📖 Capítulo 1
Giulia Santoro
A casa estava silenciosa. Não aquele silêncio tranquilo das tardes de domingo, mas o tipo de silêncio que pesa, que aperta o peito, que faz os móveis parecerem estranhos. Giulia caminhava descalça pelo chão frio da sala, segurando uma xícara de café que já estava quase fria. Olhava ao redor e tudo parecia tão cheio… e ao mesmo tempo tão vazio.
As fotos na parede contavam histórias felizes. Casamento. Viagens. Formatura dos filhos. Aniversários. Ao centro, a imagem que doía mais: ela e Daniel, seu esposo, em uma praia qualquer do litoral baiano, sorrindo com os cabelos bagunçados pelo vento. Era como se outra mulher estivesse naquela foto. Uma mulher que não existia mais.
Fazia dois anos que Daniel partira. Dois anos desde que ela segurou sua mão pela última vez. Dois anos desde que tentou desesperadamente salvá-lo, com os olhos embaçados pelas lágrimas e as mãos trêmulas de medo. Era médica. Sabia o que fazer. Mas nada funcionou.
Nada.
Nem o conhecimento. Nem a experiência. Nem o amor.
Ela era médica. Quantas vidas havia salvo em sua carreira? Quantas vezes correu contra o tempo para manter um coração batendo? E mesmo assim... falhou com ele.
Essa culpa a corroía por dentro, silenciosa e cruel.
A profissão que antes era sua missão, tornou-se sua prisão. Não conseguia mais entrar num consultório, muito menos num hospital. As paredes brancas lhe davam náuseas. O cheiro do álcool, os sons dos monitores, tudo a fazia reviver aquela noite. E aos poucos, ela foi se desligando de tudo. Dos pacientes. Dos colegas. Da vida.
Os filhos, já crescidos, entenderam a dor da mãe como puderam. A apoiaram no começo, mas depois… a rotina falou mais alto. Tinham suas famílias, seus empregos, suas responsabilidades. E Giulia se fechou. Tornou-se uma sombra dentro da própria casa.
Ela tentou se agarrar ao que restava. Jardinagem. Leitura. Aulas de italiano, por capricho, por curiosidade, talvez por saudade das histórias que a avó contava quando era criança — de uma vila no interior da Toscana onde tudo parecia mais simples. Mais leve.
Mas nem isso preenchia.
Naquela manhã, enquanto o sol começava a desenhar linhas douradas nas cortinas, Giulia se olhou no espelho da sala. O rosto estava mais fino, os cabelos grisalhos agora assumidos com dignidade, e os olhos… os olhos estavam tristes. Profundamente tristes.
E foi nesse instante que ela entendeu: ela não estava vivendo. Estava apenas existindo.
Voltou até a mesa, pegou um caderno antigo de capa vermelha e abriu numa folha em branco. Escreveu com calma, letra por letra, como se fosse um desabafo:
> “Não posso mais continuar me escondendo da vida.
Talvez em outro lugar eu reencontre a mim mesma.
Não sei o que vou buscar. Só sei que preciso ir.
Por mim. Por ele.
Pela Giulia que ainda existe em algum lugar.”
Fechou o caderno com cuidado. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu um fio de coragem pulsando no peito.
No dia anterior, havia passado horas olhando voos para a Itália. Mais especificamente, para Florença. Uma cidade que ela conhecia apenas por fotos, filmes, histórias. Próxima dali, havia uma vila chamada Monteverdi — era onde sua avó nascera. Pequena, charmosa, escondida entre colinas e vinhedos. E, de alguma forma, era pra lá que seu coração a chamava.
Não contou a ninguém ainda. Não estava pronta para ouvir julgamentos ou conselhos. Aquilo era dela. Um sopro de liberdade entre os escombros da dor.
O telefone tocou. Ela ignorou. Era assim agora. Falava pouco. Saía pouco. Mas hoje… hoje algo parecia diferente.
Levantou-se, foi até o armário, pegou uma mala média. Começou a dobrar algumas roupas. Pegou um cachecol que Daniel tinha lhe dado num aniversário qualquer e o colocou no fundo da mala, como quem leva um pedaço de alguém.
Ela não sabia quanto tempo ficaria fora. Talvez um mês. Talvez um ano. Talvez… para sempre. Não fazia planos. Só precisava sair. Respirar. Sobreviver.
Enquanto a mala se enchia devagar, a xícara de café ficou ali, esquecida, sobre a mesa. E o silêncio da casa, pela primeira vez, parecia estar prestes a ser quebrado.
