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A Canção da Última Lua

🩸 Capítulo I – O cheiro do inferno

Tava tudo silencioso demais.

E no reino dos vampiros, silêncio não é paz — é prenúncio.

A bruma se arrastava pelo chão como um bicho velho. Eu já devia ter voltado pro refúgio quando a terceira lua subiu no céu. Tinha uma regra: “nunca atravesse a trilha depois do toque do sino noturno.” Mas eu? Eu sempre fui ruim com regras. E pior ainda com medo.

A verdade é que eu precisava daquele livro. Um tomo antigo que falava da tal Canção da Lua. Todo mundo no orfanato ria dessas coisas, dizia que era mito, lenda, papo de velho desvairado que cheirou sangue vencido. Mas eu... eu acreditava. Sempre acreditei.

Porque desde que me entendo por gente, tenho essa sensação estranha — como se tivesse nascido pra algo que ninguém quer que eu descubra.

O problema é que a trilha do norte não perdoa curiosos.

E naquela noite, o cheiro veio primeiro. Fumaça queimada misturada com enxofre. Um fedor que te vira o estômago e te faz suar gelo.

Demônio.

Eu congelei.

Não dava pra ver muito, só o vulto escorrendo entre as árvores. Alto, magro, esquelético, com olhos que brilhavam vermelho sangue. Ele andava como se o tempo fosse dele. E talvez fosse mesmo.

Não gritei. Só corri.

Mas correr de um demônio é como tentar fugir do vento.

Senti a garra rasgar minha blusa. Um corte na pele, quente, ardente — como se fogo tivesse sido injetado nas minhas veias. Meu corpo travou. Caí de joelhos. O ar faltava, a cabeça girava, e a bruma parecia se engolir em volta de mim.

Achei que ia morrer. Ali, no meio da trilha, sozinha, esquecida como sempre fui.

Mas aí veio... o som.

Um barulho cortante, metálico, como uma espada atravessando um trovão. Uma sombra maior caiu do céu. Um vulto negro envolto em capa e armadura escura. O demônio rosnou — mas hesitou.

E a criatura que desceu dos céus não hesitou nem um segundo.

Um único golpe. Rápido. Preciso. O demônio virou cinzas antes que pudesse berrar.

Fiquei ali, deitada, tentando respirar. Minhas mãos estavam tremendo. Tinha sangue no meu braço. Minhas costelas doíam. E meu corpo... estranho. Alguma coisa tinha mudado. Algo dentro de mim tinha acendido.

A figura se aproximou. Os olhos dele eram de prata. Como se tivessem sido moldados da própria lua.

— Você está ferida — ele disse, ajoelhando ao meu lado.

— Não é nada... — murmurei, mesmo com o corte queimando como inferno.

Ele ignorou. Tirou uma pequena garrafa da cintura e despejou um líquido escuro na ferida. Ardeu tanto que gritei.

— Que porra é isso?

— Sangue de fogo. Fecha feridas envenenadas. Vai agradecer depois.

Ele se afastou um pouco, me observando como se estivesse decifrando um enigma.

— Qual seu nome?

— Elara. E o seu?

— Kael. Príncipe Kael Tharion.

A garganta secou. Eu sabia quem ele era. Todo mundo sabia. O filho mais temido do rei. O Príncipe da Meia-Noite. Ninguém se aproximava dele sem motivo. E ele… ele tava ali, me salvando, como se fosse meu guarda-costas.

— Você não devia estar aqui — ele disse, de repente. A voz dele tinha um peso estranho. Não era só ordem. Era dor também. — Esse lugar é perigoso. Especialmente pra uma garota sozinha.

— Eu me viro.

— Não, você quase morreu.

— Mas não morri, né?

Ele sorriu. Raro. Quase imperceptível. Mas vi. Como se minha resposta tivesse... incomodado e divertido ele ao mesmo tempo.

Kael ficou em silêncio por um tempo. Os olhos dele não desgrudavam dos meus. E, de repente, disse:

— Quando o demônio te atacou... algo brilhou em você. Como se... houvesse luz. Isso não é normal.

Engoli seco.

— Eu não sei do que você tá falando.

— Sabe, sim. Ou vai saber logo. Me diga: você já ouviu falar no Amante de Lua?

Meu coração deu um pulo.

— Só lendas... nada que se leve a sério.

