NovelToon NovelToon

Lento Degelo

1- Oito segundos

Este livro contém cenas que podem ser perturbadoras para alguns leitores. Os temas incluem:

Violência Física e Psicológica: 

Representações realistas de brigas, confrontos agressivos e situações de perigo relacionadas ao universo de motoclubes e conflitos pessoais. 

Exploração das consequências traumáticas. 

Conteúdo Sexual Explícito:

Cenas íntimas detalhadas e descritas entre os personagens principais. 

Ambientação em Locais Reais:

A narrativa utiliza cenários urbanos e estabelecimentos reais, o que pode intensificar a sensação de veracidade dos eventos violentos ou tensos. 

Temas Adultos:

Linguagem forte, consumo de álcool, tensão constante e situações de risco associadas ao estilo de vida dos protagonistas (ex-jogador de hóquei, motoqueiro e "encrenca"). 

Recomendado para leitores maiores de 18 anos.

Se você é sensível a violência, trauma, representações sexuais explícitas ou conflitos intensos, recomenda-se cautela.

O cheiro de whisky e couro envelhecido grudava no ar do clube, misturado ao ranço do cinzeiro entupido.

Segurava o taco de sinuca com os dedos manchados de giz, encarando a mesa como se ela me devesse dinheiro.

Tony riscou a bola verde com um estalo seco, enquanto Vince mexia na máquina de discos antigos, tentando mudar a música que tocava atrás de mim. 

Want You Bad - The Offspring

— Tá pensando demais, Bennet!

Vince cutucou minha costela com o cotovelo, sorrindo com meio charuto apagado nos dentes.

— Para de frescura. A bola oito tá te esperando. 

Grunhi, esfregando a nuca onde a cicatriz da cirurgia ainda latejava em dias úmidos. Oito segundos.

Foi o que me derrubou do topo. Agora restavam mesas de sinuca, apostas e whisky que queimava a garganta sem apagar a raiva.

Esticava o braço para a tacada quando a porta do bar se abriu com um estrondo de luz. 

Sophie entrou arrastando a mãe pela mão, e o lugar inteiro parou. Minha sobrinha, vestida num tutu rosa brilhante e sapatilhas pink, parecia um passarinho entrando na gaiola.

Os motoqueiros nos cantos abaixaram as vozes, alguns sorrindo com dentes amarelos. 

— Tio Adrian!

Sophie gritou, soltando da mãe e correndo entre as mesas como um furacão de glitter.

Seus cachos loiros presos no coque num tipo de rede, e o cheiro de seu perfume infantil invadiu minhas narinas quando eu a abracei.

Helen seguiu devagar, os olhos azuis cansados, os mesmos da nossa mãe, só que com sombras escuras de noites em claro.

Viúva aos trinta, criando uma pirralha teimosa num apartamento acima da minha academia. Ela encostou na mesa de sinuca, evitando olhar para Tony e Vince. 

— Preciso deixar a Sophie na aula de balé. O meu carro não pega…

explicou, as mãos apertando a alsa da bolsa preta de couro. 

Sophie cutucou minha perna com a sapatilha e sussurrou

— Não é aula, é ensaio! E você tem que vir ver minha apresentação no sábado!

Seus olhos arregalados eram dois faróis azuis, exigindo promessa.

— Vou ser a melhor bailarina do mundo! A senhorita Cecília disse que eu sou muito boa.

O nome me fez arquear uma sobrancelha. Helen completou, voz suave:

— É a nova professora de balé. A academia organizou o festival desse ano no teatro municipal. A professora veio de Nova York… dizem que ela dançou naqueles palcos famosos. 

Sophie subiu no banco ao meu lado, agarrando meu braço tatuado. Suas mãozinhas eram quentes e suadas.

— Se você não for, vou dançar na mesa do bar até você dizer sim! 

O whisky no meu estômago virou algo quente e mole. Puxei-a no colo, o tutu encostado no meu antebraço.

— Tá ameaçando o tio, pestinha?

Meu polegar afagou a testa dela, e ela riu, um soava como o som de sininho pra mim.

— Promete? 

— Prometo, princesa. 

