguia tocar nela sem pensar na carta.
Nas palavras.
Na dor silenciosa.
Na força de quem o salvou… e agora morria sozinha.
—
Do lado de fora, uma figura encapuzada observava a janela da fortaleza.
Era a serva de Calanthe.
Ela carregava a segunda carta.
Mas ainda não a entregaria.
Não enquanto ele não sentisse a primeira queimando o suficiente.
A Dor Também Se Alimenta
O fogo não fazia mais calor.
Mesmo envolta em mantas de linho vulcânico, Calanthe sentia os ossos tremerem.
Era estranho, ela pensava, como alguém que havia carregado o poder da chama viva podia agora ser consumida pela ausência dela.
—
— Não dormiu? — sussurrou sua guardiã, Selis, uma imortal das cinzas com olhos de vidro e voz de névoa.
Calanthe sorriu, fraca.
— Dormir é para quem quer esquecer.
— E você?
— Eu quero lembrar.
—
Naquela manhã, Calanthe desceu até o Santuário das Chamas Esquecidas — um espaço proibido para os vivos que nunca renasceram.
Ali, havia brasas que não queimavam mais.
Cinzas de rituais antigos.
Fragmentos de histórias malditas.
Ela se ajoelhou no centro do círculo.
Selis entregou a ela a faca de prata.
— Tem certeza?
Calanthe assentiu.
Cortou a palma da mão esquerda, deixando cair três gotas de sangue no recipiente de pedra.
As brasas adormecidas piscaram.
E uma fumaça vermelha começou a subir.
Ela cantou, com a voz embargada:
“Do meu sangue, faço tinta.
Da minha dor, a sentença.
Que esta carta chegue não como lembrança…
Mas como espelho.”
—
Mais tarde, em seu quarto, Calanthe abriu a gaveta de madeira escura.
Ali, guardava uma única pétala vermelha, seca, protegida por um véu de vidro encantado.
— Foi da nossa primeira oferenda juntos… — murmurou.
A pétala era de uma flor rara chamada Coral de Fogo, que só nascia uma vez por ciclo, nas margens do Lago Ígneo.
Naquele dia, Aric havia prometido amá-la por todas as suas vidas.
Ela segurou a pétala com delicadeza.
— Você prometeu.
E então escreveu.
Carta 2 — A Pétala Que Você Esqueceu
Eu me lembro do dia em que você colheu essa flor.
Você cortou o dedo no espinho e riu, dizendo que mesmo sangrando… valia a pena me ver sorrir.
Eu guardei essa pétala, Aric.
Não por romantismo.
Mas porque, no fundo, eu sabia que um dia teria que te lembrar quem você foi…
Antes de me matar aos poucos.
A morte que você me deu foi diferente.
Não foi rápida.
Foi silenciada.
Foi assistida.
E, pior… foi justificada.
Você dizia que me amava.
Mas amor não pede que se doe tudo e receba nada.
Amor não recusa o corpo cansado de quem te salvou… para buscar prazer em quem nunca te curou.
Eu estou morrendo, Aric.
E antes que o fogo me tome, quero que saiba:
Essa pétala ainda carrega seu toque.
Mas agora, ela carrega minha dor.
E cada vez que você tocá-la… sentirá a culpa queimando em seus ossos.
Queime com ela.
Calanthe soprou a tinta seca com um feitiço sussurrado.
A carta brilhou em tom rubro e a pétala pousou suavemente sobre o envelope.
Selis estava em silêncio.
— Leve para ele.
E deixe no local mais íntimo.
Onde ele menos espera… e onde mais se esconde dele mesmo.
— Onde?
Calanthe sorriu, com tristeza.
— Na biblioteca.
Ele só entra lá quando quer fingir que ainda é nobre.
—
Naquela noite, Selis entregou a carta às sombras.
Deixou-a entre dois livros que só Aric lia.
E quando ele a encontrasse, dias depois, não seria só a leitura que o queimaria…
Seria o cheiro da pétala, ainda viva.
O toque da memória.
O gosto da culpa.
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