NovelToon NovelToon

CORAÇÕES DE SOMBRAS

A marca

...Capítulo 1 – A Marca...

Eu nunca gostei de limites.

Desde pequena, sempre senti uma inquietação que ninguém entendia — um desejo de ir além das cercas da vila, de tocar as árvores antigas da floresta proibida, de descobrir o que havia por trás dos contos sussurrados ao redor da lareira. “Histórias para assustar crianças”, diziam os anciãos.

Mas as histórias me chamavam, e hoje, pela primeira vez, eu cedi.

Não sei bem o que me guiou até ali. Talvez o céu estranho, encoberto por nuvens prateadas que jamais vi. Talvez a sensação de que algo — ou alguém — me esperava.

De qualquer forma, meus pés me levaram para além do portão oeste da vila, até a entrada esquecida da Floresta de Draelon.

A primeira coisa que percebi foi o silêncio.

Não o silêncio comum de um lugar isolado, mas um tipo de vazio que preenchia o ar. Nenhum pássaro, nenhum grilo, nenhum farfalhar de folhas.

Era como se o mundo tivesse parado de respirar.

Continuei andando mesmo assim, empurrada por uma urgência invisível.

A floresta era densa e escura, mas a luz da lua — incomum, tingida de vermelho suave — me iluminava o caminho. Havia algo hipnótico em tudo aquilo. As árvores pareciam se curvar, como se cochichassem segredos entre si. E, por um instante, achei ter escutado meu nome sendo sussurrado pelo vento.

— Mary...

Parei. O coração disparou.

"puta que pariu" - pensei.

Não havia ninguém.

Sacudi a cabeça e continuei. Eu devia estar ficando louca. Ou cansada demais. Mas o sussurro voltou, mais forte.

— Mary...

Agora sim, vinha de algum lugar à frente. Meus passos ficaram mais apressados, os galhos raspando meus braços, até que cheguei a uma clareira. E foi lá que tudo aconteceu.

No centro da abertura, envolto em sombras, estava alguém.

Um homem.

Ele não se moveu, mas eu soube, instintivamente, que ele me observava. Seu corpo era alto, envolto em um manto escuro como a própria noite. Não consegui ver o rosto, mas os olhos... os olhos brilhavam com uma intensidade sobrenatural. Escuros, mas não vazios. Eram olhos que conheciam dor, culpa... e algo mais que eu não consegui nomear.

— Quem é você? — minha voz saiu trêmula, mas firme.

Ele não respondeu.

Foi quando o chão tremeu levemente, e um som gutural cortou o ar — um rugido distorcido, vindo das sombras atrás de mim. Virei em pânico e vi a coisa.

Era enorme. Feita de fumaça, dentes e olhos vermelhos. Corria direto na minha direção.

Não tive tempo de gritar.

Mas ele teve tempo de agir.

O homem se moveu Rápido como o vento, surgindo entre mim e a criatura. Um brilho negro envolveu sua mão direita, moldando-se como uma espada feita de pura escuridão.

O monstro atacou, mas ele foi mais rápido. Em um movimento só, cortou o ar — e o ser se desfez em névoa, desaparecendo com um grito agudo que fez minhas pernas cederem.

Caí de joelhos. O coração martelava contra o peito. Meus olhos se voltaram para ele.

Ele olhou para mim — e então algo aconteceu.

Meu pulso esquerdo começou a arder, uma dor quente e crescente que me fez gritar. Tentei arrancar o casaco, mas era tarde. A luz já escapava da minha pele.

Um símbolo apareceu, dourado e brilhante, como se tivesse sido desenhado com fogo vivo. Era lindo e assustador. Um círculo com três pontas irradiando do centro, pulsando como um coração.

A marca.

O homem se aproximou lentamente. Agora eu via seu rosto. Jovem, mas com olhos velhos. Cansados. Sua voz soou baixa, mas carregada de algo que me prendeu o fôlego.

— Não era pra acontecer assim...

— O que você fez comigo? — sussurrei, apertando o pulso com força.

— Eu não fiz nada. Você apenas... despertou.

— Isso não faz sentido!

Ele olhou para o símbolo na minha pele e balançou a cabeça, como se aquilo mudasse tudo.

— É mais grave do que eu pensei — disse. — Você é uma marcada.

Tentei me levantar, mas minhas pernas ainda tremiam. A dor no pulso desaparecia aos poucos, mas a marca brilhava, silenciosa.

— Quem é você? — perguntei, de novo.

Ele hesitou por alguns segundos, depois respondeu:

— Bryan.

Não era um nome comum. Parecia ecoar. Estranho e familiar ao mesmo tempo.

Ele se afastou lentamente.

— Fuja da floresta, Mary. A luz que carregou hoje chamou mais do que você imagina.

— Espere! — gritei, dando um passo à frente. — Me explica! Que luz? Que marca? O que tudo isso significa?

