Marco
No dia em que minha irmã morreu, nasci pela segunda vez. Não como homem. Não como filho. Mas como arma.
O cheiro de gasolina pairava no ar.
O barulho dos estilhaços ainda ecoava dentro da minha cabeça. O mundo inteiro girava devagar, como se estivesse em luto pelo mesmo motivo que eu. Só que ninguém sentia como eu. Ninguém ouvia os gritos da minha mãe enquanto o fogo devorava o carro. Ninguém segurava as mãos de Piettra com força suficiente para evitar que ela se jogasse dentro das chamas tentando resgatar Alice.
Eu era só um menino de oito anos.
Mas naquela noite, a infância acabou.
Desde então, vivi como se todo dia fosse uma preparação para a guerra.
Dormia pouco. Comia o suficiente. Matava o necessário.
Me tornei a sombra do meu pai.
Treinava com os homens mais cruéis da máfia, aprendia a atirar antes de saber dirigir, a negociar antes de aprender a confiar.
Piettra endureceu.
Antony calou.
E eu... me calei também.
Não chorei pela morte de Alice.
Nunca chorei.
Não porque não doía — mas porque, se eu começasse, nunca mais ia parar.
Foram anos assim. Décadas.
Até que, como uma ferida esquecida que um dia volta a doer, eu acordei.
Pela primeira vez, comecei a lembrar o que era sentir.
Pela primeira vez, quis recomeçar.
E talvez...
Talvez o nome disso seja amor.
Ou talvez... seja o nome que minha mãe gritava enquanto o carro queimava:
— ALICE!
Piettra nunca aceitou que a filha morreu.
E às vezes, quando acordo no meio da noite com o rosto de uma menina que nunca cresceu me assombrando, começo a pensar…
E se ela estiver certa?
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O cheiro de uísque e cigarro barato pairava no ar como uma maldição. No fundo da sala mal iluminada, o corpo nu da jovem se contorcia em soluços abafados. Marco a mantinha virada de costas sobre a mesa de vidro, o quadril dela marcado, manchado, esfolado. Ela chorava, murmurando pedidos de socorro que só tornavam mais lento o ritmo animalesco de Marco.
— P-per favor… basta… por favor…
Mas o herdeiro dos Rizzo não ouvia. Seu rosto estava suado, os olhos distantes e opacos. O prazer era menos pelo ato e mais pela dominação — o controle, a rendição, a sujeira. Era seu modo doentio de calar os próprios demônios.
Os ruídos úmidos e abafados foram interrompidos por batidas incessantes na porta.
Marco rosnou, contrariado.
— Chi è il figlio da puttana? (Quem é o filho da puta?)
Soltou o quadril da garota, que caiu como um saco vazio no chão, com as pernas bambas. Ele se masturbou até o fim, ejaculando nas costas dela como se fosse um ato de desprezo.
— Vaffanculo… (Vai se foder...)
Ela chorava. Ele a ignorou.
Pegou um lenço, limpou as mãos e o sexo, e vestiu a calça. Marchou até a porta, os olhos incandescentes de raiva. Abriu com brutalidade.
Alex, seu chefe de segurança, estava ali, tenso.
— Seu pai está lá embaixo, senhor Marco. Ele exige ser atendido.
Marco franziu o cenho, respirou fundo.
— Mande-o subir.
Bateu a porta na cara de Alex. Voltou até o banheiro, lavou as mãos, o rosto. A água escorria fria e sem alma como ele. Trocou a camisa manchada por uma preta de botão. Quando voltou, a garota ainda estava ali, enrolada no canto da parede, nua, tremendo.
— Fora da minha sala, adesso! (Agora!)
Ela se arrastou para fora, tentando esconder o corpo com os próprios braços. Marco nem olhou. Sentou-se na poltrona e pegou um cigarro, o acendeu devagar. Quando Antony entrou, o ambiente já estava encharcado de tensão.
Seu pai fechou a porta com força.
— Che diavolo è questo, Marco? (Que diabos é isso, Marco?)
— Buonasera anche a te, papà. (Boa noite pra você também, pai.)
Antony se aproximou, a mão cerrada, o rosto carregado de decepção.
— Stai diventando un animale. Um bruto. Quando cazzo smetterai di usare le donne come giocattoli sessuali?! (Você está se tornando um animal. Um bruto. Quando caralho vai parar de usar as mulheres como brinquedos sexuais?!)
Marco tragou fundo o cigarro.
