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O Coração da Caçadora

Capítulo 1 - Ecos do Vento Antigo

O mundo além do véu era feito de silêncio.

Não o tipo de silêncio tranquilo que se encontra nas madrugadas — mas o silêncio que se arrasta como um lamento antigo, enterrado sob camadas de tempo e morte.

Selene parou no alto da colina rochosa, o olhar fixo nas sombras que se estendiam em todas as direções. O vento, gelado e denso, não trazia cheiro de vida. Nenhum som de pássaros, nenhuma folha dançando. Apenas a quietude pesada de um mundo esquecido pelos deuses.

As árvores — retorcidas, secas, como ossos queimados — permaneciam imóveis, como se também tivessem desistido de existir. O céu acima era um manto vazio, sem estrelas, sem lua. Apenas um breu espesso que pressionava o peito.

Kael observava à frente, a mão pousada sobre a empunhadura da espada. Ele estava mais quieto do que o normal, os olhos dourados analisando o horizonte. Seu silêncio era um aviso por si só.

“Tem algo errado com esse lugar,” murmurou Ariadne, quebrando a tensão. “Nada vive aqui. Nem mesmo a magia.”

“É como se ela tivesse sido arrancada… até a última gota,” disse Maya, ajoelhando-se junto a uma árvore carbonizada. Tocou o solo com a ponta dos dedos e estremeceu. “É frio. Vazio. Como se tudo o que um dia foi… tivesse sido sugado.”

Desde que atravessara o portal com as irmãs, Selene carregava um peso invisível nos ossos — como se o próprio mundo ao redor sussurrasse segredos que ela não conseguia entender. Ou que não estava pronta para ouvir.

Kael os encontrou depois, surgindo das sombras como se sempre soubesse onde elas estariam. Mas nem mesmo ele parecia em paz naquele lugar esquecido pela luz.

Mas havia algo mais.

Uma pulsação estranha, enterrada sob a pele. Um arrepio que vinha sem motivo, e que se intensificava quando olhava para as irmãs. Como se seus destinos estivessem entrelaçados por fios invisíveis. Mas nenhum deles sabia como, ou por quê.

“Esse lugar já teve outro nome,” disse Kael, finalmente. Sua voz era grave, mas baixa — como se temesse acordar alguma coisa adormecida. “Era um santuário feérico, onde o véu entre os mundos era mais fino. Mas agora…”

“Agora é só um túmulo,” completou Ariadne.

Selene fechou os olhos. Em sua mente, imagens difusas surgiam — um campo iluminado por estrelas, uma torre caída, uma voz de mulher cantando uma canção sem fim. Mas quando tentava se concentrar, tudo se dissipava como névoa.

Ela não sabia que, naquela noite, um feitiço antigo pulsava em suas veias — silencioso, escondido, mas vivo. Um feitiço lançado anos atrás por Elaine, que agora começava a despertar.

“Vamos seguir por aquela trilha,” disse Kael, apontando para uma ravina escura entre duas colinas. “Se ainda houver respostas neste mundo, é lá que elas estarão.”

“Respostas sobre o quê?” perguntou Maya.

Kael hesitou. Seus olhos encontraram os de Selene, e por um instante, ela viu a sombra da verdade — e do medo.

Mas ele desviou o olhar.

“Sobre o que foi tirado deste mundo. E talvez… sobre o que foi escondido de vocês.”

Selene sentiu o coração acelerar. A verdade parecia tão próxima — mas ainda fora de alcance. Como uma estrela escondida atrás de nuvens eternas.

Algo dentro dela se agitou. Algo antigo. Algo dela.

E sem saber por quê, ela deu o primeiro passo na direção da escuridão.

Capítulo 2 - A Trilha dos Ecos

A trilha era estreita e irregular, coberta por raízes secas e poeira que não se movia com o vento. Era como se até o tempo tivesse parado ali, preso em um suspiro que jamais foi solto.

Selene caminhava em silêncio, os passos cuidadosos, como se temesse acordar algo adormecido sob o solo. Ao seu lado, Maya mantinha os olhos atentos às marcas nas pedras — fragmentos de inscrições antigas riscadas por alguma civilização perdida. Já Ariadne seguia à frente, com a mão firme no cabo da adaga, pronta para reagir a qualquer ameaça, mesmo que o lugar parecesse abandonado há séculos.