📖 Capítulo 2
O sol já estava alto quando Giulia terminou de organizar os últimos itens em sua mala. Sentia o estômago apertado, não pelo medo da viagem, mas pelo que precisava fazer antes de embarcar: olhar nos olhos dos filhos e contar que estava indo embora por um tempo — e que era uma decisão definitiva.
Vestiu-se com simplicidade, mas com um toque de elegância que nunca abandonara. Colocou um lenço azul claro no pescoço — presente da filha, há alguns anos — e saiu de casa com o coração pulsando em um ritmo novo.
Ela foi primeiro à casa do filho mais velho, André. Casado, pai de dois, vivia imerso no mundo dos negócios. Mesmo assim, ao vê-la na porta, abriu um sorriso sincero.
— Mãe? Que surpresa! Entra.
Ela entrou, respirando fundo. Olhou para os netos, jogando no chão da sala, e o coração deu uma leve estremecida. Mas não havia mais volta.
— Filhinho… vim aqui porque preciso te contar algo.
— Aconteceu alguma coisa? — ele franziu a testa.
— Não. Ou talvez sim. Eu decidi viajar.
— Viajar? Agora?
Ela assentiu, serena.
— Há dois anos eu tento sobreviver a uma dor que não passa. A morte do seu pai… você sabe o quanto me destruiu. E eu me perdi tentando continuar a vida. Mas agora… eu preciso ir.
André a encarou em silêncio. Viu firmeza em seus olhos. Viu também dor. Mas havia algo novo ali: um brilho suave, quase imperceptível.
— Vai pra onde, mãe?
— Itália. Toscana. Uma vila chamada Monteverdi. Quero paz. Quero silêncio, mas um silêncio diferente… um que me permita me ouvir de novo.
Ele não discutiu. Apenas a abraçou. Forte. Demorado.
— Se é isso que seu coração pede, então vai. Mas promete que vai se cuidar?
— Prometo. E vou ligar, sempre.
—Saindo dali, seguiu para a casa da filha, Bianca Ela era mais sensível, e Giulia sabia que o impacto seria maior.
— Mãe, está linda hoje. Mas por que essa cara de despedida? — Bianca perguntou, antes mesmo que ela dissesse qualquer coisa.
Giulia sorriu com ternura.
— Porque é mesmo uma despedida, minha filha.
— O quê?!
— Eu estou a ir embora. Itália. Preciso respirar. Preciso reaprender a viver.
—Bianca tentou argumentar, segurou as lágrimas, mas no fundo... ela sabia. A mãe precisava disso. Precisava muito mais do que a presença física de quem a ama — precisava da presença dela mesma em sua própria vida.
Elas se abraçaram longamente. Bianca chorou. Giulia também. Mas quando saiu dali, o coração já estava mais leve. As despedidas haviam sido feitas. E agora era hora de seguir.
Horas depois, Giulia estava no aeroporto de Guarulhos. A mala seguia à frente, silenciosa, como um fiel companheiro de jornada. Ela observava tudo com olhos atentos, como se visse o mundo pela primeira vez em anos.
Fez o check-in, passou pela imigração, e caminhou até o portão de embarque. Não levou muitos pertences. Levava livros, um caderno, uma nécessaire com o perfume favorito de Daniel, e um colar que ele lhe dera em seu último aniversário juntos.
Enquanto o avião decolava, ela segurou o braço da poltrona com força. Fechou os olhos. Era como se uma porta estivesse sendo trancada dentro de si — e outra, desconhecida, estivesse se abrindo.
Depois de doze horas de voo e uma conexão em Roma, o avião finalmente pousou em Florença. A cidade a recebeu com céu limpo, brisa suave e uma luz dourada que fazia tudo parecer tirado de um sonho.
Ao sair do aeroporto, sentiu o ar diferente. Mais leve. Mais doce. Os sons da língua italiana ao redor a reconectavam com memórias de infância, da avó contando histórias enquanto trançava o cabelo dela.
Pegou um táxi. O motorista, simpático, puxou conversa. Ela respondeu pouco, ainda envolta numa mistura de cansaço e emoção.
— Monteverdi? É um lugar muito bonito — disse ele. — Silencioso, pequeno… bom pra quem quer paz.
Giulia sorriu pela primeira vez em muitos meses.
— É tudo que eu quero.
Enquanto o carro seguia pelas estradas que serpenteavam entre colinas verdes e campos dourados, ela apoiou a testa na janela. Sentiu os olhos marejarem, mas não de dor.
Era alívio. Era recomeço.
E mesmo sem saber o que a esperava naquela vila escondida entre vinhedos e pedras antigas… ela sentia que finalmente estava viva outra vez.