— Quando esse mundo parar de girar. Quando o sangue parar de correr nas ruas. Quando a porra do meu passado for apagado.
— Tu sai benissimo qual è il tuo destino. (Você sabe muito bem qual é o seu destino.)
— Fanculo il destino. Fanculo il consiglio. E fanculo tutte queste cazzo di leggi. (Foda-se o destino. Foda-se o conselho. E foda-se todas essas merdas de leis.)
— Abbassa la voce! (Baixe a voz!)
Antony bateu com a mão na mesa, o som ecoou como um tiro.
— Io non voglio che ti costringano a sposarti. Ma se non prendi il controllo della tua vita amorosa, lo faranno per te. Ti troveranno una moglie, e sarà un incubo, Marco. (Eu não quero que te forcem a casar. Mas se você não tomar controle da sua vida amorosa, eles farão isso por você. Vão te arrumar uma esposa, e será um pesadelo.)
Marco passou a mão nos cabelos, se levantou devagar.
— Eu não nasci pra isso. Fui criado pra matar. Pra obedecer. Pra comandar.
— Nessuno può vivere da solo per sempre. (Ninguém pode viver sozinho para sempre.)
Silêncio.
Antony tirou uma pasta preta da maleta.
— Sua mãe revisou esse contrato vinte vezes. Ela disse que é perfeito. Um grupo brasileiro, uma empresa farmacêutica que precisa de investidores. Vamos lavar milhões com esse acordo, e ainda expandir nossos tentáculos para a América do Sul.
Marco pegou a pasta, leu por cima. Seus olhos já estavam longe dali.
— Prepara le valigie. Domani parti per il Brasile. (Arrume as malas. Amanhã você parte para o Brasil.)
— O Alex vem comigo.
— Façam o que quiserem, mas fechem esse acordo.
Antony virou de costas. Antes de sair, olhou para trás, cheio de dor e culpa, pelas escolhas que o filho havia tomado.
O jatinho particular decolou ao amanhecer. Uísque no copo, duas garotas no colo, Marco mantinha a mandíbula cerrada, como se estivesse esperando que o mundo ousasse provocá-lo.
Horas depois, o céu brasileiro surgiu na janela.
A limusine o aguardava na pista. Ao lado, Alex já digitava no celular, organizando a logística da chegada.
Destino: Real Farm.
Marco seguiu direto para o escritório da empresa. Usava um terno escuro, óculos escuros, o andar de predador. As recepcionistas desviaram o olhar, como se sua presença fosse opressora.
Quando chegou diante da porta de vidro da sala de reuniões, seu celular vibrou.
Marco ergueu os olhos, prestes a empurrar a porta da sala de reuniões quando o celular vibrou no bolso interno do paletó. O visor iluminado exibia um nome que ainda carregava peso sobre sua alma: Mamma.
Atendeu de imediato, sem pensar.
– Mamma?
A voz de Piettra Rizzo veio firme, sóbria. Havia algo naquela entonação que o fez se endireitar.
– Proteggerà con la vita il nipote di Giovanni Denaro. Siamo fedeli alla famiglia.
(Você protegerá com a sua vida o neto de Giovanni Denaro. Somos leais à família.)
Marco congelou.
– Sa di essere l’erede?
(Ele sabe que é o herdeiro?)
– Non ancora.
(Ainda não.)
E a ligação caiu.
O silêncio que se seguiu pesou como chumbo. Marco permaneceu parado no corredor da Real Farm, cercado por paredes frias de vidro e concreto, mas sentindo o mundo à sua volta girar.
Allan. O filho da puta do Allan.
O homem que, até aquele momento, era apenas um nome estratégico nos negócios... era o neto do Don Denaro. O herdeiro do trono de ferro que sustenta todas as máfias da Itália.
Piettra acabava de lhe entregar mais do que uma missão: lhe dava um destino.
"Vai proteger o neto de Giovanni Denaro."
O sangue pulsava em suas veias. Era isso. Era isso que justificava a presença de Allan no centro dos negócios mais limpos do Brasil, sua ascensão discreta, sua falta de medo. Era isso que justificava o olhar atento de Piettra mesmo doente, longe da linha de frente, ainda capaz de enxergar o jogo todo. Marco sabia o que significava aquela frase. Era um voto de fidelidade. Um juramento silencioso.
– Siamo fedeli alla famiglia…– murmurou em voz baixa, repetindo as palavras da mãe.
Testaria Allan. Mediria sua reação. Mas agora, com aquela informação, tudo mudava.