Ele se aproximou. A mão dele tocou meu pulso. E quando fez isso, uma onda estranha correu pelo meu corpo. Como se minha alma tivesse lembrado de uma música que não ouvia há milênios.

— Talvez você seja mais do que pensa, Elara.

Fiquei sem palavras. E eu sou péssima com silêncio.

Então ele se levantou, olhou pro céu e estendeu a mão pra mim.

— Venha. A trilha tá condenada. Vou te levar até o refúgio.

— Você vai me escoltar?

— Por enquanto.

Peguei a mão dele. A dele era gelada, mas firme. E mesmo com toda a pose de guerreiro, o toque dele... foi gentil.

Caminhamos lado a lado pela mata escura. Ele em silêncio. Eu tentando fingir que tava tudo bem. Mas dentro de mim, uma coisa era certa:

Nada seria como antes.

A ferida no meu braço queimava menos do que a dúvida latejando no peito.

Por que eu?

Por que agora?

E por que, quando Kael me olhou, parecia... que ele já me conhecia?

🩸 Capítulo II – A Marca e o Príncipe

A floresta parecia respirar com a gente.

Cada passo era um estalo abafado entre galhos secos e folhas úmidas. A névoa ainda cobria o chão, mas agora tinha um cheiro diferente — não mais enxofre, mas sangue... o meu.

Kael andava calado. Ombros tensos, espada embainhada, mas os olhos atentos. Ele era o tipo de criatura que carrega silêncio como armadura. E eu? Eu era barulho puro, mesmo quando não dizia nada.

— Então... você vai me entregar pro rei? — perguntei, só pra quebrar o clima. — Tipo, “olha só, papai, achei uma órfã brilhante no mato”?

Ele deu um meio sorriso, daqueles que não chegam nos olhos.

— Não sou tão dedicado assim.

— E o que vai fazer comigo, então?

— Ainda não sei.

— Ótimo. Me sinto super segura.

Ele parou. Virou o rosto devagar, me olhando como se pudesse ver além da pele, do osso, da alma.

— Você devia estar morta, Elara.

— Eu quase estive.

— Não é isso. Aquela criatura... não era um demônio comum. Era um Incarh’zan. Um arauto da guerra. Só atacam quando estão perto de algo... importante.

— Tipo eu?

Ele não respondeu.

Seguimos em frente, e quanto mais andávamos, mais a floresta mudava. As árvores ficaram maiores, mais retorcidas, como se carregassem segredos antigos nos galhos. O chão virou pedra. O ar, mais frio. E então, no meio de tudo aquilo, surgiu um arco de pedra coberto de musgo, meio escondido atrás de um muro de cipós.

— Aqui — disse ele.

Passamos pelo arco, e eu perdi o fôlego.

Era um santuário.

Escondido, isolado, sagrado.

Uma casa de pedra escura com vitrais antigos, encostada numa queda d’água tão silenciosa que parecia mágica. Havia tochas azuis presas nas paredes e símbolos antigos talhados nos pilares. O som do mundo se calava ali dentro.

— Que lugar é esse?

— Um dos refúgios da realeza. Construído na época do Primeiro Sangue. Só os príncipes têm acesso.

— E você trouxe uma órfã pra cá. Não vai dar problema?

Ele me olhou de lado.

— Já tenho problemas demais. Um a mais ou a menos não muda nada.

Entramos.

O interior era simples, mas carregado de história. Estátuas de vampiros guerreiros alinhadas como sentinelas. Tapetes velhos, livros empilhados, armas de prata. E no canto, uma cama coberta por mantos de veludo escuro.

— Senta. Deixa eu ver seu braço — disse ele, apontando pra um banco de pedra.

Sentei. Tirei a parte rasgada da blusa devagar. O corte tava feio. Fundo, com bordas negras. O sangue já não escorria, mas parecia... pulsar.

Kael ajoelhou na minha frente e tocou a pele ao redor da ferida com a ponta dos dedos. Era frio. Mas... tinha algo a mais. Como se ele puxasse a dor pra ele. Senti a tensão escorrer das veias. Os músculos relaxaram.

— Você tem alguma ideia do que é isso? — sussurrei.

— Tenho suspeitas. Mas não gosto de palpites sem provas.

— Tenta. Vai que acerta.

Ele me olhou. Longo. Denso.