Entreguei a chave da minha caminhonete depois de descer Sophie no chão. Helen, segurou na mão dela, mas a menina ainda me atirou um beijo de palma aberta antes de sair pulando.

— Não se esqueça, é sábado, sete horas! E vista uma camisa limpa!

berrou Helen da porta. 

Quando o barulho da minha caminhonete sumiu, Vince deu uma risada rouca.

— Adrian Bennet num teatro de balé.

Ele imitou uma pirueta, quase caindo sobre a mesa de sinuca.

— Vai ter que trocar o colete de couro por um terninho todo engomadinho, hein? 

Tony acendeu um cigarro, o isqueiro clicando como um tiro.

— Imagino você no meio da plateia, com todo esse tamanho e as tatuagens, assistindo mocinhas de tutu. Vão pensar que é um sequestrador. 

Empurrei o taco contra o peito dele, não com força, mas suficiente para fazê-lo recuar.

— Fecha a boca, Tony. É pela minha sobrinha, Sophie. 

Ele levantou as mãos, ainda sorrindo, mas eu já estava olhando para a porta vazia.

Cecília. O nome soava como coisa fina, de cidade grande. Nova York. Longe de poças de cerveja e cicatrizes que não saram. 

Enquanto Vince recolocava as bolas na mesa com um estrépito de desprezo, eu senti um frio na espinha. 

Palcos famosos. Dançarina de Nova York.

O que cargas d’água uma mulher dessas veio fazer no Kansas?

Afundei o resto do whisky. O gosto amargo agora tinha um brilho de lantejoula rosa preso na garganta.

O apito estridente do celular cortou o ar antes que eles pudessem responder, dois palhaços.

Vince, com aquele sorriso de quem sempre acha a merda errada, cutucou o aparelho vibrando no balcão, o atendendo.

— Calma, ele tá aqui sim!

— É a Lucy, Adrian. Tá que nem louca. Diz que não consegue falar com você.

Olhei pra tela. Cinco chamadas perdidas. Merda. O troço tava no silencioso desde o meu treino das 6 da manhã. Atendi, o aparelho quente colando na orelha.

— Lucy. Fala.

A voz dela veio acelerada, cortada pelo ruído de porta batendo ao fundo.

— Adrian! Finalmente! Olha, desculpa, mas hoje à noite… o meu pequeno tem aquele recital na escola.

Passei a mão na cicatriz da nuca. Latejava. O cheiro do whisky subia, misturado ao perfume da Sophie que ainda grudava na camisa.

— Relaxa. Eu cubro. Vai lá ver o guri brilhar.

— Sério? Deus te abençoe, Adrian!

O alívio na voz dela foi quase físico.

— Você é um anjo, sabia? Um anjo tatuado e rabugento, mas…

— Tô ligado. Boa sorte pro ator.

Desliguei antes que o "anjo" virasse piada pronta pros cornos ao meu lado. A distância que eles estavam dava para ouvir, já que o aparelho estava no volume máximo.

Vince pegou o celular de volta, rindo baixo.

— Anjo, hein? Cadê as asinhas, Bennet? Tão guardadas com o terninho pro balé?

Tony, encostado na mesa, soltou uma baforada de fumaça direto pro teto.

— Tu é maluco, Adrian. Academia 24 horas por dia, 7 dias da semana? Vai cabar morando naquele lugar. Precisava contratar mais um. Ou dois.

Encostei o taco na testa, sentindo o giz áspero. A imagem da academia passou pela mente: o cheiro de suor e metal, o ranger das máquinas, a luz fluorescente batendo nos espelhos à meia da noite. Meu lugar. O único que restou depois que os oito segundos no gelo, viraram poeira e dor.

— Já foi difícil achar o Jack e a Lucy, Tony. Gente que não some com o caixa ou quebra o aluno por besteira.

Olhei em volta do bar, os rostos conhecidos. Eu cresci entre eles, meu pai antes de mim era o presidente.

— E o movimento tá bom. Tá se sustentando.

Vince deu um tapinha nas bolas realinhadas.

— Sustenta? Aquele antro? Só os malucos e as donas de casa entediadas.

Meu olhar prendeu o dele.