O telefone vibrou de novo. Alex apareceu atrás dele, como uma sombra fiel.
– Senhor Marco, estão esperando.
Marco respirou fundo. Um novo jogo estava começando. E ele era o único naquela sala que sabia as verdadeiras regras.
– Vamos, Alex. Está na hora de conhecer o príncipe escondido do velho Denaro.
E empurrou a porta.
A imponência da sede da Real Farm era palpável. Vidros espelhados, segurança reforçada, recepcionistas discretos, e um ambiente onde o luxo encontrava a eficiência. Marco atravessou o saguão com a postura altiva de quem sabia exatamente o que fazia ali — e de quem mandava, ainda que ninguém ousasse perguntar.
A sala de reuniões, no alto do edifício, era ampla, silenciosa, decorada com bom gosto e precisão. Quando Marco entrou, Allan já estava ao centro, em pé, controlando a apresentação. Usava um terno impecável, postura firme e fala clara. Não havia um único ruído que desviasse a atenção da sua presença.
O homem era jovem, mas exalava o tipo de autoridade que não se compra. Nascido para liderar. Marco reconheceu de imediato. Havia ali algo além de talento. Um instinto.
Sentou-se sem cerimônia, observando Allan em ação. A voz firme conduzia a atenção de todos, e os investidores presentes — europeus, americanos e um grupo do Oriente Médio — mantinham os olhos fixos na tela e em cada palavra dita.
— Estamos em fase avançada no desenvolvimento de vacinas personalizadas para doenças autoimunes, disse Allan com segurança. E a Real Farm tem tecnologia, mão de obra especializada e recursos suficientes para se tornar líder mundial nesse nicho nos próximos cinco anos.
Ele não hesitava. Argumentava com firmeza, rebatia questionamentos com precisão. Nada lhe escapava.
Marco, em silêncio, sorria por dentro. Não só pela excelência do executivo, mas porque agora tudo fazia ainda mais sentido.
"É por isso que ela me mandou aqui."
A reunião terminou em aplausos discretos. Allan dispensou os técnicos e se aproximou de Marco, estendendo a mão.
— Senhor Rizzo. Espero que a apresentação tenha sido satisfatória.
— Molto più che soddisfacente.
(Muito mais que satisfatória.)
Allan sorriu.
— Fico feliz. Estamos prontos para formalizar a parceria.
Marco caminhou lentamente até a janela panorâmica, as mãos nos bolsos, observando a cidade lá fora. O contrato que havia vindo fechar já era vantajoso. Mas agora, havia muito mais em jogo.
Ele pensava rápido, ligava os pontos. Sua mãe não daria um comando tão direto — proteja esse homem com sua vida — sem um motivo grave. E Marco não fazia perguntas quando se tratava dela. Obedeceu, como sempre.
"Ela sabe de algo. Alguém se aproximou. Alguém perigoso."
A postura de Marco era relaxada, mas sua mente estava em estado de alerta. Se sua presença naquele país antes se resumia a investimento e expansão, agora era uma missão silenciosa. Proteger Allan, mesmo que ele não soubesse de nada.
— Seu desempenho com os investidores é admirável, — Marco disse enfim. — Você tem carisma, visão estratégica e uma capacidade incomum de manter todos sob controle. Isso não é comum.
— Aprendi cedo a me adaptar a ambientes que exigem mais que inteligência, respondeu Allan, com um leve sorriso. — Nesse mundo, a percepção vale tanto quanto o conhecimento técnico.
Marco assentiu, observando-o com mais atenção.
"Ele não sabe quem é. Isso é claro. Mas carrega a essência."
Quis fazer um teste. Algo simples. Um código, uma frase. Não revelaria nada. Apenas indicaria se Allan era consciente das forças que o cercavam.
— Siamo fedeli alla famiglia.
(Somos leais à família.)
Allan apenas devolveu o olhar, sem reação. Não pareceu reconhecer o peso daquelas palavras. Se não sabia, fingia muito bem. Mas Marco era experiente demais para se enganar: ele não sabia. Ainda não.
A conclusão se formou rapidamente: alguém estava mantendo Allan no escuro. E se sua mãe estava certa — e ela sempre estava — então o tempo seria curto até que o passado viesse cobrar respostas.
Allan retomou o foco no contrato.
— A parceria entre a Real Farm e o grupo de empresas que o senhor representa será benéfica para ambos. Já validamos todas as cláusulas. Posso providenciar os documentos finais?