Ele parou por um instante, sem se virar.

— Significa que sua vida nunca mais será a mesma.

E então ele desapareceu na escuridão, como se tivesse sido engolido pelas árvores.

Fiquei parada, sozinha, com o som da própria respiração e uma marca brilhando no pulso — como se o universo tivesse me escolhido para algo que eu não compreendia.

Eu me chamo Mary.

Tenho dezessete anos.

E, naquela noite, tudo mudou.

 

O guardião

## 🌑 Capítulo 2 – O Guardião

No dia seguinte, a luz do sol me pareceu falsa. Branda demais. Como se estivesse mentindo pra mim.

Acordei com a lembrança da noite anterior queimando por trás dos olhos. Não foi um sonho. A marca ainda estava lá. Discreta agora, mas visível. Um símbolo que parecia pulsar junto ao meu coração, como se tivesse vida própria.

Evitei o espelho. Não queria ver nos meus olhos o que eu já sabia: eu não era mais só Mary, a garota curiosa da vila.

Fiquei horas tentando entender o que havia acontecido. A criatura, a marca, aquele garoto chamado Bryan — e sua espada feita de escuridão. Tudo parecia saído de um pesadelo misturado com as histórias antigas que minha avó contava quando eu era criança. Só que agora... era real.

No fim da tarde, minha inquietação venceu o medo.

Peguei meu casaco, enfiei o capuz, e saí. A floresta parecia me chamar de novo. Cada passo que eu dava em direção a ela trazia um arrepio, mas eu não hesitei.

Fui até a mesma clareira.

E ele estava lá.

Bryan.

Como se nunca tivesse saído dali. Como se soubesse que eu voltaria.

Ele estava encostado em uma árvore, os braços cruzados. Assim que me viu, se endireitou, mas não falou. Apenas me observou. Seu olhar tinha o peso de quem carrega segredos demais.

— Então... tudo aquilo era verdade — falei, tentando não deixar minha voz vacilar.

Ele assentiu devagar.

— Eu queria que não fosse.

Silêncio.

— O que foi aquilo? A criatura. A marca. Você?

Ele deu um passo à frente, com cautela. Como se se aproximar de mim exigisse cuidado.

— Aquilo que te atacou foi um servo da sombra pura. Uma criação de Malcor.

— E quem é Malcor?

— Um antigo Guardião. Como eu.

O modo como ele disse "como eu" me fez congelar.

— Então... você é um deles?

— Não mais — respondeu, a voz firme. — Eu abandonei a Ordem quando descobri o que estavam fazendo.

— E o que estavam fazendo?

Ele hesitou, o maxilar tenso.

— Caçando os marcados como você. Destruindo o equilíbrio em nome do controle.

A palavra “caçando” fez meu estômago virar.

— Por quê?

— Porque vocês têm o poder da luz dentro de si. E isso ameaça todos que escolheram viver nas sombras.

Olhei para meu pulso. A marca parecia responder, latejando sob a pele.

— E por que você me salvou? Por que não me entregou?

Ele me encarou então, como se estivesse vendo algo muito mais profundo do que minha aparência.

— Porque quando te vi... algo dentro de mim silenciou.

Meu coração deu um salto. Quase me esqueci de respirar.

— Silenciou?

— Pela primeira vez, em muito tempo, eu não senti a escuridão me puxar.

Eu não sabia o que responder. Então fiquei quieta. Apenas o observei.

Bryan parecia ter uns vinte anos, talvez um pouco mais. Havia algo selvagem nele, e ao mesmo tempo... quebrado. Como se vivesse em guerra consigo mesmo. Ele era sombra e silêncio, e ainda assim, me fazia sentir segura.

— Você está em perigo agora, Mary. Depois do que aconteceu ontem, vão vir atrás de você.

— Eles... quem?

— Os Caçadores da Ordem. Eles vão sentir o despertar da sua luz. E não vão deixar você escapar.

O frio tomou conta de mim. Bryan deu mais um passo.

— Mas eu posso te proteger. Se você confiar em mim.

— E por que eu confiaria?

Ele ficou em silêncio por um segundo. Depois, se aproximou o bastante para que eu visse a marca escura em seu próprio pulso.

Igual à minha.

Mas invertida. Como se fosse o reflexo em um espelho.

— Porque estamos ligados — disse ele. — Desde antes de nos encontrarmos.

A noite caiu sobre nós como um véu.

E naquele instante, pela primeira vez, eu me perguntei:

Será que tudo o que me ensinaram até agora… era mentira?

--

Reflexos do passado

## 🌒 Capítulo 3 – Reflexos do Passado

Era estranho como, em poucos dias, minha vida havia se transformado.

Antes, tudo que eu conhecia era o calor da minha casa, o cheiro da terra molhada depois da chuva, as conversas na feira da vila. Agora, acordava com os sons da floresta me chamando e dormia com lembranças que pareciam não ser inteiramente minhas.