— Tem a Helen treinando depois do expediente. Tem a turma do bairro novo às 19h. Tem o velho Henderson que vem todo dia pra não morrer sozinho em casa.

Puxei o ar, sentindo o gosto do Kansas no fundo da garganta, a poeira, suor e uma ponta de esperança teimosa.

— Não tô fechando. Nem que eu tenha que virar a noite enxugando equipamento e segurando peso pra véio desequilibrado.

Tony apagou o cigarro na lateral no cinzeiro no canto da mesa.

— Você quem sabe, irmão. Sabe que se precisar tô aqui. Só não chora.

Helen e Sophie. A academia. O bar. O Motoclube. As cicatrizes. Tudo se amontoava, pesado como ferro.

Peguei o copo vazio de whisky, rodando o fundo amargo no balcão. O brilho rosa de uma lantejoula presa no couro do colete me fisgou o olho.

— Chorar?

soltei um risco seco, vazio.

— Nem se a minha vida dependesse disso, Tony. Nem se dependesse.

2- Madrugada silenciosa

O óleo de máquina grudava nos meus dedos enquanto eu apertava a última porca do aparelho de remada. O cheiro de ferro e suor velho. A alma do lugar enchia o ar, pesado mesmo com o ar-condicionado roncando no teto.

Oito corpos se moviam pela academia; Henderson suando em bicas na esteira, o rapaz novo na cidade lutando com os halteres, três senhoras, rindo baixo na aula de zumba gravada... Normal. Pacífico. Demais.

Minha mente escorregou pra onde não devia: o assobio cortante do gelo sob os patins, o estalo do disco contra o sticks , o grito da torcida enchendo o estádio. Oito segundos. O tempo que levei pra escorregar naquela porra de fenda invisível, a cabeça seguida pelo ombro batendo no gelo com um estalo que ecoam na minha caveira até hoje. O frio na espinha me cortando por dentro, mais fundo que o cirurgião jamais alcançaria.

— Boo.

O sopro quente no meu pescoço me fez pular, a chave inglesa acabou escapandda mão e caindo no tatame com um baque surdo.

Virei num instinto de luta, o coração batendo na garganta como um prisioneiro.

Raven estava encostada no suporte de halteres, um sorriso lento e perigoso nos lábios.

Vestia apenas leggings pretas e um top esportivo que deixava pouco à imaginação e com um corpo daqueles, imaginação era desperdício.

Curvas fortes, definidas por horas de levantamento de peso e disciplina que eu conhecia bem. A loira dentista da cidade. Gostosa? Pra caralho. E sabia muito bem disso.

— Jesus, Raven. Quase me fez infartar. 

Peguei a chave inglesa, limpando o óleo na calça.

— Que diabos faz aqui depois da meia-noite? Se seu pai descobre, me enfia numa cela por qualquer motivo antes que eu pisque.

Ela deu um passo pra frente, o cheiro doce do seu perfume, algo caro, com notas de jasmim. Invadindo meu espaço, anulando o suor e o óleo.

— Papai tá em Topeka. Conferência de xerifes. Volta só amanhã à noite.

Os dedos dela traçaram uma linha no meu antebraço tatuado, sobre o anjo. A unha vermelha arranhou de leve.

— E a academia tá aberta 24 horas, não tá? Vim malhar... a solidão está me matando.

O olhar dela era um convite aberto. Íamos direto ao ponto. Já tínhamos dançado essa valsa muitas vezes. Sem rodeios, sem café da manhã depois.

Só calor e suor de um tipo diferente. Mas ultimamente... havia um brilho a mais nos olhos dela. Uma expectativa que não combinava com as regras não ditas. Que era sexo quente, forte e gostoso.

Admirei o caminho do suor descendo pelo pescoço dela até o vale entre dos fartos seios dela. Raven era um espetáculo. Gostosa pra caralho.

Mas aquele brilho... era uma cerca de arame farpado.

— Solidão é foda

concordei, a voz mais rouca do que eu queria. Estava ficando de pau duro, e se ela me tocasse seria impossível de parar.

— Mas hoje não rola, Raven.

Ela franziu a testa, o sorriso esfriando um grau.