— Os antigos falavam de um tipo de sangue... misturado. Sangue da lua. De alguém tocado por forças que não pertencem só ao nosso mundo. Era raro. Perigoso. E valioso.

— Tá dizendo que sou... o quê? Um híbrido?

— Não. Híbridos são comuns. Você é outra coisa. Algo mais profundo. Quando o demônio te atacou, ele não só te feriu — ele reagiu a você. Recuou. Como se você tivesse queimado ele por dentro.

— Mas eu não fiz nada.

— Ainda não.

O silêncio voltou. Mas dessa vez... não era incômodo. Era denso. Quente. Como se algo tivesse sido plantado ali, entre nossas respirações.

— Você é sempre assim? — perguntei, só pra não mergulhar demais naquele olhar.

— Assim como?

— Misterioso, tenso, parecendo que carrega o peso do mundo nas costas.

— Eu carrego.

Tive que rir. Seco. Curto.

— Então talvez a gente tenha mais em comum do que parece.

Ele se levantou e começou a andar pelo santuário. Passava os dedos nos livros, nas paredes. Como se estivesse tentando lembrar alguma coisa que perdeu.

— A profecia diz que o Amante de Lua trará equilíbrio entre os mundos — disse ele, sem olhar pra mim. — Que carregará em si a chave do Coração Carmesim.

— Que porra é essa?

— Uma arma. Um poder ancestral. Selado há séculos. Só pode ser despertado por quem carrega o sangue certo. O rei acredita que quem encontrar o Amante de Lua herdará o trono... e salvará Sombraalma da invasão dos demônios.

— E você acha que eu sou essa pessoa?

— Não sei. Mas sei reconhecer quando algo... muda o curso das coisas.

Ele se virou.

— E desde que te salvei, tudo mudou.

A garganta apertou. Não era só o jeito que ele falava. Era o que ele não dizia. O que escondia atrás da armadura de silêncio.

E mesmo com o medo, a confusão, a dor... parte de mim queria acreditar nele. Mesmo sem provas. Mesmo sem lógica.

Talvez porque pela primeira vez na vida, alguém me olhava como se eu significasse algo.

Como se eu fosse mais do que uma órfã de rua com sorte ruim.

— Então o que vai fazer comigo agora? — perguntei, em voz baixa.

Kael cruzou os braços.

— Vou te esconder. Por enquanto.

— Esconder?

— Se o rei souber o que você é, vai te usar. Ou te matar. Depende do humor dele.

— E você? Vai me usar também?

Ele hesitou. Depois, disse:

— Eu não sou meu pai.

E naquele instante... eu acreditei.

Mesmo sem entender por quê.

🩸 Capítulo III – O sangue sonha primeiro

Demorei pra dormir.

O corpo tava cansado, mas a cabeça… não desligava. Tinha coisa demais girando lá dentro. A dor no braço tinha virado uma pulsação quente, quase viva, como se meu próprio sangue tivesse aprendido a gritar. E o silêncio do santuário? Um silêncio pesado. Antigo. Como se o ar estivesse ouvindo tudo.

Fechei os olhos achando que ia só descansar. Mas caí.

Literalmente.

O sono me puxou como um abismo. Escuro, profundo. E aí começaram os sonhos.

Primeiro, veio o cheiro de sangue. Forte, doce demais, quase sufocante. Depois, a imagem de um templo esquecido, no meio de um deserto de cinzas. As colunas estavam quebradas, e uma névoa vermelha pairava no ar. No centro, uma estátua gigantesca. Uma mulher com asas de sombra e olhos vendados. Chorava sangue. Um sangue grosso, escuro, que escorria até o chão e formava um rio que queimava a terra.

Tentei correr, mas a areia me prendia. Cada passo me afundava mais.

— Você carrega o canto esquecido — sussurrou uma voz atrás de mim.

Feminina. Ancestral.

— Quem é você?

— Não sou quem importa. Mas você… você foi. E será.

Acordei num pulo. Suando frio, o coração disparado, a garganta seca.

Kael tava sentado numa cadeira perto da entrada. Dormia com a espada atravessada no colo, os cabelos caindo sobre o rosto. Mesmo meio torto, tinha uma beleza estranha. Uma coisa quebrada, antiga, como se ele tivesse visto mais do que devia e ainda assim tivesse voltado.

