Prólogo
Noah
O cheiro de pólvora ainda pairava no ar.
As luzes da viela piscavam como se anunciassem o fim. Eu tremia dos pés à cabeça, sujo, com os joelhos ralados e o rosto arranhado depois de correr por becos estreitos tentando salvar minha própria pele.
Tudo por causa de um celular velho e uma carteira com vinte reais.
Furtar não era meu plano de vida. Nunca foi. Mas a fome... a fome tem voz, e ela grita mais alto do que qualquer consciência.
Encostei-me à parede fria do galpão, tentando controlar minha respiração descompassada. Foi então que ele apareceu.
Alto. De preto. Frio como uma sombra assassina. Os olhos escuros me analisaram como se eu fosse um inseto. Ou um desafio.
— Quem mandou te perseguirem na minha área? — a voz era grave, e cada palavra carregava um poder que fez meu coração disparar.
— Eu... eu só corri... por favor, eu não sabia...
Ele me encarou por mais alguns segundos antes de se abaixar, ficando à minha altura. Seu olhar encontrou o meu, e eu soube: aquele homem era perigoso. Mas também... me deu a sensação estranha de segurança.
— Qual o seu nome? — perguntou, sem desviar os olhos.
— Noah...
— Noah — repetiu como se saboreasse. — Você tem sorte de ter cruzado o meu caminho.
Naquele instante, um carro preto parou ao nosso lado. Dois homens armados desceram, prontos para me arrastar, mas ele levantou a mão e todos congelaram.
— Agora ele é meu. Toquem nele, e eu quebro os dois.
Ninguém respondeu. Todos obedeceram.
Naquela noite, eu fui salvo por um demônio.
E mesmo sem saber o que o futuro me reservava... eu aceitei a mão que ele estendeu. Porque era a única que me tirava do chão.
Mal sabia eu que, ao aceitar Dante Salvatore... eu estava me entregando à máfia. E ao amor.
Julián
— Ele está com você?
Minha voz cortou o silêncio pesado da sala, enquanto observava Dante pela janela do meu próprio gabinete. A ousadia dele de entrar ali, no Tribunal, sem um pingo de medo, só aumentava meu desprezo. E... minha inquietação.
— Está sob minha proteção — ele respondeu com aquele sorriso cínico. — Por que tanto interesse, Meritíssimo?
— Ele é só um garoto. Você vai destruí-lo.
— Talvez. Ou talvez ele me salve.
Engoli seco.
A lembrança da pele jovem de Noah, dos olhos assustados e da coragem silenciosa dele... ainda estava viva em mim desde o primeiro encontro, quando o defendi numa audiência injusta.
E agora ele estava entre nós dois. No meio do fogo. No meio de uma guerra que nunca deveria ter cruzado seu caminho.
Dante me desafiava. E o pior?
Parte de mim... queria aceitar o desafio.
Noah
O carro preto deslizou pelas ruas da cidade como um animal silencioso. Eu me encolhi no banco de trás, entre o couro caro e o cheiro de algo que eu não sabia se era perfume ou poder.
Dante não dizia nada. Apenas dirigia com os olhos fixos na estrada e a mandíbula travada.
Meu corpo tremia, mas não era mais de medo. Era... outra coisa. Algo estranho. Algo que nascia da maneira como ele me olhava, como se eu fosse uma peça rara. Como se eu tivesse valor.
Ninguém nunca me olhou assim.
— Onde estamos indo? — minha voz saiu fraca, engolida pelo ronco do motor.
Ele apenas respondeu com um olhar de canto. — Um lugar onde ninguém mais vai encostar em você.
Minhas mãos se fecharam no tecido da minha calça. Aquelas palavras deveriam me confortar. Mas por quê pareciam uma sentença?
Quando o portão de ferro se abriu e a mansão surgiu diante dos meus olhos, entendi: aquilo não era um lar. Era uma fortaleza.
E eu tinha acabado de me tornar propriedade de um rei perigoso.
Dante
Noah era menor do que eu imaginava. Frágil. Bonito demais pro mundo sujo onde cresceu.