— Por quê? Tá com outra?

— Tá vendo a Lucy por aqui?

Dei um gesto vago com a cabeça para a recepção vazia. Tentando arrumar uma desculpa.

— Foi ver o guri dela no recital da escola. Disse que ia dormir em casa com o marido e o filho depois. Eu fiquei de guardião do meu reino.

Afastei-me dela, pegando um pano pra limpar o óleo das mãos. O movimento me trouxe de frente para o Henderson, que fingia não espiar no espelho.

— Se eu trancar agora, o velho Henderson tem um treco na esteira e vira notícia. Além do mais...

Encolhi os ombros, encarando-a de frente.

— Não é uma boa ideia.

Raven cruzou os braços, realçando a definição dos bíceps. O olhar dela perdeu o calor, ganhou um gelo afiado.

— Ah, é? E por que não, Adrian? De repente ficou moralista?

Soltei um risco seco.

— Moralista? Nem fodendo. Só prático. Seu pai volta amanhã. E você...

Hesitei, escolhendo as palavras como se fossem minas.

— Você tá começando a querer coisas que eu não tenho pra dar, Raven. Café da manhã. Conversinha. Talvez um jantar no sábado.

Balancei a cabeça.

— Não sou feito pra isso. E você merece mais que migalhas de um cara que troca o dia pela noite num bar de sinuca ou consertando máquina quebrada.

Ela ficou imóvel por um segundo. O silêncio só tinha o ronco da esteira do Henderson e o som da música que as mulheres estavam dançando. Até que ela soltou um riso curto, sem humor.

— Migalhas?

O olhar dela varreu meu rosto, minha cicatriz na nuca que devia estar vermelha, minhas roupas sujas de óleo.

— Achava que você era mais esperto que isso, Bennet. Ou mais corajoso.

Virou-se, pegando a bolsa que deixara no chão. E tive o vislumbre da sua bunda redonda.

— Não se preocupe em me foder, ou com café da manhã. Nem com o jantar. Nem com nada.

Raven saiu sem olhar para trás, o cheiro doce do seu perfume deixando um rastro amargo no ar. A porta de vidro deslizou e se fechou com um clique definitivo.

Henderson desligou a esteira, ofegante.

— Tudo bem, Adrian?

perguntou, com aquela voz trêmula de quem já viu muita merda na vida.

Esfreguei a nuca. A cicatriz latejava, um eco distante do gelo. Olhei para o aparelho que consertara, para as máquinas silenciosas esperando o próximo maluco, para o vazio onde Raven estivera.

— Tudo ótimo, Henderson

menti, pegando o pano sujo de óleo novamente.

— Só mais uma noite no paraíso. Volta pra tua esteira, velho. Ainda faltam cinco minutos.

O ronco da esteira do Henderson mal recomeçou e já disfarçava o silêncio pesado que a Raven deixou pra trás.

Ainda sentia o cheiro doce do perfume dela, uma facada de jasmim no ar carregado de óleo e suor.

Esfreguei a nuca, onde a cicatriz latejava,  com certeza ia chover.

Só mais uma noite no paraíso.

Pensei, sarcástico. O paraíso cheirava a pneu queimado e desilusão.

Foi nesse instante que o som suave da porta deslizante cortou o ar.

Meu corpo reagiu antes do cérebro. Espinha travada, punho cerrando o pano engordurado. Ela voltou. A estúpida sensação de culpa, rápida disparou no peito, seguida de perto pela tensão.

Virei num movimento brusco, quase militar, o rosto já armado pra outra rodada de facadas verbais.

Não era a Raven.

Parada na entrada, iluminada pela luz fria do corredor, estava uma morena que eu nunca tinha visto.

Pelo menos, nunca reparado, o que eu acho que seria impossível. Ela deu um pequeno salto pra trás, os olhos cor de avelã grandes, expressivos, arregalados de susto.

Uma mão fina voou instintivamente ao peito, sobre um top esportivo simples, cor de vinho.

— Nossa!

a voz dela saiu um pouco mais alta que o normal, um sopro de surpresa.

— Você me assustou!

O sangue correu quente pra minha orelha. Idiota, Bennet.