Bryan me esperava na clareira como de costume. Mas aquele dia estava diferente. O céu parecia mais cinzento, as árvores mais silenciosas. A brisa que antes dançava com as folhas agora cortava como navalha.

— Bom dia — falei, tentando quebrar o clima.

Ele apenas assentiu com a cabeça, os olhos presos no céu.

— Você sente isso? — perguntei.

— O ar... está tenso. Há algo se movendo entre os planos. Provavelmente, sentem sua presença agora. Sua luz.

Sentei sobre uma pedra coberta de musgo, observando-o. Havia algo nele que me fascinava, além do óbvio mistério.

Era a maneira como ele parecia carregar uma culpa silenciosa, como se sua alma estivesse rachada e tentasse esconder isso de mim.

— Você sempre fala de luz e sombra... como se fossem pessoas. Mas são mesmo? Ou é só forma de falar?

Bryan caminhou até mim, sentando-se ao meu lado. Seu olhar estava distante.

— Não são pessoas. Mas também não são só conceitos. A luz e a sombra são forças vivas, Mary. Elas têm vontade, impulso. E, acima de tudo, têm memória.

— Memória?

— A luz lembra. A sombra... nunca esquece.

Arrepios percorreram minha pele.

— Então... quando uso a luz, estou acessando algo que já foi?

— Não apenas o que foi — ele disse, encarando minhas mãos —, mas o que poderia ter sido. A luz mostra caminhos. Possibilidades. Mas também te cobra por cada escolha.

Aquilo me atingiu com força. Como se cada vez que eu despertava a luz, eu estivesse tocando um mundo de futuros ainda não vividos — e talvez, pagando por isso.

— Você fala com tanta certeza... como se já tivesse escolhido errado antes.

Ele fechou os olhos.

— Porque escolhi.

Um silêncio pesado se instalou entre nós.

— Eu posso te perguntar uma coisa? — arrisquei.

Ele assentiu, sem me olhar.

— Você já amou alguém?

Dessa vez, ele demorou para responder. O vento parecia ter parado, o tempo hesitava.

— Sim. — Sua voz saiu quase sem som. — Uma vez.

— E ela...?

— Era como você.

Fiquei em silêncio. Não sabia se me sentia honrada ou assustada com a comparação.

— O que aconteceu com ela?

— Ela morreu. Por minha causa.

As palavras caíram como pedras no meu peito. Bryan parecia feito de sombra naquele instante. A dor dele era algo físico, vivo, e preenchia o espaço entre nós.

— Você ainda a ama?

Ele virou o rosto em minha direção. Pela primeira vez, seus olhos se abriram completamente para mim. Eram abismos, e dentro deles havia uma tristeza que não combinava com a idade aparente de seu rosto.

— Ainda dói. E talvez sempre doa. Mas...

Ele se aproximou devagar, o rosto a poucos centímetros do meu.

— Há algo diferente em você. Algo que não me deixa fugir.

Meu coração acelerou. Senti o calor subir pelas bochechas.

— Bryan... isso é perigoso.

— Eu sei. Mas não estou aqui por segurança.

Por um instante, o mundo sumiu. Eu só sentia o calor da respiração dele, o cheiro das folhas ao redor, o brilho leve que saía da minha pele quando ele estava perto.

Nos afastamos no segundo seguinte, como se um feitiço tivesse sido quebrado.

— Eu não posso... — ele sussurrou. — Se eu cruzar essa linha, eles virão mais rápido. A Ordem. Malcor. Todos.

— Eu sei — respondi. — Mas não é mais uma linha. É um abismo. E já caímos nele.

Ele me olhou, como se minha resposta o desarmasse.

— Então que venham.

Aquela tarde, treinamos por horas. Bryan me ensinou a ouvir a floresta, a sentir a energia fluindo de dentro da terra e voltar por minhas mãos. Aprendi a moldar luz em pequenos feixes, a criar escudos ao redor do meu corpo.

Cada vez que usava meu dom, sentia uma parte adormecida de mim acordando. Era como se tivesse nascido para aquilo.

Mas o preço vinha logo depois — cansaço, tontura, visão turva.

— É normal — disse ele, me segurando quando quase caí. — Seu corpo ainda está se adaptando. Mas está mais forte do que eu imaginava.

— Isso é bom?

Ele sorriu.

— Isso é assustador.

Antes de irmos embora, ele parou na beira da trilha.

— Mary, eu preciso que você saiba... o que está vindo não será justo. Você vai ser julgada, caçada, traída. Tudo porque ousou carregar luz.

— E você?

— Eu estarei aqui. Até o fim.

Eu assenti.

Mas, no fundo, uma parte de mim sabia: o fim estava se aproximando. E talvez, quando chegasse, nenhum de nós dois estivesse pronto para ele.

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!