A manhã começava a despontar sobre a vila costeira, tingindo o céu com tons suaves de dourado e lilás. Aos poucos, o mar refletia o espetáculo da aurora, como um espelho líquido estendendo-se até o infinito. Por entre as pedras gastas, a brisa marinha espalhava o cheiro salgado que impregnava cada casa, cada rosto curtido pelo sol e cada lembrança escondida entre as vielas.
Na pequena casa de madeira, próxima às palmeiras que balançavam em ritmo calmo, Marina já acordara antes do primeiro canto das aves. Ela mantinha a rotina que aprendeu desde menina: calçar as sandálias simples, prender o cabelo num coque apressado e apanhar a cesta para a pesca. Enquanto o mundo ao seu redor despertava, ela já cruzava a faixa de areia fina que separava o vilarejo da imensidão azul.
Esse ritual, repetido dia após dia, fazia parte da própria essência de Marina. Ela sempre foi assim — simples, determinada e profundamente ligada ao mar. Desde que o pai desaparecera num dia de tempestade, muitos anos antes, a jovem assumira a responsabilidade pelo sustento da casa. Não havia outra escolha. A vila, distante da agitação das cidades grandes, dependia da própria força para sobreviver.
Enquanto entrava lentamente na água morna, Marina estendeu a rede, concentrada. Os sons que a cercavam — o murmúrio das ondas, o farfalhar das folhas e o piar distante das gaivotas — eram uma música que ela entendia como ninguém. Seu olhar percorria a superfície, atento a cada reflexo que pudesse indicar a presença dos peixes que, num salto rápido, garantiriam o almoço da família.
Na casa que ficará para trás, Dona Rosa, a mãe de Marina, começava a preparar o fogareiro, cantarolando baixinho uma antiga canção. Ela nunca reclamava da própria sorte; aprendeu a enxergar a beleza nos detalhes simples da rotina: o aroma do café fresco, o calor do dia que começava e a esperança silenciosa que a filha trazia nos olhos sempre que voltava com a pesca do dia.
Assim era a vila: cheia de personagens que pareciam moldados pelo ritmo lento da própria maré. João “Pé-de-Vento”, o jovem pescador que crescera junto a Marina, passava as manhãs ajudando o tio a remendar redes e, sempre que podia, espiava a amiga por entre os barcos ancorados, esperando o momento certo para cumprimentá-la com um aceno tímido. Ernesto, o ambicioso empresário que há tempos planejava transformar a praia num destino turístico, fazia suas rondas periódicas, testando a resistência dos moradores com promessas que soavam tão vazias quanto os galpões que ele desejava derrubar.
E havia o velho Capitão Vitor, um marinheiro aposentado que mantinha os segredos do mar presos em suas histórias, narradas ao pôr do sol quando todos se reuniam à beira da fogueira para ouvi-lo. Ele sempre dizia que o oceano sabia mais do que os homens podiam compreender e que as correntezas mudavam de acordo com os corações que nelas navegavam.
Naquela manhã, o mar parecia especialmente generoso. Após algum tempo, Marina puxou a rede e sentiu o peso que a fez sorrir. Havia peixes prateados suficientes para o dia e o dia seguinte. Ela sabia que o trabalho nunca acabava, mas sentia-se grata por estar viva e por poder oferecer o que a natureza dava de bom grado.
Ao voltar para a areia, viu as pequenas casas dispostas num arco suave ao longo da praia. Algumas janelas começavam a se abrir, outras ainda permaneciam fechadas, escondendo os sonhos que seguiam embalados pelo calor das cobertas. Ela gostava de pensar que a vila vivia num ritmo próprio, quase como o balanço da maré — ora cheia, ora vazante.
Ainda que a vida ali fosse simples, Marina sabia que a vila guardava segredos que iam muito além do que os olhos podiam ver. Muitos falavam que o desaparecimento do seu pai fora obra de uma tempestade repentina, mas outros murmuravam que o mar nunca levava alguém por acaso. Ela nunca soube a verdade, apenas que ele nunca voltou e que sua mãe jamais deixou de esperá-lo.
Foi nesse clima entre a saudade e a esperança que Marina aprendeu a amar o mar como uma força indomável e protetora. O oceano, para ela, era ao mesmo tempo berço e túmulo, dádiva e mistério. Ela entendia que a única forma de viver plenamente ali era respeitando cada corrente, cada onda e cada promessa que ele fazia.
