O aroma amargo de café queimado pairava no ar, misturado ao cheiro constante de madeira velha que impregnava a casa. Isadora descia as escadas da mansão com o coração apertado, o som seco dos saltos ecoando pelo corredor longo e frio como um aviso de que, mais uma vez, ela estava prestes a enfrentar mais um dia sufocante naquele lugar que chamava de lar… mas que nunca lhe ofereceu abrigo de verdade.
O relógio de parede, herdado de alguma geração que ela nunca conheceu, marcava sete horas da manhã. E como sempre, o Sr. Alberto Montenegro já estava sentado à cabeceira da mesa de jantar, com o jornal aberto e os óculos de leitura pendendo na ponta do nariz.
— Você está atrasada. — A voz dele cortou o silêncio como uma lâmina.
Isadora manteve a cabeça erguida, apesar da vontade de se encolher. O olhar dele, sempre frio, percorreu-a de cima a baixo como se ela fosse mais um objeto de sua coleção de decepções.
— Bom dia, pai. — Ela respondeu com a voz baixa, mas firme.
Pai… Uma palavra que ela repetia por obrigação, mas que nunca sentiu de verdade.
O café da manhã estava disposto na mesa como um ritual sem vida: pães quentes, frutas cortadas com precisão e café servido em xícaras de porcelana que pareciam caras demais para o ambiente emocionalmente miserável daquela casa.
Ao lado, Sofia, a irmã mais nova, sorria com aquele ar de inocência inconsciente. Ela mexia o chá com displicência, como se o mundo não fosse além da roupa nova que vestia ou da próxima festa que iria frequentar.
Isadora a observava com um misto de carinho e angústia. Fazia de tudo para proteger a irmã… e agora, mais do que nunca, sentia que alguma tempestade se aproximava.
— Temos uma reunião hoje à noite. — Alberto anunciou, fechando o jornal com força. — Uma decisão importante precisa ser tomada.
Isadora prendeu o ar por um instante. As palavras dele nunca eram soltas ao acaso. Quando Alberto Montenegro dizia que uma decisão importante estava por vir, significava que alguém sairia ferido… e geralmente esse alguém era ela.
— Que tipo de decisão? — Sua voz soou mais desafiadora do que ela pretendia.
Os olhos dele se estreitaram.
— Algo que garantirá o futuro da nossa família. — Ele olhou para Sofia por um breve momento, e depois voltou o olhar gelado para Isadora. — Você vai entender melhor quando os Bianchi chegarem.
O sangue de Isadora gelou.
Os Bianchi.
Ela já ouvira os rumores. A família que controlava metade das terras da região. Donos de negócios, propriedades e… escândalos. E, principalmente, donos de um herdeiro que, segundo diziam, era um fantasma social: Lorenzo Bianchi. Um homem que ninguém via, ninguém ouvia. Um mistério cercado de boatos.
Ela sabia o suficiente para entender que, quando os Bianchi se envolviam, significava que algo grande — e quase sempre doloroso — estava prestes a acontecer.
— Sofia... — A voz de Alberto cortou o fio de pensamento de Isadora. — Pode ir para o seu compromisso de hoje. Já providenciei o carro.
A irmã, alheia a toda tensão, levantou-se com um sorriso leve e beijou o pai na testa antes de sair, deixando Isadora sozinha com aquele homem que a observava como um predador pronto para atacar.
Foi só quando a porta se fechou atrás de Sofia que a verdade caiu como um peso de concreto no peito de Isadora.
— Não me olhe assim. — Ele se levantou lentamente, ajeitando o paletó com o cuidado de sempre. — Se tem alguém que deve agradecer, é você. Estou poupando a sua irmã de um destino que só cabe a uma filha... substituta.
O estômago de Isadora revirou.
— Você quer dizer que… — Ela respirou fundo, engolindo a dor e o orgulho. — Eu vou me casar com ele?
O sorriso satisfeito de Alberto foi a confirmação.