Baixei a guarda na hora, relaxando os ombros, tentando parecer menos um ex-jogador de hóquei prestes a atacar e mais um... dono de academia? Funcionário? O que quer que eu fosse naquela noite.

— Perdão. Sinceramente

levantei as mãos, ainda sujas, num gesto pacífico. O pano pendia ridiculamente de uma delas.

— Não esperava ninguém nessa hora. Tudo bem?

Ela respirou fundo, a franja não escondia o formato de coração de seu rosto, os fios de seu cabelo castanho escuro escapavam do rabo de cavalo baixo e equanto ela passava a mão, claramente nervosa. Boa Bennet, ótima primeira impressão.

Um rosto que devia ter uns vinte e poucos, no máximo. Esguia, mas não parecia frágil. Delicada nas feições, mas com uma postura firme. Não chegava a 1,70, mas preenchia o espaço com uma presença inquieta.

— Tudo, tudo.

disse, recuperando o fôlego. Olhou em volta, os olhos amendoados e claros passando pelo Henderson que fingia hipnotizar o painel da esteira, pelas senhoras do zumba que agora cochichavam olhando pra ela, e voltando pra mim.

— Eu... vim malhar. O lugar está aberto, não está?

— 24 horas, certo como o sol nasce pra atormentar quem tá de ressaca

concordei, tentando um sorriso que provavelmente saiu mais torto que sincero.

— Precisa de alguma coisa?

Ela hesitou por um segundo, os lábios carnudos, sem resquício de maquiagem. Um rosto naturalmente bonito. Parecia estar revirando algo na cabeça enquanto mordia o canto da boca. E que boca linda e convidativa.

— Na verdade, a Lucy. Ou o Jack? Eles não estão...?

Ah. Claro. Os frequentadores da noite costumava lidar com a Lucy ou o Jack.

— Lucy foi no recital do filho. Jack... bem, Jack deve tá apagado em algum canto depois do turno da manhã

expliquei, encostando no banco do aparelho de remada que eu terminei de consertar. O óleo grudava na minha calça.

— Tô cobrindo a fortaleza hoje. Adrian Bennet.

Estiquei a mão automaticamente, mas puxei pra trás ao ver a graxa nos meus dedos. Bela primeira impressão, campeão.

— Ah, entendi...

ela murmurou, um alívio sútil passando pelo rosto. Não parecia desapontada, só confirmando minha informação.

— Tudo bem então. Eu sei o caminho.

Ela me deu um aceno breve, educado, e se dirigiu com passos leves e silenciosos, até a caixa de plástico branco encostada na parede perto da recepção.

A caixa das fichas.

Abriu a tampa, os dedos ágeis vasculhando as pastas de plástico coloridas até encontrar a dela. Uma das verdes.

Tirou a ficha, fechou a caixa com cuidado e, sem olhar pra trás, caminhou direto para a área dos aparelhos de resistência, sumindo atrás de uma fileira de elípticos.

Fiquei ali parado, com o pano de óleo esquecido na mão. O ar-condicionado soprava. Henderson bufava. As senhoras riam baixinho.

Quem diabos era aquela moça?

Dois meses. A placa na porta dizia Bennet's Iron & Grit. Eu estava lá todo santo dia consertando, limpando, fazendo inventário, às vezes até batendo um papo com os frequentadores.

Como é que uma morena daquelas, com olhos que pareciam pegar a luz fraca da academia e devolver em tons de mel e floresta, passou despercebida por dois meses?

Ela era… diferente. Não no sentido óbvio da Raven, que entrava numa sala e exigia que todo mundo olhasse, com aquele corpo esculpido e a atitude de quem sabe o poder que tem.

Essa aqui era mais… sútil. Esguia, sim, mas com a sugestão de certa força nos ombros estreitos, a cintura fina e definida embaixo das leggings pretas.

Delicada nos movimentos, mas não hesitante. Havia uma quietude nela, uma serenidade que contrastava brutalmente com o caos metálico e suado do lugar. E aqueles lábios… Jesus.

Meu olhar seguiu o caminho que ela tinha feito até os aparelhos. Não conseguia vê-la, mas sabia que estava ali. Uma pergunta martelou na minha cabeça, mais insistente que a dor na nuca:

Qual é o nome naquela ficha verde?

