As torres de Velarim se erguiam entre as brumas como ossos de um gigante antigo. O céu estava cinzento, como sempre, mas naquela manhã algo no ar parecia diferente. A névoa, densa como seda molhada, recuava aos poucos diante dos passos de Lyanna.
O manto vermelho que usava balançava com o vento, e seus olhos âmbar observavam tudo com uma mistura de fascínio e desconfiança. Ela não estava ali por vontade — tinha sido chamada. Um convite disfarçado de ordem.
O palácio dos Portadores era frio, severo, como se desconfiasse de quem ousasse sonhar.
— Nome? — perguntou uma sentinela encapuzada.
— Lyanna de Mareen. — Sua voz soou firme, embora seus dedos tremessem sob o tecido.
A sentinela assentiu e se virou. E foi então que ela o viu.
Encostado à sombra de uma pilastra, braços cruzados, estava um homem alto, de armadura escura como as cinzas de um incêndio. Os olhos dele eram pálidos, quase prateados — e sem nenhuma centelha de acolhimento. Seu semblante era o de alguém que já enterrara esperanças demais.
— Esse é Kael. Ele será seu guardião durante o treinamento.
Lyanna arqueou uma sobrancelha.
— O lobo negro de Tarth? — sussurrou, sem conseguir esconder o tom ácido.
Kael a observou por um segundo longo demais, depois falou com voz rouca e baixa:
— Espero que não chore fácil. Não sou babá de princesa.
Ela sorriu, mas foi um sorriso frio como lâmina.
— E eu não sou flor que se murcha fácil, lobo.
Por um instante, o silêncio entre eles ganhou peso. A névoa pareceu hesitar ao redor dos dois.
Dois opostos: um moldado por dor e sombras, o outro, por amor e instinto.
Ainda não sabiam, mas aquela colisão mudaria não apenas o destino de Velarim — mas o deles mesmos.
[Ecos na floresta sombria]
Do lado de fora dos muros de Velarim, a floresta chamada Voldren era considerada território proibido. Diziam que era onde os sentimentos rejeitados tomavam forma — onde a dor não expressa virava carne e uivo.
Mas foi para lá que Lyanna e Kael foram enviados.
Missão de iniciação: recuperar um Fragmento de Essência escondido no coração da floresta.
Simples, em teoria. Mortal, na prática.
O silêncio da floresta era vivo. As árvores tinham galhos retorcidos, como mãos em oração ou ameaça. Lyanna andava com passos firmes, mas seus olhos não paravam de sondar a névoa azulada que se arrastava pelo chão.
— Isso está... se movendo? — ela sussurrou, estreitando os olhos.
Kael, à frente, parou. Seus ombros endureceram.
— Não se mexa.
Foi então que viram.
Do nevoeiro, surgiram criaturas feitas de sombra líquida — com olhos brancos e vazios, bocas costuradas e corpos que pareciam fumaça congelada.
— Ecos... — Kael rosnou. — Criaturas formadas por dor não dita. Provavelmente atraídas por você.
— Por mim?! — ela deu um passo atrás.
— Está com medo, está insegura, está com raiva... tudo isso grita para elas. — Ele sacou a lâmina escura que carregava nas costas. — Se quiser sobreviver, se acalme. Agora.
Lyanna tentou respirar fundo, mas um dos Ecos avançou. Ela ergueu as mãos por instinto — e uma rajada de luz avermelhada explodiu do peito dela, como um batimento de coração que virou fogo.
Os Ecos recuaram por um segundo. E Kael a olhou como se visse algo... perigoso.
— Você tem mais poder do que aparenta.
Ela olhou para as próprias mãos, ainda tremendo.
— E você tem menos paciência do que deveria — rebateu, ofegante.
Um Eco saltou em sua direção, rápido demais.
Ela não conseguiria se defender a tempo.
Mas Kael estava lá.
Em um movimento quase animal, ele se jogou na frente dela, cravando a espada no peito da criatura que se dissolveu em cinzas. A lâmina cortou, mas a raiva dele cortava mais.
Ela caiu sentada no chão, o coração disparado. Ele encarou-a, ainda em pé, estendendo a mão.
— Da próxima vez, espera minha ordem.
Ela olhou para a mão dele. Forte, calejada. Mas ali, por um breve momento, havia calor.
Aceitou.
E por dentro, algo nela mudou.
Eles eram opostos. Mas naquela floresta, haviam respirado o mesmo medo. E isso os uniu — ainda que nenhum deles quisesse admitir.
A noite caiu sobre Velarim como um manto de veludo espesso. As tochas do portão externo projetavam sombras longas, dançando nos rostos dos guardas. Quando Lyanna e Kael atravessaram os portões da cidadela, traziam consigo mais do que o Fragmento de Essência — carregavam silêncio, cansaço... e algo invisível, porém pesado: o início de uma conexão que nenhum dos dois queria admitir.
— Você está ferido — disse Lyanna, encarando o rasgo no ombro dele.
— Não é nada. — Kael desviou o olhar.
— Ainda assim. — Ela tirou um frasco do manto. A luz vermelha do líquido brilhou como rubi. — Isso pode ajudar.
Ele hesitou. Quando finalmente aceitou, não disse "obrigado", mas ela viu nos olhos dele uma faísca de reconhecimento.
Dentro da torre dos Portadores, os instrutores os esperavam. Mestre Silen, um ancião de olhar calmo e voz firme, recebeu o Fragmento com mãos trêmulas de reverência.
— O Essencial foi recuperado. E ambos voltaram vivos — murmurou. — Mas há algo mais... algo mudou.