— Em breve. A visita de hoje é apenas o começo.
E então ele saiu, deixando-a sozinha naquele salão enorme e vazio, cercada por paredes carregadas de quadros antigos… e de um futuro que ela nunca escolheu.
Isadora sentou-se, sentindo as mãos trêmulas, o coração disparado e um nó na garganta que ameaçava sufocá-la.
O nome dele ecoava em sua mente como uma sentença:
Lorenzo Bianchi.
O homem que ninguém conhecia.
O homem com quem ela agora estava prometida.
O homem que, em breve, mudaria sua vida para sempre.
Isadora passou o resto da manhã trancada no quarto. Tentou ler, mas as palavras embaralhavam na página. Tentou bordar, mas os dedos tremiam tanto que a agulha escapava a cada ponto.
O vestido que usava parecia apertado demais. O ar dentro da mansão, rarefeito.
Ela caminhava de um lado para o outro, como uma presa enjaulada, enquanto a mente disparava hipóteses que a atormentavam:
Como seria ele? Será que os boatos eram verdadeiros? Será que ela conseguiria suportar esse destino por muito tempo?
Fechou os olhos, tentando afastar a imagem de uma vida ao lado de um homem frio, distante… ou pior, violento. Quantas histórias ela ouvira sobre casamentos forçados terminando em tragédias?
Mas o que mais doía, mais até do que o medo do desconhecido, era a certeza de que Alberto a estava sacrificando… como sempre fazia.
Ela era a peça descartável. Aquela que ele usava para limpar o caminho para Sofia.
À tarde, a movimentação na casa começou a mudar. Criados corriam de um lado para o outro, polindo talheres, ajeitando as cortinas, mudando arranjos de flores como se o próprio rei estivesse prestes a chegar.
Isadora, do alto da escada, observava tudo com um frio crescente no estômago.
— Senhorita, o Sr. Alberto pediu que a senhorita se vista adequadamente para o jantar desta noite. — Anunciou uma das empregadas, meio sem coragem de encará-la.
— Que horas eles chegam? — A voz dela saiu quase como um sussurro.
— Dentro de uma hora.
Uma hora.
Isadora sentiu o mundo girar. Respirou fundo e caminhou até o guarda-roupa. Escolheu um vestido azul profundo, com mangas longas e corte discreto, mas que ainda realçava suas formas. Não queria parecer provocativa… nem submissa. Queria parecer… forte. Mesmo que por dentro estivesse em pedaços.
Enquanto prendia os cabelos em um coque simples, olhou-se no espelho.
"Você é mais do que ele pensa. Mais do que todos eles pensam."
Repetiu para si mesma, tentando buscar coragem onde já não restava quase nada.
Quando desceu as escadas, a sala de estar estava cheia de flores e castiçais. A mesa de jantar reluzia com a prataria antiga da família. Sofia já havia voltado, deslumbrante em um vestido claro, parecendo alheia ao peso que a irmã carregava naquela noite.
O som de motores chegando na entrada da casa fez com que todos congelassem por um instante.
Alberto ajeitou o nó da gravata com um sorriso satisfeito e caminhou até a porta de entrada, recebendo pessoalmente os convidados.
Isadora ficou parada, próxima à lareira, sentindo o coração disparar.
— Os Bianchi chegaram. — Sussurrou uma das empregadas, quase como se dissesse o nome de uma maldição.
O primeiro a entrar foi um homem de meia-idade, de postura rígida e expressão de superioridade. Devia ser o pai de Lorenzo… ou algum parente próximo. Trajava um terno escuro impecável e olhava ao redor como se estivesse avaliando cada detalhe da casa.
Atrás dele… um silêncio.
Por um segundo, Isadora pensou que os boatos eram mesmo verdadeiros: o herdeiro era surdo e precisava de alguém para acompanhá-lo.
Mas então, ele surgiu.
Lorenzo Bianchi.