Marco se virou por completo, voltando à persona do empresário.
— Sim. Faça isso. Quero fechar isso antes de amanhã. E quero conhecer melhor sua operação por dentro. — Ele sorriu de lado. — Não é sempre que encontramos alguém que mereça investimento e respeito ao mesmo tempo.
Allan respondeu com um leve aceno.
— Será um prazer, senhor Rizzo.
Na saída da sala, Marco recebeu uma pasta de relatórios e se despediu com a formalidade que a ocasião pedia. Mas no caminho até o elevador, o silêncio o consumia.
"Ele não sabe quem é. Não tem ideia do que está à sua volta. E se o que mamma disse for verdade... o mundo dele vai desabar muito em breve."
O botão do elevador acendeu. Marco entrou. A porta fechou diante do reflexo de um homem acostumado a tomar decisões rápidas.
Agora, precisava proteger um rei que ainda nem sabia que havia nascido para governar.
Após o primeiro encontro, Marco saiu da empresa com a garantia de uma parceria sólida. Nenhum contrato foi assinado naquele dia, mas o aperto de mão entre os dois homens foi suficiente para selar o início de algo que, para o resto do mundo, parecia apenas mais um negócio lucrativo.
Nos dias que se seguiram, Allan manteve a rotina na Real Farm. Reuniões, decisões administrativas, conversas com investidores... tudo como de costume. O nome de Marco Rizzo, no entanto, permanecia pairando em sua mente como uma sombra elegante e enigmática. Havia algo naquele homem que fugia ao padrão — uma firmeza fria, um domínio absoluto sobre tudo que tocava.
Então, alguns dias depois, ele retornou.
Marco chegou ao prédio com o mesmo séquito de segurança. A presença dele era notada antes mesmo de sua silhueta surgir. E mais uma vez, Allan se manteve firme, ciente de que havia mais em jogo do que cifras ou resultados.
Seguiu com o italiano até a sala de reuniões.
Marco o acompanhou, ladeado por dois seguranças. A postura dele era inquestionável: firme, superior, como alguém que não aceitava interrupções ou contrariedades. Allan se manteve centrado, mesmo diante da tensão que o cercava.
— Não sabia que estava casado — comentou Marco ao observar o beijo rápido entre Allan e Laura no saguão.
— É algo recente. Ainda não falei nada à imprensa — respondeu Allan, sem desviar o olhar.
Marco cruzou os braços e ergueu o queixo.
— Ela sabe os riscos que enfrenta ao estar com você?
— Garantirei a segurança dela. Não preciso que me fale sobre isso — foi direto, abrindo a porta da sala e convidando o italiano a entrar.
Assim que se acomodaram, Marco caminhou pelo ambiente com olhos analíticos, observando detalhes mínimos — desde a ausência de uma secretária até a disposição dos móveis. Allan, por sua vez, manteve o foco. Sabia que aquele não era um homem qualquer.
— Hoje escolherei alguém para assumir a função de secretária. Desde ontem estou sem — comentou, como se antecipasse o julgamento.
— Posso apostar que você fodeu com a antiga, e por ciúmes da mulher lá embaixo, ela foi trocada — disparou Marco com sarcasmo frio.
Allan sorriu, apenas de canto.
— Quase isso, mas preferi evitar problemas. Troquei antes mesmo que Laura soubesse de algo. Mas imagino que não tenha vindo até aqui para debater a minha vida pessoal.
Marco se sentou, descruzando lentamente as pernas. Abriu o botão do paletó com um gesto preciso e encarou Allan com firmeza.
— Vim apenas comunicar que irei investir no seu projeto. Analisei todos os detalhes. Como sempre, você foi meticuloso, organizou tudo com precisão, definiu rotas de fuga, linhas de lucro, amarras legais... impressionante. Confio no seu potencial.
Allan assentiu com respeito.
— Agradeço pela confiança. Faremos jus a ela, como sempre fizemos desde o início da Real Farm.
— Faça meu dinheiro render. — Marco se inclinou levemente sobre a mesa. — E saiba que estarei ao seu lado, quando for preciso. Sono fedele alla famiglia. (Sou fiel à família.)
Allan piscou lentamente. O tom da frase parecia esconder mais do que entregava, mas ele não reagiu. Talvez não entendesse. Ou talvez estivesse apenas sendo cauteloso. Marco, porém, observava cada movimento, cada silêncio. A falta de resposta o fez arquivar mentalmente aquela ausência.