Mas nada ali parecia realmente morto. Apenas... suspenso.

Kael caminhava por último, em silêncio. Selene o sentia como uma presença constante, quase protetora, mas também estranhamente distante — como se ele soubesse mais do que dizia. Como se aquele mundo tivesse histórias demais para contar… e feridas demais para abrir.

“Essas marcas...” Maya se ajoelhou diante de uma pedra parcialmente enterrada na terra escura. Passou os dedos sobre os traços finos, cobertos de poeira. “São feéricas. Muito antigas.”

“Consegue ler alguma coisa?” perguntou Selene, se aproximando.

Maya assentiu lentamente, franzindo o cenho. “Estão fragmentadas… mas uma palavra aparece mais de uma vez: liraeth.”

Selene sentiu um arrepio. A palavra soava familiar. Ela não sabia de onde, mas o som dela ressoava em seu peito como um eco esquecido. Liraeth.

“A palavra tem vários significados,” explicou Maya, em voz baixa. “Mas em antigas lendas, era associada à perda… e ao chamado do que está esquecido.”

“Ou de quem foi esquecido,” murmurou Kael.

Selene tocou a pedra. Um leve tremor percorreu seus dedos. Quente, por um instante — como se a rocha tivesse vida. Um brilho pálido brotou sob sua pele, e uma imagem cruzou sua mente: uma floresta prateada, uma mulher envolta em luz, um arco feito de estrelas.

Ela recuou com um suspiro entrecortado.

“Você viu algo?” Kael perguntou, se aproximando, os olhos fixos nela.

“Eu… não sei,” Selene murmurou. “Foi rápido. Uma visão, talvez.”

“É sua magia,” disse Maya, se erguendo devagar. “Ela está tentando te mostrar alguma coisa.”

“Mas eu não consigo controlar isso,” respondeu Selene. “É como se algo dentro de mim estivesse tentando acordar... e eu estivesse com medo de deixá-lo sair.”

“Talvez porque você sinta que, quando sair, não haverá volta,” disse Ariadne, sem se virar. “Talvez você ache que vai deixar de ser você.”

O silêncio caiu entre elas por um momento.

Selene sabia que Ariadne tinha razão. Mas havia algo além do medo agora. Algo mais forte.

Um chamado que vinha do sangue. Do coração.

Kael avançou alguns passos na trilha, então parou. Seu olhar fixou-se em algo à frente.

“Ali,” disse ele. “Um altar.”

As irmãs se aproximaram. O altar era simples, feito de pedra negra, rachado em várias partes. No centro, havia um símbolo gravado — um círculo com quatro linhas cruzadas, e ao centro, uma estrela de oito pontas.

Selene se aproximou devagar. Ao tocar o símbolo, o vento parou. O mundo prendeu o fôlego.

E então, a estrela brilhou.

Um brilho suave, prateado, como luz de luar refletida em água. As rachaduras da pedra brilharam também — e uma onda de energia percorreu o solo, como se o mundo ali reconhecesse algo. Ou alguém.

Ariadne recuou, alerta. Maya arregalou os olhos.

Selene não conseguiu se mover.

Naquele instante, ela sentiu tudo. O pulsar do mundo abaixo de seus pés. As correntes silenciosas que atravessavam o véu entre os reinos. E algo mais profundo ainda — algo enterrado em sua alma. Um poder antigo. Selvagem.

Ela ouviu uma voz.

“O coração não mente, filha da noite e da luz.”

E então, tudo escureceu.

Capítulo 3 - Vozes do Véu

O mundo voltou lentamente — como um sussurro entre os ossos.

Selene abriu os olhos com dificuldade. O céu acima ainda era vazio, um breu profundo que não oferecia consolo. A pedra do altar estava fria sob suas costas. As bordas do símbolo gravado ainda pulsavam em brasa pálida, como se tivessem acabado de chamá-la pelo nome.

Mas ninguém ali sabia seu nome verdadeiro.

Ela se ergueu devagar, sentindo o peso estranho do próprio corpo — como se tivesse andado por outro mundo enquanto o dela dormia.

“Você desmaiou,” disse Maya, ajoelhada ao lado. O rosto carregava preocupação, mas também algo mais: espanto. “Por alguns segundos, você... brilhou.”

“Você ouviu alguma coisa?” perguntou Ariadne, mais direta. “Ou viu?”