Alto. Ombros largos. Traços duros, másculos, como esculpidos em pedra. Os cabelos escuros penteados de forma impecável. O olhar…
De tirar o ar.
Aquela era a primeira coisa que Isadora pensou.
O olhar dele era de uma intensidade que ela nunca tinha experimentado. Escuro, atento… e perigosamente inteligente.
Não havia nada de frágil ou doente naquele homem. Nenhuma pista de deficiência. Nenhuma hesitação nos passos firmes que ele deu ao atravessar a sala.
A cada metro que Lorenzo avançava, o ar parecia se tornar mais denso.
Ele não a olhou de imediato. Cumprimentou Alberto com um aperto de mão rápido, depois direcionou o olhar para Sofia… e então, finalmente… para ela.
Os olhos dele a percorreram com calma, analisando, medindo, como se ela fosse um problema a ser resolvido… ou um jogo que ele ainda decidia se valia a pena jogar.
Isadora sustentou o olhar, mesmo com o coração disparado, mesmo com o sangue pulsando nas têmporas.
Ela não ia se dobrar.
Não naquela noite.
— Esta é minha filha… Isadora. — Alberto apresentou com um sorriso satisfeito, como se estivesse exibindo uma peça valiosa em um leilão.
Lorenzo inclinou levemente a cabeça em reconhecimento, mas não sorriu.
— Um prazer. — A voz dele era grave, profunda, e… perfeitamente audível.
Isadora engoliu em seco.
Definitivamente, ele não era surdo.
E naquele exato instante, ela percebeu que estava entrando num jogo muito mais perigoso do que qualquer um naquela sala imaginava.
Um jogo onde a primeira regra era clara:
Nada… absolutamente nada… era o que parecia ser.
O som dos talheres batendo suavemente contra a porcelana era o único som predominante na sala de jantar.
Isadora mantinha os olhos baixos, brincando com a comida no prato enquanto ouvia os adultos conversarem como se ela fosse apenas um enfeite decorativo naquela mesa opulenta.
A conversa girava em torno de negócios, contratos e alianças estratégicas. Palavras como “fusões”, “expansões” e “valores de mercado” eram lançadas com naturalidade, como se estivessem falando de algo tão trivial quanto o clima.
Lorenzo… permanecia em silêncio.
Ele comia com movimentos precisos, quase calculados, como se cada gesto fosse estudado.
Mas o que realmente deixava Isadora desconcertada era o fato de que, vez ou outra, ela percebia… os olhos dele sobre ela.
Não eram olhares longos, tampouco descarados. Eram rápidos, sutis… mas com uma intensidade que fazia sua pele arrepiar.
Ele a estava avaliando.
— Isadora… — a voz grave de Lorenzo a chamou de repente, pegando-a desprevenida.
Ela ergueu o rosto, encontrando aquele olhar escuro e impenetrável.
— Sim? — respondeu, lutando para manter o tom de voz firme.
Ele repousou os talheres com calma sobre o prato antes de falar novamente.
— Gosta de viver aqui? — A pergunta, à primeira vista, parecia inocente… mas o modo como foi dita carregava uma segunda camada de significado.
Isadora respirou fundo, sentindo o olhar de Alberto pesar sobre ela.
— Esta sempre foi minha casa. — Respondeu, com um leve sorriso ensaiado. — Não tenho muito com o que comparar.
Lorenzo arqueou uma sobrancelha, como se avaliasse a resposta.
— Imagino que logo terá com o quê comparar.
O tom dele era ambíguo. Nem doce, nem cruel. Apenas... provocativo.
O sangue de Isadora gelou. A confirmação de que o casamento estava praticamente fechado foi dita com a mesma naturalidade de quem comenta sobre a sobremesa.
— Lorenzo, querido… — A voz de Dona Patrícia Bianchi, mãe de Lorenzo, interrompeu, mudando o foco da conversa. — Espero que a moça esteja à sua altura. Depois de tantos anos… você finalmente aceitando uma união é motivo de celebração.
