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ENVOLVIDA

01

 

Prólogo

O som da sirene ecoava ao longe, mas Mirella nem piscava.

O corpo suado, a respiração pesada, e a arma ainda quente na mão. O sangue escorria pela lateral do pescoço — não dela, de outro. De mais um.

Ela se olhou no espelho rachado do galpão. Não via mais a garota que, aos 13 anos, vendia doce na esquina da Nova Holanda enquanto esperava a mãe voltar da cracolândia. Nem a filha que chorou baixinho quando o pai foi encontrado morto num beco, seringas no braço e alma já ausente. Aquela menina morreu junto com eles.

O que ficou foi Mirella Morais.

Assaltante.

Cria da maré

Temida em cinco estados e procurada pela Interpol.

Mas nada, absolutamente nada, a preparou para ela.

Gabrielle Costa.

Filha do tráfico.

Herdeira do morro.

Rainha da porra toda.

Um furacão de olhos escuros que bagunçou tudo que Mirella lutou pra manter no controle.

 

A favela ardia sob o sol do meio-dia. O céu limpo contrastava com a tensão que pairava no ar. Mirella caminhava pela Maré como quem nunca saiu dali — mesmo tendo cruzado oceanos com seu corre. Aquela era sua quebrada, sua raiz, mesmo que a vida a tivesse levado pra longe.

— Ô, Mirella! — gritou um menino, vendendo sacolé no canto da viela. — Cê voltou, cria?

Ela respondeu com um sorriso de canto, discreta, mas firme.

— Voltei, menor... só tô de visita. Mas cê sabe como é: favela sempre chama de volta.

Vestia uma calça larga, camiseta preta regata e tênis branco. Os braços tatuados, olhar atento, e a energia de quem nunca deixou de ser cria. Quem passava respeitava. E quem não conhecia, logo aprendia.

No alto da laje, uma garota observava.

Morena, de olhos intensos e expressão calculada.

Gabrielle.

— Quem é essa? — perguntou Gabrielle a Sara irmã que tava do lado.

— Mirella Morais. — Sara respondeu sem tirar os olhos da mulher lá embaixo. — Assaltante de joalheria, Interpol atrás. Fez uns corres fora. Disseram que ela desceu da gringa ontem.

— Tá aqui por quê?

— É isso que eu quero saber.

 

No final do beco, Mirella parou em frente à antiga casa onde cresceu. Estava vazia desde que saiu dali aos 17, carregando só uma mochila e uma pistola emprestada. Fechou os olhos por um segundo, mas o silêncio foi interrompido.

— Não achei que você ia ter coragem de voltar aqui.

A voz cortante fez Mirella virar devagar.

Gabrielle estava ali, braço cruzado, acompanhada de dois soldados do morro. Mas foi só elas se encararem por três segundos pra todo o resto desaparecer.

— E você... continua mandando em tudo isso? — Mirella soltou, seca.

— Segurando o que restou, né. Desde que a federal matou meus pais. — Gabrielle se aproximou, passos firmes. — Você sumiu, Mirella. E agora aparece do nada?

— Sumir era o único jeito de sobreviver.

O silêncio pesou entre elas.

Elas tinham se visto apenas uma vez. Anos atrás. Mirella fugia da polícia, Gabrielle tinha acabado de assumir o morro depois da tragédia. Um olhar rápido. Um toque de tensão. Mas ficou por isso.

Agora, o reencontro parecia gasolina num incêndio.

Gabrielle sai deixando Mirella sozinha, caminhando direto para boca entrando na sala dela encontrando Sara olhando para ela com o rosto franzido

- cuidado onde tá se metendo, beleza pode enganar assim como matar qualquer um que entrar sem saber onde ta pizando. — diz Sara olhando para Gabrielle

— Não sou criança pra fica escutando ladainha pra adolescente - responde Gabrielle olhando pra sara seca

 

02

O som do pagode ecoava alto dentro do bar improvisado na esquina da Travessa 4. A cerveja gelada escorria pela garrafa, a fumaça do cigarro se misturava ao cheiro da carne na chapa, e o calor das vielas parecia apertar ainda mais o ambiente.