Capítulo 3
O carro seguia devagar por uma estrada estreita, ladeada por ciprestes altos e elegantes. Giulia observava pela janela, fascinada. A vila de Monteverdi surgiu como um quadro emoldurado pela natureza — telhados de cerâmica, muros de pedra cobertos por heras verdes, pequenas sacadas floridas, e o som dos sinos da igreja ecoando suavemente ao longe.
Era como entrar em um livro antigo. Ou melhor: em um sonho que finalmente se tornava realidade.
O motorista estacionou diante de uma construção charmosa, de dois andares, com janelas arqueadas e flores pendendo por todo lado. Uma plaquinha escrita à mão, em italiano, balançava ao vento: "Pensione Fiorella – Benvenuti".
— Chegamos, signora — disse o motorista, sorrindo.
Giulia agradeceu e desceu do carro com um leve tremor nas mãos. Era o cansaço. Era o medo. Mas também era a emoção. Aquela pousada parecia tirada de um filme antigo, com sua fachada colorida em tons terracota, jardineiras de lavanda, e uma varanda repleta de mesinhas de ferro com toalhas floridas.
A porta rangeu levemente ao se abrir, e uma senhora baixa, de cabelos brancos presos num coque perfeito, surgiu com um sorriso doce no rosto.
— Buongiorno, signora! A senhora é Giulia Santoro?
— Sim… sou eu.
— Bem-vinda a Monteverdi. Eu sou Fiorella, a dona da pousada. Seu quarto já está pronto. Venha, por favor.
O interior da pousada era aconchegante, com móveis rústicos, fotos antigas nas paredes e cheiro de bolo recém-assado no ar. Giulia seguiu a anfitriã pelas escadas de madeira, sentindo os passos ecoarem como batidas de um novo coração. Subiram até o segundo andar, e Fiorella parou diante de uma porta azul-clara.
— Esta é sua suíte. Com vista para o coração da vila.
Ao abrir a porta, Giulia sentiu um arrepio. O quarto era simples, mas cuidadosamente arrumado: uma cama grande com lençóis de linho branco, um pequeno armário de madeira escura, e uma escrivaninha com uma jarra de vidro cheia de flores frescas. As janelas estavam abertas, deixando entrar o perfume do campo.
Ela deixou a mala encostada no canto e caminhou devagar até a sacada.
Ao abrir as cortinas e pisar no pequeno espaço, o fôlego lhe faltou por um instante.
A vila estava ali, inteira, diante de seus olhos. As ruazinhas de pedra serpenteavam entre as casinhas, os telhados cor de barro formavam um mar ondulado, e ao longe se via o verde infinito das colinas, pontuadas por parreirais e oliveiras. Pessoas caminhavam devagar, cumprimentavam umas às outras, e havia música suave vindo de alguma janela.
Giulia se apoiou no parapeito e respirou fundo.
O ar era leve. Fresco. Diferente de tudo que já havia sentido. Era como se, pela primeira vez em muito tempo, ela pudesse respirar com a alma.
As lágrimas vieram sem aviso, mas não eram pesadas como antes. Eram leves. Eram de alguém que sentia, enfim, que poderia voltar a viver.
Ficou ali por alguns minutos, deixando que aquele lugar entrasse dentro dela, como um bálsamo silencioso. Depois, voltou para o quarto, lavou o rosto e trocou de roupa. Vestiu uma calça clara e uma blusa azul suave. Prendeu os cabelos num coque solto e calçou sandálias confortáveis. Não pretendia sair ainda — queria apenas se ambientar, escutar os sons, sentir o chão.
Descendo novamente, foi recebida por Fiorella com uma bandeja de chá de camomila e biscoitos amanteigados.
— Espero que goste. Fiz hoje cedo. — disse a senhora.
— Está tudo… perfeito. A pousada, o quarto, a vista. Sinto como se estivesse num lugar que sonhei por anos.
— Muitos sentem isso quando chegam aqui — respondeu Fiorella, com um olhar terno. — Monteverdi tem alma. E costuma acolher quem chega ferido.
Giulia sorriu com os olhos marejados. Não respondeu. Não precisava.
Sentou-se na varanda da pousada e ficou ali, com a xícara nas mãos, observando a vida acontecer em outro ritmo, outro tom. Sentiu o peso da mala que deixou no Brasil, as despedidas, a culpa, a dor… e sentiu também uma presença suave, como se Daniel estivesse ali, invisível, sorrindo e dizendo:
> "Vai, Giulia. Vai viver."
E ela iria. Ainda não sabia como. Ainda não sabia quando.
Mas naquele instante, sentada diante da vila que parecia saída de um conto, Giulia fez uma promessa silenciosa:
"Vou recomeçar. Nem que seja devagar, em silêncio. Mas vou."
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