Mas havia algo nos olhos dele... uma coragem silenciosa. Uma pureza que o mundo ainda não tinha conseguido apagar.
E isso me irritava.
— Tire essa camisa — ordenei, ao vê-lo parado no corredor, hesitante. — Preciso ver se você se machucou.
— O quê?
— Você caiu. Está todo arranhado.
Ele recuou um passo. Eu percebi o medo.
— Eu não vou te tocar — garanti, com a voz mais baixa. — Ainda não.
Ainda. Porque eu sabia que uma parte de mim... já o queria. E isso era perigoso.
Muito mais perigoso que qualquer guerra de território.
Julián
O processo era simples: um roubo pequeno, um suspeito sem antecedentes, e uma injustiça pronta para acontecer.
Se não fosse eu naquele tribunal, Noah teria sido preso.
E desde então... ele não saiu da minha cabeça.
Ele tinha algo. Um jeito de encarar o mundo, mesmo apanhando dele. Algo que me lembrava quem eu fui, antes de vestir essa toga.
Mas agora ele estava nas mãos de Dante.
E só havia duas opções: ou eu o tirava de lá... ou me perderia com ele.
Noah
À noite, deitado numa cama maior que todo o meu quarto da favela, eu não conseguia dormir. O silêncio ali era diferente. Não era vazio. Era carregado.
Dante entrou sem bater.
— Não estou aqui para te machucar — ele disse, encostando na porta. — Mas você precisa entender que, a partir de agora, você vive no meu mundo.
— E se eu quiser sair?
— Você não pode.
Meu coração apertou.
Ele se aproximou devagar. Sentou-se na beirada da cama. Me olhou.
— Eu posso ser o seu inferno, Noah... — murmurou, tocando de leve a minha mão — ...ou o único que vai te proteger dele.
Foi naquele momento que percebi: eu tinha caído em um abismo. E ele... seria minha queda. Ou meu abrigo.
Talvez ambos.
Uma Semana Antes
Noah
— Senhoras e senhores, vamos iniciar a chamada.
A voz da professora ecoava pela sala abafada, mas eu mal a ouvia. Minhas mãos estavam geladas sobre a carteira, o estômago roncando baixo, e a única coisa que conseguia pensar era: quantos dias ainda consigo fingir que está tudo bem?
A universidade era minha fuga. Bolsa integral. Uma chance. Um milagre.
Mas milagres, no meu mundo, têm prazo curto.
A comida em casa tinha acabado dois dias antes. O aluguel estava vencido. E minha mãe… bom, minha mãe tinha me jogado na rua quando descobriu que eu gostava de meninos. Desde então, era só eu. E o mundo tentando me esmagar.
— Noah Martins? — chamou a professora.
— Presente — respondi, engolindo o orgulho.
Me levantei e saí da sala logo depois, sentindo o peso do mundo nas costas. Só que o que eu não sabia… era que aquele dia mudaria tudo.
Julián
Naquele tribunal abafado e cheio de gente cansada, mais um processo caiu sobre minha mesa.
Roubo de uma padaria. Suspeito: um estudante pobre. Sem antecedentes. Sem advogado.
Meu instinto me dizia: armação.
Mas quando o vi entrando — magro, com os olhos grandes demais para tanta dor, e as mãos suadas segurando a camisa surrada — algo dentro de mim parou.
Ele me viu também.
Não foi como se os céus se abrissem ou a trilha sonora começasse a tocar. Foi silencioso. Cru.
Como se nossas almas se reconhecessem por um segundo.
— O senhor tem algo a declarar, Noah Martins? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele hesitou. Mas então disse com firmeza:
— Só que eu não roubei. E que... eu só queria sobreviver.
A sala ficou em silêncio. Os olhos dele ardiam de verdade. E mesmo sem provas suficientes, algo ali me fez decidir.
— Arquivado por falta de evidência. E por bom senso — declarei, batendo o martelo.
O olhar dele se levantou até mim. Surpreso. Quase agradecido.
E foi embora.