Mirella estava jogada na cadeira de plástico, boné aba curva tampando metade do rosto, a Glock disfarçada na cintura e os olhos atentos como sempre. Do lado dela, Emilly, a parceira de todos os corres e uma das poucas pessoas que ela ainda chamava de “minha”.

— Tá diferente, né? — Emilly comentou, puxando um gole da cerveja, o olhar varrendo o bar. — O morro... sei lá. Tá mais frio. Mais fechado.

Mirella deu de ombros, os dedos tamborilando no copo.

— Isso é o efeito Gabrielle Costa. — soltou, com desdém. — Desde que ela pegou o trono da favela, geral anda na linha. Mas na base do medo, não do respeito.

— Tu não curte ela, né?

— Não é questão de curtir, Emilly. É questão de visão. Ela acha que pode controlar tudo pela força, mas esquece que quebrada é sentimento também. O povo sente quem tá por eles. Gabrielle não sente nada. Ela finge que não, mas por dentro? Fria. Que nem gelo.

Emilly riu de canto, maliciosa.

— Tu fala com ranço, mas eu lembro direitinho daquela vez lá em 2020, no baile da Linha. Tu e ela sumiram por horas...

Mirella jogou um gelo em Emilly.

— Foi só uma noite. Cês que viajam. Tava de passagem. Coração nunca foi meu ponto fraco, e você sabe.

— Sei. Só não sei até quando cê vai aguentar esse teu papo de “coração blindado”. Às vezes parece que você quer sentir, mas se sabota o tempo todo.

Mirella ficou em silêncio por um tempo, encarando o copo. O passado dela era selado com cimento. Desde que perdeu os pais, aprendeu a nunca deixar ninguém entrar de verdade. Era mais fácil assim. Mais seguro.

— Foco agora é o centro. Já tô com o canal em São Paulo fechadinho, e mês que vem, se tudo correr certo, tô de volta pra Madri. Um esquema de limpeza de joalheria lá em Málaga me chamou. Grana alta. Sem risco. Sem emoção.

— Vai sumir de novo, né? — Emilly murmurou, com um sorriso triste.

Antes que Mirella respondesse, uma voz conhecida cortou o ambiente:

— Espero que não estejam falando de mim.

As duas viraram ao mesmo tempo.

Sara Costa, a irmã mais nova de Gabrielle, se aproximava com um vestido colado no corpo, sandália dourada e aquele sorrisinho de deboche nos lábios carnudos. O tipo de presença que chamava atenção sem precisar tentar.

— Que cara é essa, Emilly? Não vai me convidar pra sentar?

— Pode sentar, princesa. — Emilly respondeu, mas o tom tinha um quê de provocação e cansaço.

Sara puxou uma cadeira e sentou entre as duas, estalando os dedos pro garçom.

— Três doses de tequila. Por minha conta.

Mirella olhou entre Emilly e Sara. A tensão ali era tão nítida quanto o suor que escorria pelas costas.

— Cês tão de rolo ainda? — perguntou, direta.

Sara soltou uma risada debochada.

— Rolo? Isso é muito forte. A gente... se encontra às vezes. Só isso.

— E transa às vezes também. — completou Emilly, dando um gole na cerveja sem encarar a outra.

— Quando dá vontade. — Sara respondeu, com a língua afiada.

Mirella ergueu as sobrancelhas.

— Uau. Que casal saudável.

— Não é casal, Mirella. — Emilly respondeu seca. — Só duas adultas que sabem separar desejo de apego.

Mirella deu um sorriso sarcástico.

— Ah, claro. Tudo muito maduro até alguém sair chorando no corredor do beco da 9, né?

Sara não respondeu. Só pegou a dose de tequila que o garçom trouxe, virou inteira e lambeu o sal da mão.