Enquanto pensava nisso, seguiu em direção à casa para entregar a cesta cheia à mãe. Ela sabia que, em breve, precisaria voltar ao mar e que o trabalho nunca terminava. Mas a esperança que sentia toda vez que o sol tocava a areia sempre a impulsionava a seguir em frente.
Ao longe, um ponto distante começava a aparecer no horizonte — um iate branco, de linhas elegantes, que cortava o mar com uma agilidade silenciosa. Era a primeira vez que Marina via uma embarcação tão grandiosa por ali. Ela parou por um instante, intrigada, mas logo voltou a caminhar.
Não sabia que a chegada daquela embarcação traria novos ventos para a vila. E que o marinheiro que a conduzia, Rafael, vinha com os olhos cansados de ver o mundo e o coração fechado para o amor.
Mal sabia Marina que o encontro entre eles mudaria o curso de suas vidas para sempre — pois há marés que nunca se repetem, e destinos que se cruzam quando menos se espera.
Assim, o dia avançava, lento e suave, como o mar que nunca para. E, entre as pedras gastas e as casas simples da vila, começava a soprar um vento diferente. Um vento que anunciava a chegada do inesperado.
O sol já havia subido um pouco mais quando Marina terminou de arrumar a última cesta de peixes sobre a bancada simples da casa. Ela limpou as mãos num pano velho, alisou o vestido desbotado e saiu para a varanda, onde o vento ainda trazia o cheiro salgado da manhã.
Dona Rosa cortava legumes num ritmo lento e cadenciado, que fazia o som da faca contra a madeira parecer uma melodia suave.
— Foi boa a pesca hoje? — perguntou a mãe, sem tirar os olhos da tábua.
— Foi, sim. Mais que ontem — respondeu Marina com um sorriso cansado, sentando-se num banco de madeira.
Enquanto isso, o murmúrio da vila começava a crescer. Crianças corriam descalças entre as casas, os homens mais velhos preparavam as embarcações e algumas mulheres estendiam roupas coloridas em cordas entre os coqueiros. Tudo parecia estar exatamente no lugar certo — como sempre fora.
Mas Marina não podia ignorar a sensação estranha que sentira na praia. Ela ainda pensava no iate que vira à distância, navegando silencioso como um intruso num cenário que nunca mudava.
— Tem alguma coisa te incomodando? — perguntou Dona Rosa, percebendo o olhar distante da filha.
— Nada demais, mãe. Só vi um iate diferente ancorar aqui perto.
A mãe soltou um pequeno suspiro e deixou a faca sobre a mesa.
— Visitantes ricos quase nunca passam por aqui — disse ela, com um tom pensativo. — Espero que só estejam de passagem.
Marina concordou em silêncio. Ela nunca fora muito interessada nesses forasteiros que apareciam uma vez ou outra para ver o “exótico” vilarejo. Mas algo nela sentia que desta vez as coisas poderiam ser diferentes.
Ainda assim, quando o dia avançou e o calor ficou mais intenso, Marina tratou de colocar essas preocupações de lado. Ela tinha muito o que fazer: ajudar a mãe, costurar algumas redes que João “Pé-de-Vento” deixara em casa para remendar e, depois, buscar água fresca no poço. Era uma rotina simples, mas cheia de pequenas responsabilidades que mantinham a casa funcionando.
Enquanto ela ajeitava os remendos da rede com agilidade, ouviu passos pesados vindo pelo caminho que levava até a casa.
— Marina! — chamou João, esbaforido. — Você viu o iate que parou ali perto?
— Vi sim — respondeu, levantando o rosto para encará-lo.
João tinha os ombros largos, a pele bronzeada pelo sol e um brilho intenso nos olhos que ele mal escondia quando olhava para Marina.
— Dizem que o dono do barco desembarcou pra dar uma volta. Parece que ele tem muito dinheiro — comentou ele, cruzando os braços com um ar desconfiado.
— E o que tem isso? — perguntou Marina, sem muito interesse.
— Nada — respondeu João, meio sem jeito. — Só que... essas pessoas sempre trazem problemas.
Marina ficou em silêncio. Ela sabia que João falava com uma preocupação sincera. Os turistas que passavam por ali nunca entendiam o valor do que a vila tinha. Queriam apenas consumir a paisagem e ir embora.
— Bom, vamos torcer pra que ele só esteja de passagem — disse Marina por fim, voltando a concentrar-se na rede.