“Ou ele realmente não sabe... ou é bom demais fingindo.”
— Em breve, marcaremos nova reunião com os outros investidores. Avisarei sua secretária — disse Allan, já retomando o tom profissional.
Marco assentiu e se levantou. Já na porta, virou-se uma última vez:
— Ah, antes que eu esqueça… Sua esposa precisará ser apresentada formalmente. Esteja com tudo pronto quando for chamado. Sabe do que estou falando.
E sem esperar resposta, saiu.
Allan permaneceu parado por alguns segundos. Sentou-se na cadeira com o semblante fechado, tentando absorver a conversa.
Marco deixou o prédio com os óculos escuros cobrindo o olhar astuto. Do lado de fora, Alex o aguardava ao lado do carro blindado. Ele apenas murmurou:
— E então?
— Está pronto — respondeu Marco. — Mas ainda não sabe disso.
No trajeto de volta ao hotel, Marco manteve-se em silêncio. O rosto inexpressivo contrastava com o turbilhão em sua mente. Sabia que aquele homem, sentado na sala de reuniões, não era apenas um CEO ambicioso. Era muito mais. Aquele jovem representava algo que poderia mudar todo o equilíbrio silencioso que sustentava as máfias por trás das cortinas da Europa.
Allan era a chave. E Marco, agora, era seu protetor — mesmo que o outro ainda não tivesse a menor ideia disso.
Marco narrando
Voltei para a Itália no meio da madrugada.
O silêncio do jatinho contrastava com o barulho que ainda zunia dentro da minha cabeça. Nem mesmo as duas acompanhantes que dormiam nos assentos ao lado conseguiram anestesiar o peso que vinha me esmagando o peito desde a ligação de Alex.
Minha mãe estava hospitalizada outra vez.
Piettra Rizzo, a mulher mais forte que eu conheci, estava frágil. E tudo por causa de uma dor que nunca cessou.
Foram anos ouvindo os gritos dela. Primeiro, em casa. Depois, nos corredores de hospitais. Os médicos sempre davam nomes bonitos praquilo: crise psicogênica, colapso emocional, surto dissociativo... Mas nenhum deles conseguia explicar por que ela desmaiava do nada, por que entrava em transe, chorava, gritava, arranhava o próprio corpo exigindo o que já não podia ser devolvido.
“Alice está viva. Tragam a minha filha de volta! Devolvam meu bebê!”
A mesma frase. Repetida há trinta anos.
E mesmo que eu já tivesse aceitado que ela estava morta, mesmo que eu tivesse enterrado aquele caixão, mesmo que o fogo tivesse consumido tudo... eu ainda sentia a dor da perda com a mesma força que ela.
Entrei no quarto e a vi ali. Deitada. Pequena.
Minha mãe nunca foi pequena pra mim. Era um furacão, uma mulher imbatível, dona de tudo.
Mas naquela cama, com tubos e monitores ao redor, ela parecia só... vazia.
Sentei ao lado dela e segurei sua mão.
— Mamma… sono qui. (Mãe... estou aqui.)
Ela não respondeu.
Meu peito ardia. E como sempre, não chorei.
Eu não posso chorar.
Não sou autorizado a fraquejar. Não eu. Não Marco Rizzo.
Naquela noite, retornei à boate. À minha boate.
Nada fazia sentido, mas eu precisava me distrair.
Chamei duas meninas. Bebemos. Fumamos. Uma delas se ajoelhou e começou a me agradar enquanto a outra se despiu na minha frente. Eu a virei contra a parede e enfiei nela com brutalidade. Sem delicadeza, sem afeto. Era sobre apagar a dor.
Ela gemeu. Choramingou. Mas eu não ouvia.
Meus olhos estavam fixos em outro lugar, no vulto do passado que ainda me atormentava.
Alice, com seus olhos grandes e mãos miúdas.
A explosão. O fogo. O luto.
— Senhor Marco! — a batida forte na porta me trouxe de volta à realidade.
Rosnei, saí de dentro da garota e gozei nas costas dela, como um animal. Me limpei com um lenço de papel, dei um tapa nas nádegas da menina e gritei:
— Fuori! Ora! (Fora! Agora!)
Ela correu, tropeçando, tentando recolher as roupas.
— Que porra é essa, Alex?! — abri a porta com raiva.
— Seu pai está aqui.