— E você, Mirella? Veio visitar ou tá voltando de vez?

— Só tô passando. Tenho compromissos fora. Não me amarro em enraizar onde o clima tá instável.

— Instável? — Sara questionou, com um olhar afiado. — Eu diria que tá mais seguro do que nunca. Minha irmã tem mão firme. O morro tá de pé porque ela segurou quando todo mundo correu.

Mirella se inclinou na cadeira, o olhar firme.

— Ninguém aqui tá negando que ela segurou. Mas cê sabe muito bem que esse trono tem um preço. E às vezes quem paga... nem sabe que tá pagando.

Silêncio.

Sara a encarou por alguns segundos, depois riu e virou a segunda dose.

— Ainda com esse jeito marrenta. Mas tá bonitona, viu. A gringa te fez bem.

Emilly deu uma risada abafada.

— A Mirella sempre foi um problema gostoso.

Mirella revirou os olhos.

— Vocês duas precisam de um divã, um terapeuta e um vibrador novo.

Sara gargalhou.

— E você precisa de um coração.

— Já tive. Perdi numa troca de tiro.

As três riram, mesmo sabendo que o que vinha por trás daquele humor era dor demais pra dizer em voz alta.

Ali, entre garrafas, farpas e olhares atravessados, o clima era uma corda bamba. Mirella sabia que Gabrielle tava por perto, mesmo que não tivesse aparecido. E sabia também que voltar pra Maré era mais do que uma passagem. Era uma armadilha emocional, um laço que ameaçava apertar a qualquer momento.

Mas Mirella Morais não se deixava prender.

Pelo menos, era o que ela repetia toda vez que o nome Gabrielle Costa surgia no pensamento e fazia o peito doer de um jeito que bala nenhuma conseguia curar.

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03

A noite tinha engolido a favela num silêncio estranho, só quebrado pelo miado de um gato no telhado e os gritos distantes do bar que ainda resistia ao fim da quinta-feira. Mirella subia os becos da Maré com um maço de cigarro no bolso, a mente fervendo e o coração anestesiado. Aquele barulho todo entre Emilly e Sara tinha deixado algo no ar. Não que ela fosse o tipo que se metia, mas Emilly era mais que parceira de corre — era família.

Quando chegou na casa dela, bateu duas vezes, como sempre fazia. Sem resposta. Mais duas. Silêncio.

Mirella forçou a maçaneta e entrou devagar. A luz da sala estava apagada, mas a da cozinha deixava um brilho fraco vazando pela porta entreaberta.

— Emilly? — ela chamou, baixo, já com a mão na cintura, por segurança.

Nenhuma resposta. Só o som abafado de choro vindo do quarto.

Ela caminhou até lá e empurrou a porta com calma. Emilly estava sentada no chão, encostada na cama, os olhos vermelhos, o rosto molhado de lágrimas e uma garrafa de vodka pela metade do lado.

— Caralho, Emilly… — Mirella soltou, fechando a porta atrás de si. — O que foi que aconteceu?

— Nada. — a amiga respondeu, enxugando o rosto com o braço, mas a voz denunciava a mentira. — Só mais um dia sendo otária.

Mirella sentou do lado dela, cruzando as pernas.

— Foi a Sara?

Emilly soltou uma risada amarga.

— Ela só me usa, Mirella. Usa e depois finge que nem me conhece. Acha que é só foda e tchau. Mas... porra, eu me envolvi. Eu me fudir. E ela? Já deve tá com outra, rindo de mim.

Mirella olhou pra ela por longos segundos. Sabia exatamente como era esse sentimento. Aquela vontade maldita de não sentir nada, mas o corpo inteiro traindo a mente.

— Tu se apaixonou por quem não sabe amar, Emilly. — falou, com a voz baixa, firme. — E isso... é uma guerra que tu já começa perdendo.

— E você, Mirella? Nunca amou ninguém, né? Nunca se deixou cair?