3- Camaro velho

O ronco baixo da máquina de remada era minha trilha sonora. Pouco peso, mas constante. Respirava fundo, sentindo o ar gelado do ar-condicionado bater no suor da nuca. Mais uma série.

Os músculos das costas queimavam docemente, uma sensação de conquista que só um dia de paz e trabalho me davam.

Alonguei os braços acima da cabeça, a coluna estalando de alívio. Praticamente vazia, a academia tinha uma paz noturna que eu adorava.

Só o som das máquinas, um rapaz tirando fotos de frente ao espelho enquanto levantava peso, o bufado distante do velho enquanto erguia um peso maior do que o meu próprio peso, e as risadinhas abafadas das senhoras do zumba gravado, que agora estavam sentadas no chão se alongando. Normal. Tranquilo. Meu refúgio.

Foi quando o celular vibrou com força no bolso da minha legging, rompendo o silêncio. Olhei para o relógio no pulso: 2:17 da manhã.

Quem diabos...? Um frio súbito percorreu minha espinha. Só podia ser emergência ou nada que me deixaria feliz. Puxei o aparelho com dedos que tremiam, a tela iluminando meu rosto suado.

"Vovô Walter".

O alívio foi tão intenso que quase ri. Claro. Só ele mesmo pra ligar nessa hora, sem noção do susto que dava.

— Alô? Vovô?

minha voz saiu um pouco ofegante ainda.

— Cecília!

a voz dele, rouca e familiar, ecoou no meu ouvido, cheia daquela energia teimosa que ele nunca perdia, nem de madrugada.

— Acabando a farra aí, corujinha? Ou já virou morcego?

Soltei um riso baixo, enxugando o suor do pescoço com a toalha. "Corujinha". O apelido vinha desde criança, por causa das minhas madrugadas lendo com uma lanterna debaixo do cobertor.

—Tô acabando de me alongar agora, vô. Já vou embora, prometo. Tá tudo bem aí?

— Tudo bem, princesa. Só tô indo dormir e lembrei que minha neta coruja deve tá voando por aí ainda. Cuidado com o lobo mau, hein?

brincou, mas havia uma preocupação genuína sob o tom leve.

— Lobo mau aqui só se for um ar-condicionado quebrado, vô. Já tô saindo. Boa noite, durma bem.

— Boa noite, corujinha. Dirige com cuidado.

Desliguei, guardando o celular com um sorriso. Vovô Walter. O único ser humano nesse planeta que podia me chamar às 2 da manhã e só me deixar com vontade de abraçar ele. E sei que ele só vai dormir de verdade quando eu entrar pela porta.

Enfiei a toalha suada na mochila, dei uma última olhada ao redor. O cara grande, estava atrás do balcão da recepção agora, cabisbaixo sobre uma revista de esportes grossa.

Parecia mergulhado numa matéria, a testa franzida, os dedos sujos de graxa virando as páginas com certa violência contida.

As luzes baixas destacavam as tatuagens nos braços musculosos, rosas em um é um anjo no outro, os ombros largos sob a regata velha. Intimidante, mas... concentrado. Alheio.

Caminhei em silêncio até a caixa de fichas, abri com cuidado e devolvi a minha a verde.

O clique da tampa fechando pareceu ecoar. Virei-me para a saída.

— Boa noite

disse, direcionando a voz para ele atrás do balcão.

Ele ergueu a cabeça tão rápido que quase assustei de novo. Os olhos dele, um castanho escuro, intenso encontraram os meus por um segundo. Pareceu surpreso, como se tivesse me esquecido ali.

— Boa noite

respondeu, a voz mais rouca do que eu lembrava. Um aceno breve com a cabeça.

Senti um calor estranho subir pelo pescoço. Apertei o passo, a porta deslizante abrindo para a umidade quente da noite que contrastava com o ar gelado de dentro. Respirei fundo.

Ar livre. Meu refúgio sobre rodas, o velho Camaro IROC-Z 1989 do vovô Walter, estava parado sob o poste de luz mais próximo, a pintura vermelha fosca brilhando fracamente.