Antony Rizzo me esperava no andar de baixo. O olhar firme, a expressão impassível. Mas eu sabia que ele tinha visto a garota fugindo. E sabia também que ele me conhecia bem o bastante pra saber que aquele comportamento significava apenas uma coisa: eu estava prestes a explodir.
— Quanto tempo mais vai viver assim, Marco? — ele perguntou, sem rodeios. — Usando mulheres como bonecas infláveis e fingindo que não sente nada?
— Vai começar de novo com esse sermão de merda? — rosnei, empurrando uma cadeira.
— Você precisa encontrar alguém. Uma mulher de verdade. Ter sua família, seus filhos…
— Figli? Io non voglio figli! (Filhos? Eu não quero filhos!)
Antony arregalou os olhos com minha resposta.
— E sai perché? Perché non posso sopportare l’idea di perdere qualcuno come abbiamo perso Alice! (E sabe por quê? Porque eu não suporto a ideia de perder alguém como perdemos a Alice!)
A verdade explodiu do meu peito como uma bomba.
— Tu non capisci cosa significa portare quel dolore da solo per trent’anni! Ho visto mamma distruggersi ogni giorno! Ho giurato che avrei trovato una risposta, e non ho mai trovato niente! (Você não entende o que é carregar essa dor sozinho por trinta anos! Eu vi a mamma se destruir todos os dias! Eu jurei que ia encontrar uma resposta, e nunca encontrei porra nenhuma!)
Minha voz falhou.
Minhas mãos tremeram.
E então, pela primeira vez em décadas, vi meu pai se aproximar de mim com olhos úmidos.
— Figlio mio… (Meu filho...)
Ele me puxou para um abraço. Forte. Quente. Verdadeiro.
Aquele abraço que eu esperei a vida inteira.
— Eu também sinto falta dela todos os dias. — ele disse, com a voz pesada. — E me dói saber que você também carrega isso sozinho.
Fechei os olhos. Permiti que ele me segurasse por mais tempo.
Naquela noite, ali no salão vazio da minha boate, entre garrafas quebradas e luzes vermelhas, não havia mafiosos.
Não havia chefes.
Apenas dois homens.
Tentando, cada um à sua maneira, suportar o peso de ter amado demais — e perdido.
O telefone tocou três vezes. Três. Nunca quatro. Nunca duas. Três.
Toque codificado.
Desviei o olhar da taça de vinho e encarei Alex, que já se levantava da poltrona com o celular na orelha. Não precisei perguntar nada. Pelo olhar dele, eu já sabia: merda grande.
— Fala.
Ele ouviu por alguns segundos, depois desligou sem dizer uma palavra. Veio até mim, firme, o rosto mais tenso do que eu gostaria.
— Interceptaram a carga em Nápoles. Um dos nossos homens morreu. Dois estão desaparecidos.
Fechei os olhos. Respirei fundo.
— Que tipo de carga?
— A remessa vinda da fronteira leste. Cem quilos de armamento leve, os fuzis e as munições que iríamos redistribuir em Palermo, Roma e Milão.
Levantei-me, puxei o paletó, abri o fundo falso e retirei o coldre com minha Glock. A arma encaixou com um estalo seco no lugar.
— Quem foi ousado o bastante pra atacar no nosso caminho?
— Facção nova. Croatas. Vieram pra ficar, segundo os informantes.
Sorri.
— Então vamos ensiná-los o que significa brincar com a família errada.
O galpão em que planejamos tudo ficava fora do radar. Local neutro, sem escutas, sem olhos curiosos. Alex mapeou com ajuda de dois soldados confiáveis o possível caminho que a carga poderia ter feito após ser desviada. Os caminhões nunca foram encontrados, o que significava que os croatas tinham base própria e sabiam esconder.
Eles não eram amadores.
Espalhei os mapas sobre a mesa. Apontei para o ponto onde a interceptação tinha ocorrido e desenhei um semi-círculo até uma zona industrial decadente ao sul de Nápoles.
— Eles não tentariam ir pra fora da Itália. Não com armamento desse porte. Isso é para redistribuição. Pra dominar mercado.
Alex assentiu.
— Achamos uma movimentação atípica de energia elétrica nesse setor aqui. Uma usina desativada teve aumento de consumo nos últimos dois dias.
— Perfeito. Entraremos essa noite.
— Você e eu?
— Só nós. Nada de chamar atenção. Dois fantasmas.
A noite caiu silenciosa, como um lâmina afiada. Usei calça tática preta, camisa justa de algodão escuro, luvas e bota leve. Meu corpo já se movia por instinto, cada centímetro treinado para morte.