Ainda assim, a sombra da preocupação pairava no ar. E não foi só João que notou isso — Ernesto, o empresário que vinha tentando comprar terrenos na vila há tempos, também soube da chegada do iate. Do alpendre da casa dele, com um charuto entre os dedos e os olhos apertados contra a luz forte da tarde, ele observava a embarcação como quem mede o valor de um prêmio.
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Ao entardecer, quando o céu se tingia de tons dourados e as sombras se alongavam pela areia, Rafael desceu da escuna e caminhou até a praia. Ele se sentia atraído por aquele lugar simples, quase intocado. Havia uma calma ali que ele nunca sentira antes, nem nos melhores portos por onde passara.
Seus passos o levaram até a beira d’água, onde a areia molhada fazia um caminho brilhante e fresco. Foi ali que ele viu Marina novamente. Ela terminava de recolher os últimos utensílios que havia levado para a pesca, concentrada como se não percebesse mais nada à sua volta.
Rafael hesitou por um momento. Depois, com um sorriso tímido, resolveu se aproximar.
— Boa tarde — disse, num tom gentil.
Marina virou-se, surpresa, e viu o rosto do estranho que antes só havia observado de longe.
— Boa tarde — respondeu, ajeitando o cabelo atrás da orelha num gesto automático.
— Você mora por aqui? — perguntou ele, com uma curiosidade genuína.
— Moro — respondeu Marina, sem saber muito bem o que dizer. Ela nunca fora boa em fazer conversas com desconhecidos.
Rafael apontou para o mar.
— É um lugar bonito. Parece que o tempo aqui corre diferente.
— Às vezes eu penso que ele nem corre — disse Marina, esboçando um pequeno sorriso.
Eles ficaram em silêncio por alguns instantes, apenas ouvindo o som das ondas. Rafael olhava para ela com um interesse que ia além da beleza simples que Marina possuía. Ela transmitia uma força tranquila, uma dignidade que ele nunca vira entre as pessoas que cruzavam o seu caminho em viagens apressadas.
— Meu nome é Rafael — apresentou-se ele por fim.
— Sou Marina.
Ele repetiu o nome baixinho, como quem guarda um detalhe precioso.
— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou, apontando para a rede que Marina segurava.
— Não precisa. Já estou acostumada — respondeu ela com um toque de orgulho.
A conversa entre eles era simples, mas cheia de significados que nem eles mesmos entendiam completamente. Rafael sabia que havia algo nela que o atraía como uma correnteza invisível. E Marina, apesar da desconfiança natural com forasteiros, sentia uma estranha calma quando ele falava.
Ao longe, no caminho que levava à vila, João observava os dois com o rosto fechado, sentindo o peito apertar num misto de ciúmes e preocupação. Ele nunca fora bom em demonstrar o que sentia por Marina, mas nunca antes sentira que pudesse perdê-la para alguém que vinha do mar com o mundo nos olhos.
Enquanto o sol mergulhava no horizonte e as primeiras estrelas começavam a surgir, o vento soprava suave entre as palmeiras. A vila adormecia devagar, embalada pelo som das ondas — e pelos passos incertos que começavam a trilhar novos destinos.
A noite caiu suave sobre a vila, espalhando um véu escuro pontilhado de pequenas luzes que vinham das casas simples. O som ritmado das ondas contra a areia trazia uma sensação de tranquilidade, mas para Marina, aquela noite estava longe de ser como as outras.
Ainda com a imagem do marinheiro estrangeiro na mente, ela ajeitava as últimas coisas dentro de casa antes de dormir. Dona Rosa já havia recolhido os pratos e começava a trançar o cabelo longo da filha, como fazia desde que ela era menina.
— Você está calada demais — comentou a mãe num tom baixo, entrelaçando as mechas com cuidado.
— Foi só um dia longo — respondeu Marina, evitando os olhos da mãe.
Dona Rosa soltou um suspiro compreensivo.
— Às vezes, um dia longo também pode ser um dia cheio de novos sentimentos — disse, num tom que Marina sabia que escondia sabedoria.
A jovem soltou uma risada curta e balançou a cabeça.
— É só um forasteiro que apareceu aqui por causa do mar, mãe. Amanhã ele parte e a vida segue como sempre.