Mas deixou uma marca.
Noah
Eu não sabia o nome dele na hora. Só sabia que aquele juiz de terno bem passado e olhar forte tinha me salvado de ser engolido por um sistema que só sabia me punir.
Saí do prédio do fórum com a sensação estranha no peito.
Não era só alívio. Era... admiração.
E talvez, um tipo de carinho proibido. Um que eu não deveria sentir por alguém como ele.
Mas era tarde demais.
Dante
— Você viu o garoto?
O informante diante de mim tremia.
— Vi, senhor. O menino da favela... o que o senhor ajudou com cestas básicas no mês passado. Ele foi pego por um furto, mas saiu livre. O juiz Julián que o liberou.
Julián...
De novo ele. Sempre querendo bancar o herói da cidade.
E agora se aproximando de algo que era meu.
Porque mesmo sem saber, mesmo sem me conhecer, aquele garoto já era meu.
Desde a primeira vez que o vi dormindo na calçada com um livro nos braços, como se estudar fosse sua única arma... eu soube que ele tinha algo diferente.
Algo puro.
E nada do que é puro sobrevive sozinho neste mundo.
— Quero que o sigam — ordenei. — Não deixem Julián chegar antes de mim.
Eles assentiram e saíram.
Eu fiquei sozinho.
Sentado, com um charuto entre os dedos e a foto de Noah sobre a mesa.
Ele ainda não sabia.
Mas o mundo dele já havia se entrelaçado com o meu.
E com o do juiz.
Três peças.
Um tabuleiro prestes a explodir.
A História por Trás de Dante e Julián
Dante
A primeira vez que vi Julián, ele ainda era só um garoto de olhos arrogantes e postura limpa demais pro mundo onde crescemos.
A favela do Capim Seco não era lugar pra sonhos. Mas ele tinha um. E um orgulho do tamanho de uma cidade.
A gente cresceu lado a lado. Ou melhor: quase lado a lado.
Ele com as roupas passadas pela mãe costureira. Eu com os tênis furados e a mão no bolso pra esconder a fome.
Mas mesmo diferentes, éramos iguais demais pra nos ignorar.
Trocávamos socos e silêncios. Gritávamos e nos protegíamos.
E à noite... dividíamos segredos num canto escuro do telhado onde ninguém via.
Ele era meu primeiro tudo.
Meu primeiro beijo. Meu primeiro desejo proibido.
— Isso é errado — ele dizia, depois de me beijar como se o mundo fosse acabar. — A gente nunca vai ter paz vivendo assim.
— A gente já não tem paz, Julián — eu respondia, encostado no peito dele. — Então foda-se.
Mas o tempo passou. E o mundo levou ele embora.
E me deixou… com sangue nas mãos e o nome do meu pai estampado nos jornais como um monstro.
Quando ele voltou, anos depois, de terno e gravata, com ares de juiz, fingindo que não me conhecia...
A raiva virou algo ainda mais podre.
Traição.
Porque ele não só me deixou.
Ele se tornou tudo o que dizia odiar.
E eu nunca perdoei.
Julián
A primeira vez que beijei Dante, eu soube que estava ferrado.
Ele tinha os olhos mais perigosos que eu já tinha visto. E o coração mais ferido também.
A gente cresceu cercado de lama e tiros. Enquanto eu me agarrava aos livros, ele se agarrava às ruas.
Mas nas noites em que nos encontrávamos escondidos, nada disso importava.
Eu o amava. Com uma intensidade que me assustava.
Mas a gente sabe como é: o mundo não perdoa amor entre dois meninos da favela. Principalmente quando um deles tem o sobrenome Salvatore.
Quando meu pai descobriu, me mandou pra longe. E eu fui.
Covarde. Fraco. Desgraçadamente quebrado por dentro.
Anos depois, voltei.
Agora eu era o juiz. Ele, o novo Don do crime. E entre nós, uma barreira que jamais deveria ter existido.
Mas quando nossos olhos se cruzaram de novo, num corredor frio de audiência...
Eu soube que o que havia entre nós nunca morreu.