Mirella desviou o olhar.

— Só uma vez. E foi o suficiente pra eu aprender.

O nome estava preso na garganta: Gabrielle.

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Horas depois, já era madrugada. Mirella deixou Emilly dormindo e saiu pra esfriar a cabeça. Desceu a escadaria que dava pro campo de futebol, onde agora só o breu dominava. Acendeu um cigarro e ficou ali, escorada no muro, encarando o nada.

— Não imaginei que você ainda fumava.

A voz veio de trás.

Ela virou na hora.

Gabrielle Costa.

Moletom preto, cabelo solto, olhar preguiçoso, mas afiado como navalha. Ela se aproximou devagar, os olhos fixos em Mirella como se estivesse esperando esse momento há dias.

— E eu não imaginei que cê ainda andava sozinha por aqui.

— Maré é minha casa. Nunca precisei de segurança dentro dela. — Gabrielle respondeu, parando a um passo de distância.

O silêncio entre as duas era uma tempestade muda. Tudo gritava, mesmo sem som.

— Soube que tu apareceu no bar com a Sara e a Emilly. — Gabrielle disse, os olhos apertando. — Cuidado com o que você mexe.

Mirella tragou fundo e soltou a fumaça devagar.

— Se tua irmã não sabe lidar com as consequências dos desejos dela, o problema não é meu. Só fui consolar uma amiga.

— É... consolar você sempre soube. — Gabrielle respondeu, num tom cheio de veneno e desejo mal disfarçado.

Mirella deu dois passos pra frente. Agora era ela quem invadia o espaço.

— Tá querendo medir território comigo, Gabrielle? Ou tá só procurando uma desculpa pra sentir de novo o que cê finge que esqueceu?

Gabrielle riu de canto, mas os olhos estavam diferentes. Ardendo.

— Você sumiu, Mirella. Me deixou com gosto de sangue e saudade. Aquela noite... nunca saiu da minha pele.

— Aquela noite foi só uma válvula de escape. — Mirella rebateu, mesmo sabendo que estava mentindo até pra si.

— Jura? — Gabrielle se aproximou até seus rostos quase se tocarem. — Então por que tu tá com a respiração presa agora?

Mirella engoliu seco. O cheiro da Gabrielle, aquela mistura de perfume forte com pólvora e desejo, ainda era o mesmo.

— Porque você me irrita. — murmurou.

— E te excito. — Gabrielle respondeu, colando os corpos.

O beijo veio como um tiro no escuro. Intenso, faminto, desesperado. Sem aviso. Sem defesa. As bocas se chocaram, as mãos se agarraram, e anos de negação explodiram ali, contra a parede fria da quadra abandonada.

Mirella empurrou Gabrielle com força, colando ela na parede. As mãos seguraram seu rosto, e os lábios se devoraram com raiva. Mas por trás da fúria, havia saudade. Dor. Repressão demais pra caber em um só toque.

Gabrielle puxou a blusa de Mirella, roçando os dentes no pescoço dela.

— Você me odeia? — sussurrou.

— Não. Eu me odeio por não conseguir te esquecer.

O beijo continuou. As roupas foram ficando fora do lugar, as mãos explorando caminhos antigos. Cada toque era um flash do passado. Cada gemido, um lembrete do que nunca foi superado.

Mas quando Mirella se afastou, ofegante, o olhar dela estava escuro.

— Isso não vai acontecer de novo.

Gabrielle ajeitou o cabelo, sorrindo com cinismo.

— Vai sim. Você pode fugir pro outro lado do mundo, Mirella... mas meu nome vai continuar queimando na tua pele.

E com isso, Gabrielle virou as costas e desapareceu entre os becos, deixando Mirella ali, com o gosto dela nos lábios e a cabeça em colapso.

Ela tinha prometido a si mesma que nunca mais se deixaria envolver.

Mas Gabrielle Costa era mais que um erro.

Era um vício.

E o vício... sempre cobra.

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