Senti falta do meu velho Charger.

Mas o do vovô era um tanque de guerra com assentos de couro rachado. Entrei, o cheiro característico de gasolina, couro velho e tabaco de charuto do vô me envolvendo. Conforto. Girei a chave.

O motor roncou forte, fiel. Engatei a ré e soltei a embreagem devagar, dando leve acelerada. Mas alguma coisa estava errada. O volante puxou bruscamente para a direita, pesado, desobediente. Um rastro baixo, arrastado, vinha de trás.

— Não. Não agora.

Parei imediatamente, o coração batendo mais rápido. Desci, contornando o carro. Lá estava. O pneu traseiro direito, murcho, vergonhosamente colado no asfalto. Um prego? Vidro? Maldita sorte. Olhei para o céu escuro, nenhuma estrela. Vai chover.

— Ótimo.

Abri o porta-malas com um gemido metálico. O estepe estava lá, velho mas inteiro, e o macaco. Vovô me ensinara a trocar um pneu com cinco anos, usando uma chave de roda maior que meu braço.

"Mulher independente, neta, não fica à mercê de homem nenhum"

Ele dizia, com orgulho. Ajeitei o macaco sob o eixo, para começar a bombear. Estava soltando os primeiros parafusos da roda, a chave rangendo com a ferrugem, quando ouvi passos rápidos se aproximando.

— Problema?

A voz grave veio de trás de mim.

Virei, ainda agachada. O cara da academia estava ali, a poucos passos, as mãos enfiadas nos bolsos da calça moletom, mas os ombros tensos. A luz do poste iluminava metade do seu rosto, destacando a linha forte da mandíbula, a cicatriz discreta perto da orelha. Parecia ainda maior ali, na calçada escura.

— Pneu furado

respondi, levantando-me e limpando as mãos na lateral da legging.

— Mas tudo sob controle. Já tô trocando.

Ele olhou para o estepe no chão, para o macaco, depois para mim. Um leve arco de surpresa apareceu na sobrancelha.

— Desde os meus cinco anos, meu avô já me ensinava

acrescentei, tentando soar mais confiante do que me sentia. A noite estava quieta demais, e ele... muito presente.

Ele deu um passo à frente, com os olhos examinando o carro, depois fixando em mim com uma intensidade renovada.

— É o Camaro do Walter.

Afirmou, não perguntou. O tom dele mudou, um reconhecimento imediato.

— O velho Walter. Você... você é a neta dele?

Fiquei paralisada por um segundo. Ele conhecia o vovô? Era uma cidade pequena, eu não devia estranhar.

— Sim...

confirmei, cautelosa.

— O senhor conhece meu avô?

Um sorriso quase imperceptível tocou os lábios dele, apagando um pouco da dureza do rosto.

— Conheço o Walter desde que nasci, praticamente. Ele e meu velho eram... parceiros de copo e de confusão, vamos dizer assim.

O sorriso se ampliou, genuíno por um instante.

— Ele vivia falando com orgulho da neta. A neta estudiosa. Não sabia que você estava na cidade. Muito menos que malhava na minha academia.

Minha academia. Então ele era o dono. Adrian Bennet. O nome que já ouvi dele de Lucy, e agora o nome ganhou substância.

— Estou na cidade há uns dois meses

expliquei, encurtando a distância.

— Pra ficar um tempo com ele. E... gosto de malhar de noite. É mais tranquilo. Me ajuda a dormir.

Ele olhou novamente para o pneu murcho, o macaco, a chave na minha mão. O sorriso suavizou, mas os olhos mantiveram aquele brilho interessado, perscrutador.

— Dois meses e eu nunca te vi...

murmurou, mais para si mesmo. Depois, inclinou a cabeça para o carro.

— Deixa eu fazer isso pra você? É o mínimo, considerando que o Walter provavelmente salvou minha pele mais vezes que eu consigo contar nos dedos.

— Não precisa, sério

protestei, segurando a chave com mais força.

— Eu consigo.

— Eu sei que consegue

ele disse, e havia um respeito real na voz.

— Mas eu insisto. O velho me mataria se soubesse que deixei você aí se virando sozinha de madrugada. Além do mais...