Só tinha virado algo mais perigoso.
Mais quente.
E completamente fora de controle.
Dante
Ele me olha como se me odiasse.
Mas sei exatamente como ele respirava quando gemia meu nome entre dentes.
Sei onde o corpo dele estremece. Sei o gosto da raiva misturada com tesão.
Ele me abandonou.
E agora paga de herói.
Mas eu vou destruir essa pose limpa dele.
Vou fazê-lo lembrar quem ele era. Quem nós fomos.
E dessa vez... ele não vai escapar.
Nem do passado.
Nem de mim.
Nem do garoto de olhos doces que apareceu no meio disso tudo — e que tem o dom de despertar o pior em mim… e talvez o melhor nele.
Noah
— Você vai ao centro hoje? — perguntou Léo, meu colega da faculdade.
— Não. Tenho um... compromisso — respondi, meio sem saber explicar o que Dante significava agora.
Ele me hospedou. Me deu comida. Silêncio. E um quarto com tranca do lado de dentro.
Mas também olhares longos demais. Presença pesada demais. E um controle que eu fingia não perceber.
Naquela tarde, ele mandou um motorista me buscar. Disse que queria me mostrar “algo importante”.
Mas quando o carro parou em frente ao tribunal federal, meu estômago revirou.
— O que eu tô fazendo aqui?
O segurança apenas disse:
— O juiz pediu pra conversar com você. Em particular.
Meu coração quase parou.
Julián.
Julián
Noah entrou com passos curtos e olhos assustados. Mas ainda assim, manteve o queixo erguido.
Ele tinha a mesma coragem nos olhos de quando se defendeu no tribunal. E também uma inocência que me desarmava.
— Noah — falei baixo, quase num sussurro.
— Senhor... juiz — ele hesitou.
— Julián — corrigi. — Aqui, somos só nós dois.
Ele se sentou. As mãos trêmulas seguravam a borda da camisa.
— Por que eu tô aqui?
— Porque eu sei onde você está se metendo.
Ele me olhou, confuso.
— Dante Salvatore não é um homem comum, Noah.
— Eu sei disso. Mas ele me ajudou quando ninguém mais... — sua voz falhou. — Ele me deu abrigo.
Senti a raiva queimar minha garganta. Não de Noah. Mas de Dante.
— Ele não ajuda ninguém sem querer algo em troca.
— E o senhor? — retrucou. — Também me ajudou. Mas nunca mais olhou na minha cara.
Engoli seco.
Porque ele estava certo.
— Eu só quero te proteger.
— Mas parece que vocês dois estão me disputando. E eu nem sei por quê.
Ah, se ele soubesse...
Dante
Eu esperei do lado de fora.
Encostado no carro, fumando um cigarro que já tinha perdido o gosto.
Sabia que Julián o chamaria. Sabia que tentaria parecer o herói mais uma vez.
Mas Noah era meu.
Não porque eu o possuía.
Mas porque, pela primeira vez em anos, alguém me fez querer ser outra coisa além de um monstro.
Quando Noah saiu, seus olhos vinham marejados. E quando me viu, hesitou.
— Ele falou coisas sobre você — murmurou.
— Eu sei — respondi. — Julián fala demais. Mas nunca teve coragem de ficar.
— Ficar onde?
— Comigo.
Ele arregalou os olhos.
— Vocês dois...?
— Tivemos um passado — disse, aproximando-me dele. — Mas ele escolheu fingir que nunca existiu. Agora está tentando roubar o que ainda não é dele.
— E eu sou o quê? Um prêmio?
— Não, Noah — murmurei, tocando de leve seu rosto. — Você é a única coisa real que apareceu entre nós em anos.
E é por isso... que ele não vai te ter.
Julián
Quando vi Noah entrar no carro de Dante, com os olhos perdidos e o coração dividido, senti algo que não sentia desde a juventude:
Ciúme.
Mas não era só ciúme de Dante com ele.
Era do que eles estavam construindo.
Do que eu perdi.
E talvez... do que ainda queria ter de volta.
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