Alex dirigia o carro sem placas. O silêncio entre nós era quase sagrado. Há anos agíamos juntos. Ele sabia como eu pensava. Eu sabia quando ele ia agir.
Estacionamos a 700 metros do alvo. Seguimos a pé pela encosta de terra. A noite era densa. Sem lua. Ideal.
Do alto da colina, avistei o galpão. Três vigias. Dois do lado de fora, um no alto da torre de observação improvisada. Armados com AK-47.
Fiz sinal com os dedos. Três alvos. Três soluções.
Alex deu a volta, silencioso, e foi pela parte leste. Eu fiquei encarregado dos dois vigias de fora.
Aproximei-me rastejando por entre caçambas e contêineres abandonados. Peguei a faca. Um dos homens acendeu um cigarro. Foi a deixa.
Avancei por trás, cravei a lâmina direto na jugular, tampei a boca com a outra mão. O sangue jorrou quente, mas sem som.
O segundo se virou.
— Chi è lì?! (Quem está aí?!)
Dois tiros com a pistola com silenciador. Um no peito. Outro entre os olhos. Caiu como saco de ossos.
Alex já tinha abatido o da torre. Entramos.
Dentro, seis homens. Todos croatas. Jogavam cartas. Riam. Não perceberam quando desligamos a energia. Não ouviram quando abrimos a porta.
Mas ouviram os tiros.
Avancei primeiro, mirando certeiro. Um caiu com o pescoço perfurado. Outro tentou correr, mas Alex cravou três balas nas costas. Um quarto se rendeu. Os dois restantes reagiram.
Houve luta corpo a corpo. Um me golpeou com uma barra de ferro. Senti o sangue escorrer pela testa, mas não parei. Quebrei o braço dele com um giro. Finalizei com a faca no coração.
O último tentou escapar. Atirei na perna.
— Dove pensi di andare, bastardo? (Aonde pensa que vai, bastardo?)
O homem gritava no chão.
— Fala! Cadê o resto da carga?
Ele cuspiu no chão, rindo.
O silêncio que veio depois dos tiros era mais incômodo que o som dos disparos. Alex se aproximou com o semblante sério, o coldre ainda em mãos, as botas sujas de sangue e barro.
— Dois escaparam — ele rosnou, limpando o suor da testa com o dorso da mão. — Mas a carga tá ali. Intacta. Eles não tiveram tempo de mover nada.
Andei até o caminhão. A estrutura traseira estava com o cadeado arrebentado, mas o conteúdo continuava dentro. Trinta caixas, empilhadas com precisão. Drogas, armas, documentação falsa, diamantes — uma mistura de tudo que financiava nosso império. Respirei fundo, o cheiro do metal misturado com pólvora me trouxe uma lembrança antiga. Do dia em que vi meu pai dar o primeiro tiro. Eu tinha sete anos. E entendi ali que, para manter o que era nosso, precisávamos estar dispostos a perder tudo. Inclusive a alma.
— Alex, manda os rapazes descarregarem isso no galpão do porto. Vamos reforçar a segurança do perímetro. — Me virei para o grupo que sobreviveu. — E quero rastrear os dois que escaparam. Agora.
O olhar que lancei foi o suficiente para que todos saíssem correndo. Um dos homens se ajoelhou no chão, estalando os dedos de nervoso enquanto ligava para os pontos de apoio espalhados pela cidade. Não era só a carga que estava em jogo. Era meu nome. Minha reputação.
De volta ao carro, encostei a cabeça no banco de couro. Alex dirigia em silêncio, como sempre fazia quando percebia que eu estava em modo de cálculo. No meu mundo, nenhuma vitória é completa enquanto o inimigo respira. A máfia tem leis próprias. E uma das mais antigas era: Não deixe testemunhas que possam voltar com reforço.
Alex me encarou pelo espelho retrovisor.
— Você não precisava ter ido. Tínhamos homens pra isso.
Sorri.
— Ninguém toca na minha carga. Ninguém toca na minha família.
Ele sorriu de volta.
Marco Rizzo. O nome que até os mortos aprendem a respeitar.
Peguei o telefone e liguei para um dos nossos informantes dentro da delegacia regional de Palermo. O homem atendeu no terceiro toque.
— Sim, senhor Rizzo?
— Preciso de localização de dois veículos. Acabei de enviar as placas por mensagem. Prioridade máxima.