Ainda assim, algo em seu peito dizia que aquele dia mudaria alguma coisa dentro dela. Quando finalmente se deitou, sentindo o frescor da brisa marinha que entrava pela janela, ficou encarando o teto, sem sono, revivendo o tom da voz e o olhar profundo de Rafael.
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Na manhã seguinte, Rafael acordou com o céu tingido por um rosa suave e o sol que começava a espalhar calor sobre o convés. O iate balançava levemente, mas ele não sentia a pressa de zarpar como de costume.
Ao ver o reflexo da própria imagem num espelho, perguntou-se por que o rosto que o fitava parecia menos agitado que o habitual. O dia anterior foi diferente. Havia algo nos olhos de Marina que o intrigava — uma intensidade que contrastava com a simplicidade da vila.
Sem pensar muito, decidiu que desceria novamente à praia. A tripulação que o acompanhava — capitão Vitor e alguns marinheiros — estranhou que ele fosse permanecer por ali, mas ninguém fez perguntas. Rafael nunca foi homem que se explicava demais.
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Enquanto isso, Marina já voltará à sua rotina. Às seis da manhã, lançava a rede novamente ao mar, sentindo a água fria contra a pele e o peso da esperança nos ombros. Pescava com a destreza que o tempo lhe dera, alheia ao que acontecia na vila.
Mais tarde, quando carregava o balde cheio de peixes, viu João sentado num velho tronco à sombra de um coqueiro.
— Tá esperando o que, João? — perguntou brincalhona, para cortar o clima sério que ele transmitia.
— Nada — respondeu ele, levantando-se devagar. — Ou talvez esteja esperando que esse forasteiro não vire a cabeça das moças daqui.
Marina riu, mas o tom da voz dele a deixou pensativa.
— Você acha que ele vai ficar? — perguntou com um interesse que não pôde disfarçar.
João deu de ombros.
— Esses ricos nunca ficam. Eles vêm, bagunçam o que encontram e depois somem. Você devia tomar cuidado.
Marina sentiu o rosto esquentar.
— Não preciso que cuide de mim, João. Sei me virar.
Ele a fitou em silêncio por um momento, como se quisesse dizer algo que nunca tinha coragem de dizer. Depois murmurou um “eu sei” quase inaudível e saiu andando em direção às casas da vila.
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A vila parecia agitada naquela manhã. Ernesto, o empresário que sempre aparecia com planos mirabolantes para a praia, fazia questão de circular com um ar cheio de importância. Dizia a todos que um novo investidor viria conversar com ele em breve — uma promessa que ele repetia há tempos.
E Capitão Vitor, sentado num banquinho à porta do bar, observava o vai e vem das pessoas, mascando um pedaço de tabaco e assoviando uma canção antiga que falava sobre amores e mares.
Foi nesse clima que Rafael voltou a aparecer, caminhando com calma e acenando de leve para quem o cumprimentava. Quando viu Marina entre as pedras, limpando os peixes com habilidade, sentiu novamente a mesma sensação que tivera no dia anterior — uma curiosidade quase magnética.
— Bom dia — disse ele, simples.
— Bom dia — respondeu Marina, tentando conter o sorriso que teimava em surgir.
— Pensei que nunca mais ia te ver — brincou ele, parando a alguns passos de distância.
— Difícil não me encontrar aqui — respondeu, apontando para o mar com o queixo.
Rafael não respondeu, apenas ficou ali por uns instantes, absorvendo a calma que vinha dela.
— Você tem planos para hoje? — arriscou.
Marina soltou uma risada curta.
— Tenho, sim. Sempre tenho.
Ele entendeu que a rotina dela era cheia de responsabilidades que ele nunca experimentara, e isso o deixou ainda mais admirado.
— Então — começou ele — que tal eu ajudar em alguma coisa? Não sou muito bom com rede, mas posso carregar as cestas.
A proposta soava quase absurda para um homem como ele, mas foi dita com tanta naturalidade que Marina ficou sem jeito.
— Você quer mesmo ajudar? — perguntou, estreitando os olhos.
— Quero — respondeu ele, decidido.
Sem saber bem por que, Marina assentiu. Rafael arregaçou as mangas e seguiu-a até a casa simples da jovem, equilibrando a cesta cheia de peixes como se fosse a coisa mais importante que já fizera.
Enquanto andavam lado a lado pelo caminho de terra, nenhum dos dois percebia que cada passo que davam traçava uma nova linha em seus destinos — uma linha que nem o vento, nem o mar poderiam apagar.
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