Ele estendeu a mão, não para pegar a chave, como um convite.

— É mais rápido com quatro braços. E os meus são bons pra alguma coisa além de virar página de revista.

Hesitei. A independência gritava dentro de mim, mas a lógica também. Ele era grande, forte, e conhecia o vovô.

E... havia uma insistência gentil nele que desarmava. Um pedido quase. Relutantemente, entreguei a chave de roda.

— Obrigada

disse, baixinho, enquanto entregava a chave na mão dele

— Não é nada.

Ele agarrou a chave com uma mão que quase engolia o cabo. Em segundos, estava agachado ao lado do carro, os músculos das costas tensionando a regata enquanto soltava os parafusos restantes com uma força e uma precisão que eram quase hipnóticas.

Não era só força bruta, que ele tinha de sobra, era eficiência pura, nascida de anos manuseando ferramentas e pesos. A roda velha saiu, a nova entrou.

Ele apertou os parafusos num ritmo rápido, metódico. Cruzado, sussurrou, como se lembrasse das regras básicas. Mal cinco minutos se passaram.

— Pronto!

ele anunciou, abaixando o carro com o macaco e dando um último aperto nos parafusos com o pé. Levantou-se, limpando as mãos numa flanela que tirou do bolso de trás.

— Tá zerado.

— Muito obrigada mesmo

agradeci, sentido o calor subir ao rosto de novo. Pela ajuda, pela surpresa, pelo jeito que ele me olhava.

— Foi... muito rápido.

— Adrian Bennet

ele disse, estendendo a mão limpa agora. Um gesto formal, quase deslocado no cenário noturno, sob o poste de luz. Os olhos dele me prenderam, curiosos, tentando decifrar algo.

— Prazer em te conhecer. O Walter não exagerou.

Estiquei minha mão, sentindo a diferença brutal no tamanho, na textura áspera da dele contra minha pele. O aperto foi firme, mas cuidadoso.

— O prazer é meu, Adrian. Realmente. Agradeço de novo pela...

Card'B tocou na minha mochila insistente, cortando o ar. Adrian soltou minha mão. Eu pesquei o aparelho. Vovô. De novo. Atendi rápido.

— Vô? Tudo bem?

— Corujinha?

a voz dele soava mais cansada, um fio de tensão nela.

— Desculpa ligar pra você de novo, filha. Mas essa dor de cabeça do capeta não passa. Acha que dá pra passar na farmácia 24h do centro e pegar aquele remédio pra mim? O de sempre. Só se estiver no seu caminho, se já estiver chegando. Deixa pra lá...

Olhei para Adrian, que observava, impassível, mas atento para o carro

— Claro, vô! Tô saindo da academia agora mesmo, passo lá. Cinco minutos. Já eu chego. Fica deitado.

— Obrigado, princesa. Cuidado na rua.

— Cuidado você. Já tô indo.

Desliguei, sentindo a urgência apertar. Adrian já tinha captado a situação.

— Tudo bem com o Walter?

— Dor de cabeça forte. Preciso pegar o remédio dele na farmácia 24h.

Joguei a mochila no banco do passageiro.

— Desculpa, tenho que ir correndo. E... obrigada de novo. De verdade.

Ele deu um passo para trás, abrindo espaço.

— Nada que agradecer. Vai com cuidado. E manda um abraço pro velho. Diz que o Adrian perguntou dele.

— Digo sim. Boa noite!

Entrei no carro, dei partida. O motor roncou saudável. Olhei pelo retrovisor. Adrian ainda estava ali, parado sob a luz do poste, uma figura grande e silhueta contra a porta iluminada da academia, observando eu me afastar. Acenei brevemente antes de virar o carro. Ele ergueu a mão num gesto de despedida.

Quando olhei novamente no retrovisor, dobrando a esquina, ele já havia virado e estava caminhando de volta para dentro da "Bennet's Iron & Grit".

O nome dele ecoou na minha cabeça junto com o ronco do Camaro. Adrian Bennet. Finalmente tinha um rosto e um par de braços fortes para o dono da academia onde eu desaparecia nas madrugadas.

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!