— Recebido. Dou retorno em dez minutos.
Alex desviou o olhar da estrada por um segundo.
— Vai querer fazer isso ainda hoje?
— Não durmo enquanto não tiver o sangue deles no chão. Fizeram isso aqui — apontei para minha camisa rasgada pelo tiro que quase me atingira. — Acharam que era só uma carga. Não sabiam que carregavam um recado.
Alex assentiu. Não precisava dizer mais nada.
Chegamos ao galpão ainda de madrugada. Os homens já estavam descarregando a mercadoria, enquanto outros vigiavam os arredores. Peguei um colete tático e coloquei por baixo da camisa. Na lateral do corpo, senti o peso confortável da minha Glock.
Em poucos minutos, o telefone vibrou.
— Senhor Rizzo. Localizamos um dos carros. Está escondido num galpão abandonado no fim da Via San Lorenzo.
— Mandem a localização para Alex. Vamos pessoalmente.
— Sim, senhor.
Encerrada a ligação, olhei para Alex, que já girava a chave de ignição. Tínhamos um endereço. Tínhamos um alvo. E eu estava com sede de sangue.
A noite estava mais fria do que o normal. Ao nos aproximarmos do galpão, sinalizei para que reduzíssemos a velocidade. Puxei o capuz do casaco escuro, cobrindo parte do rosto. Não que eu tivesse medo de ser reconhecido. Eu queria que soubessem quem os matou. Só não queria que soubessem quando.
Estacionei atrás de um caminhão velho, desligamos os faróis e saímos em silêncio. A estrutura metálica da porta do galpão denunciava que alguém havia passado por ali recentemente. Havia pegadas na terra seca. Três pares, provavelmente. Um terceiro homem?
Fiz sinal com a mão. Alex foi para a esquerda. Eu entrei pelo lado direito.
Não havia som algum. Apenas o eco dos meus passos. Por um momento, senti a adrenalina se espalhar pelas veias. Aquilo era o que eu conhecia. Era onde eu respirava melhor. O caos.
No fundo do galpão, dois homens estavam agachados diante de uma mala preta. Um deles apontava uma lanterna e mostrava ao outro algo no celular.
Levantei a arma, mirei na nuca do primeiro e disparei.
A bala perfurou com precisão. O sangue esguichou como uma fonte silenciosa.
O outro gritou e tentou correr, mas Alex apareceu do lado oposto, bloqueando a saída. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele atirou na perna do sujeito, que caiu aos berros.
Me aproximei, abaixei e agarrei o rosto dele com força.
— Quem mandou vocês interceptarem a carga?
— Eu não sei! — ele gritava, com a voz embargada de medo. — Pegamos a dica com um informante no porto. Diziam que o transporte era de ouro puro!
— Você sabia de quem era?
— Não! Eu juro! Só disseram que era dinheiro fácil!
— Nada no meu nome é fácil. — Sussurrei. E então puxei a faca do coldre de perna e passei pelo pescoço dele, num único movimento seco.
O corpo caiu sem mais resistência. A lâmina reluzia sob a luz fraca do lugar. Eu a limpei na camisa da vítima e me levantei, encarando Alex.
— Manda que limpem tudo. Queimem esse lugar.
— Vai querer dar algum recado?
— Não. Não é mais sobre avisos. É sobre silenciar os tolos que não entendem as regras do jogo.
Duas horas depois, já de volta à mansão, entrei no banho ainda com o sangue seco nas mãos. A água quente caiu sobre mim como se tentasse purificar a parte que ainda resistia dentro do peito. Uma parte que, sinceramente, eu nem sei se existe mais.
Lembrei da expressão da minha mãe no hospital. Da forma como ela segurava minha mão sem forças. Do grito de dor que atravessa décadas, todos os dias.
A máfia me criou. Mas a dor me moldou.
Saí do banho, vesti uma calça escura e fui até a varanda do quarto. O céu de Palermo estava limpo, com poucas estrelas. E eu ali, um predador silencioso em constante estado de alerta.
O telefone vibrou de novo. Dessa vez era Alex.
— Terminamos de limpar. Queimaram tudo. Sem rastros.
— Ótimo. E o terceiro homem?
— Ainda nada. Mas vamos achar.
Desliguei sem dizer mais nada.
Peguei meu charuto cubano preferido, acendi com calma e sentei na poltrona de frente para a escuridão.
A guerra estava longe de acabar. Mas enquanto eu respirasse, nenhum inimigo ficaria de pé.
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