Selene hesitou. As palavras ainda dançavam dentro dela como fragmentos soltos de um sonho antigo.

“Eu vi... alguém. Uma mulher envolta em luz. E uma voz — era suave, mas firme. Como se falasse comigo de um lugar muito distante. Ela disse que o coração não mente. Que eu sou filha da noite e da luz.”

Kael ficou imóvel ao ouvir isso. O olhar dourado fixo nela, intenso demais para ser apenas curiosidade.

Selene o encarou. “Você sabe o que isso significa?”

Ele demorou para responder. Quando falou, foi em tom baixo, quase um lamento:

“Significa que o mundo que vocês conheciam não existe mais. E o que está para emergir... talvez já estivesse esperando por você.”

Selene desviou o olhar, tentando ignorar a sensação crescente de que tudo o que era sólido em sua vida começava a desmoronar. Não era só o que viu — era o que sentiu.

Como se algo dentro dela, enterrado por muito tempo, agora batesse contra as paredes de sua alma, pedindo para ser libertado.

Mas libertar o quê?

Ela se afastou do altar, os dedos ainda formigando. Maya a observava em silêncio, e por um momento Selene achou que a irmã sabia mais do que dizia. Não com palavras. Mas com o olhar de quem também sentia.

“Isso nunca foi só sobre nós, foi?” perguntou Selene, em voz baixa. “Nem sobre o portal. Nem sobre esse mundo.”

Maya demorou para responder. “Não. Eu acho que nunca foi.”

Ariadne bufou, cruzando os braços. “Ótimo. Primeiro, nossa mãe nos cria em silêncio absoluto, cheia de regras e segredos. Depois, somos jogadas num mundo que parece um túmulo de magia. Agora, você começa a ver mulheres feitas de luz e ouvir vozes do além.”

“Não era do além,” murmurou Selene. “Era… daqui. Como se essa terra soubesse quem eu sou antes mesmo de eu saber.”

Kael permaneceu quieto, observando tudo com um olhar de quem pesa palavras e consequências. Quando finalmente falou, sua voz era como pedra antiga sendo rachada.

“Vocês não deveriam estar aqui. Ainda não. Esse lugar… responde apenas àqueles que foram chamados. E Selene foi.”

Ela o olhou. “Por quê?”

“Porque algo está despertando em você.” Ele a encarou, sério. “E não estou falando só de magia. Estou falando de legado. De linhagem. Do que você representa — mesmo sem saber.”

O vento soprou forte, levantando cinzas do chão. Por um segundo, a forma do símbolo gravado no altar brilhou novamente, como se escutasse a conversa.

Selene levou a mão ao peito. O coração batia forte, descompassado. Mas não era medo. Era uma urgência silenciosa. Uma dor que não vinha de fora, mas de dentro.

Foi então que sentiu.

Por um breve instante, algo se estendeu dentro dela — uma energia viva, como uma onda atravessando o espaço. E ela não foi a única.

Maya ofegou. Ariadne cambaleou para trás, levando a mão à cabeça.

“Você sentiu isso?” perguntou Maya, os olhos arregalados.

“É como se… algo tivesse nos puxado por dentro,” respondeu Ariadne, surpresa. “Como se estivéssemos... ligadas.”

Selene os encarou, o sangue latejando nas têmporas.

Elas estavam ligadas. Ela sabia, mesmo sem entender como. Não era racional. Era visceral.

Mas o que as unia — e por quê — ainda estava escondido nas sombras da verdade que Genevieve, sua mãe, mantivera enterrada durante toda uma vida.

Kael se aproximou devagar.

“Vocês três... são mais do que irmãs,” disse ele, quase num sussurro. “E há alguém que não queria que descobrissem isso tão cedo.”

Selene cerrou os punhos. A raiva se misturava ao medo. As lembranças da infância, os silêncios de Genevieve, os olhares desviados. Tudo parecia agora parte de uma grande mentira costurada com carinho — mas ainda assim, uma mentira.

“Se ela escondeu isso da gente,” disse Ariadne, “então está na hora de descobrir o que mais ela escondeu.”

Selene assentiu. A luz prateada que ainda dormia dentro dela parecia pulsar, impaciente.

Algo antigo e selvagem pulsava dentro dela — e não podia mais ser silenciado.

E ele queria a verdade.

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