Levantei devagar. A ferida ainda doía, mas parecia diferente. Quase… viva. Como se algo estivesse se movendo dentro da pele.

Fui até a estante de livros no canto do santuário. Todos cobertos de poeira, muitos em línguas que eu nunca vi. Peguei um que me chamou a atenção. Capa de couro negro, uma lua cortada por uma espada gravada em relevo.

Abri com cuidado.

As palavras dançavam na página, como se estivessem fugindo do olhar. Mas algumas… algumas eu entendi.

> O Coração Carmesim não é uma arma.

É uma lembrança.

Daquilo que fomos antes da fome.

Virei a página.

E ali estava ela.

A mesma mulher do meu sonho. Asas escuras, olhos vendados, sangue escorrendo.

— Você teve o sonho — disse Kael, com a voz baixa atrás de mim.

Quase derrubei o livro.

— Como você sabe?

— Você murmurou dormindo. Em línguas antigas.

— Eu… não falei nada.

— Falou sim. E chamou por ela.

— Ela quem?

— A Mãe da Lua. Aquela que tece o destino dos amaldiçoados.

Fechei o livro. Devagar. Como se ele fosse explodir.

— Isso tá indo longe demais.

— Tá só começando — ele respondeu, se aproximando.

O jeito como ele me olhava… era diferente agora. Não era só curiosidade. Era como se ele visse alguma coisa dentro de mim que nem eu sabia que existia.

— Você reagiu ao meu toque, ontem — ele disse.

— Reagi?

— Seu sangue respondeu ao meu.

— E isso é ruim?

— É raro. Muito raro.

Kael ergueu a mão, devagar. Tocou meu ombro. E quando os dedos dele encostaram na minha pele… foi como um raio.

Uma onda de calor correu pelo meu corpo. Do braço pro peito, do peito pra garganta. Como um trovão por dentro. Como se meu sangue tivesse lembrado de alguma coisa que minha mente ainda não sabia.

— Você sentiu?

— Como se alguma coisa tivesse acordado — respondi, ofegante.

— Isso acontece quando duas linhagens se reconhecem — ele falou, sério.

— Que tipo de linhagens?

— As que vêm de antes da queda. Antes da fome.

Fiquei em silêncio, tentando juntar as peças. Mas era como montar um quebra-cabeça sem saber o que tem na imagem.

— Você acha que eu sou esse tal Amante de Lua?

— Eu não acho — ele respondeu, calmo. — Mas tô começando a acreditar.

— E por que eu? Por que justo uma órfã?

— Porque só alguém sem raízes consegue mudar o tronco da árvore.

Sentei de novo, com o livro no colo. As palavras dele ainda vibrando dentro de mim.

— O que acontece agora?

— A gente vai sair daqui.

— Sair? Pra onde?

— Tem alguém que pode ajudar. Uma das últimas Guardiãs da Canção. Vive nas Montanhas de Névoa.

— Você tá brincando.

— Não.

— Dizem que quem entra lá… ou sai louco, ou não sai nunca.

— Ou sai sabendo demais.

— E se for uma armadilha?

— Aí você vai ter que confiar em mim.

— E você confia em mim?

— Já tô confiando.

Ele me estendeu a mão. De novo. E, por alguma razão que nem o universo podia explicar… eu aceitei.

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Algumas horas depois, a gente tava cavalgando por trilhas escondidas. As árvores ao redor pareciam assistir a gente, em silêncio. O céu começava a clarear, mas a luz não chegava de verdade. Era um cinza pálido, sem sol, sem promessa.

As Montanhas de Névoa ainda estavam longe, mas dava pra sentir. O ar mudava. Ficava mais pesado. Mais espesso. Como se tivesse segredos demais flutuando nele.

A cada passo do cavalo, meu corpo parecia diferente. Como se tivesse se esticando por dentro. Meu sangue corria num ritmo estranho. Como se tivesse começado a cantar.

Kael cavalgava na frente, mas eu sabia que ele sentia também. A tensão. A conexão. O perigo. Tudo misturado.

— Quando a guerra começar — ele falou, sem olhar pra trás — você vai ter que escolher um lado.

— E se eu não quiser guerra?

— Ela vai querer você mesmo assim.

Fiquei quieta.

Porque, no fundo, eu já sabia.

A guerra já tinha começado.

Dentro de mim.

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