Kael manteve-se em silêncio. Lyanna, porém, falou:
— Fomos atacados por Ecos. Não apenas um... uma alcateia inteira. Como se algo... os chamasse.
Silen a observou por um longo tempo.
— Você sente mais do que mostra, menina. Isso é perigoso. Os Ecos são atraídos pela intensidade. Sua Essência Vermelha está desperta, e com ela... virão provações.
— Eu não sou um fardo — ela disse, sem desviar os olhos.
— Isso ainda veremos.
Mais tarde, sozinha nos aposentos de pedra fria, Lyanna encarava a lareira acesa. Seus dedos tocavam o colar que usava desde pequena — um cristal opaco que, naquela noite, pulsava leve, como se tivesse um coração próprio.
A porta rangeu.
— Não gosto que me sigam — disse ela, sem se virar.
— Não sou seu guarda agora. Só estou... curioso. — Era Kael. A voz mais baixa, menos áspera.
— Curioso?
— Sobre como alguém pode enfrentar a floresta... e ainda se preocupar se o outro está ferido.
Ela riu, cansada.
— Não se engane, Kael. Eu me preocupo com as pessoas. Mas também aprendi a deixá-las ir quando preciso.
Ele se aproximou da luz do fogo. Havia algo quebrado nele... mas algo que, talvez, quisesse ser consertado.
— E se alguém... não quiser ser deixado?
Lyanna o olhou pela primeira vez sem as defesas. E respondeu sem voz, apenas com o olhar:
Então lute para merecer ficar.
Kael se sentiu pela primeira vez em muitos anos esperançoso com a resposta recebida, mas a insegurança que habitava no seu coração é o medo de se permitir sentir era maior que a certeza de tentar proteger o que lhe tinha de valor.
Numa luta contra si mesmo de ficar mais um pouco e ir embora, ele decidiu-se enfim deixa-la descansar e fazer o mesmo.
— Boa noite Lyanna, descanse um pouco hoje foi bastante exaustivo para se torturar a manter os olhos abertos.
— Não irei isso posso garantir e agradeço a preocupação, desejo que faça o mesmo e tenha um ótimo descanso também.
Dando uma última olhada em Lyanna, kael se foi refletindo as suas palavras e lutando contra os seus próprios pensamentos.
O cristal no colar de Lyanna continuava a pulsar suavemente, como um sussurro. Era a primeira vez que ela o sentia tão vivo — como se algo dentro dela, enterrado por anos, estivesse finalmente acordando.
Ela se sentou diante do espelho antigo do quarto e encarou sua imagem. Não via mais a jovem que deixara Mareen, com os olhos cheios de dúvidas e esperança.
Agora, via alguém em transição. Uma faísca prestes a se tornar chama.
Fechou os olhos.
E mergulhou.
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Havia uma câmara de meditação escondida sob a torre leste. Diziam que ali, o tempo era mais lento. O espaço entre o que se sente e o que se é tornava-se tênue.
Ela se ajoelhou sobre o círculo de pedra marcado com runas antigas. Respirou fundo. E deixou o poder fluir.
Imagens surgiram.
🌹 A pequena Lyanna, sentada sob uma macieira, lendo contos sobre heroínas que salvavam reinos com o coração e não com a espada.
🌹 A mesma garota, aos 12, chorando escondida quando o pai disse que sentir demais era fraqueza.
🌹 Aos 16, apaixonada pela primeira vez — por alguém que a viu como um “sonho bonito”, mas nunca quis tocá-la de verdade.
🌹 Aos 19, percebendo que seus sentimentos eram sua força — não sua fraqueza. Que sua empatia, sua paixão, sua coragem de amar profundamente… era o que a tornava rara.
— Você não é só emoção, Lyanna — murmurou a voz do cristal em sua mente. — Você é foco em meio à paixão. Você transforma dor em poder.
Uma lágrima escorreu, mas ela sorriu.
Ela era a chama em um mundo de cinzas.
"Lembranças"
[O Lobo Que já Amou Demais]
Enquanto Lyanna meditava, Kael caminhava sozinho pela muralha oeste, onde o vento era mais cruel. Ele gostava do frio — o frio o impedia de lembrar que era feito de sangue e carne, e não apenas de aço.
Mas naquela noite, lembrar era inevitável.
Ele viu a fogueira ao longe e se perdeu no passado.
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O Reino de Tarth era cheio de flores quando Kael era jovem. Antes das guerras, antes da maldição, antes de... Ela.
Seu nome era Elyra.
Tinha cabelos dourados e alma de trovão. Elyra era tudo o que ele não era: esperança, luz, sorriso fácil. Lutava com arco e coração aberto.
Ela amou Kael sem medo — mesmo quando ele se recusava a admitir que também a amava.
Kael só se abriu quando já era tarde.
Numa emboscada, ela morreu protegendo civis. Ele chegou a tempo de ver os olhos dela se fecharem.
Naquela noite, ele gritou tanto que quebrou a própria Essência. O espírito-lobo selado em seu peito se manifestou para salvar sua vida, mas a um custo:
Toda emoção forte agora ameaçava libertar a fera dentro dele.
Desde então, Kael se fechou.
Decidiu que nunca mais amaria.
Porque amar era fraqueza.
E fraqueza, para ele, era morte.
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Mas agora havia Lyanna.
Ela o olhava como Elyra olhava.
Ela sentia como ele sentiu um dia.
E isso o aterrorizava.
Ele sabia que, se se entregasse de novo, a besta acordaria.
E talvez... destruísse tudo.
Mas parte dele já estava cedendo.
E outra parte… já tinha cedido.
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