Isadora sentiu as bochechas queimarem.
— Mamãe… — Lorenzo sorriu de leve, mas havia algo irônico naquele sorriso. — Ainda é cedo para definições. Estamos apenas… nos conhecendo.
O olhar dele voltou para Isadora como um aviso.
Como se estivesse deixando claro que, apesar do contrato entre as famílias, a decisão final ainda era dele.
Alberto forçou uma risada tensa, tentando contornar a situação.
— Claro, claro… Mas tenho certeza de que os dois vão se dar muito bem. Isadora sabe ser uma companhia agradável.
Ela abaixou o olhar, contendo a vontade de revirar os olhos. Aquela fachada de pai orgulhoso era mais falsa que os sorrisos que circulavam pela mesa.
O jantar seguiu, mas a comida parecia perder o gosto a cada garfada.
Quando a sobremesa foi servida, uma torta de frutas vermelhas, Lorenzo levantou-se, surpreendendo a todos.
— Preciso de um pouco de ar. — Disse, retirando o guardanapo do colo.
Antes que Alberto pudesse dizer qualquer coisa, Lorenzo completou:
— Posso contar com a sua companhia, senhorita Isadora?
O silêncio na sala foi imediato.
Ela sentiu todos os olhares recaírem sobre ela. A respiração ficou presa na garganta. Mas, engolindo o nervosismo, assentiu.
— Claro.
Levantou-se com a graça que aprendeu a ter ao longo dos anos… sempre se equilibrando entre o orgulho e a obrigação.
Do lado de fora, o jardim da propriedade estava iluminado por pequenas lanternas penduradas nas árvores. O ar da noite era fresco, quase reconfortante, e o som distante dos grilos preenchia o silêncio.
Lorenzo caminhava à frente, mãos nos bolsos, até parar próximo ao lago artificial.
— Está nervosa? — A pergunta veio como um golpe inesperado.
Isadora parou a poucos passos dele, mantendo a distância.
— Deveria estar? — devolveu com uma frieza que ela nem sabia que tinha.
Lorenzo riu, um som baixo e rouco que fez o estômago dela revirar.
— Gosto disso. — Ele virou-se, encarando-a. — Gosto de quando alguém tem coragem de responder à altura.
Isadora permaneceu imóvel, mesmo com o coração disparado.
— Não sei o que espera de mim, senhor Bianchi. Mas quero deixar claro que não estou aqui por escolha própria.
Ele a observou em silêncio por alguns segundos. Depois deu alguns passos até ficar mais perto… perto o suficiente para que ela sentisse o cheiro amadeirado da colônia que ele usava.
— E você acha que eu estou? — O tom de voz dele era baixo, quase como uma confidência. — Acha mesmo que eu queria me casar com alguém escolhida por interesses de terceiros?
Isadora engoliu seco.
— Então estamos empatados.
Lorenzo sorriu de canto.
— Talvez. Mas a diferença… — ele se inclinou levemente, aproximando o rosto ao dela… os olhos fixos nos dela… — é que eu sei muito bem jogar esse jogo.
Antes que ela pudesse responder, Lorenzo se afastou, voltando a andar pelo jardim como se nada tivesse acontecido.
Isadora ficou parada, tentando recuperar o controle sobre a própria respiração… e sobre o turbilhão de emoções que aquele homem, com poucas palavras e um olhar certeiro, tinha acabado de despertar nela.
O resto da noite se arrastou como um castigo.
Depois da breve caminhada no jardim, Isadora voltou para o interior da mansão com os pensamentos em turbilhão. As palavras de Lorenzo ecoavam em sua mente como um aviso:
“Eu sei muito bem jogar esse jogo.”
Ela mal conseguiu tocar na sobremesa, e tampouco percebeu os olhares curiosos de Sofia, que, pela primeira vez, parecia notar que havia algo estranho naquela negociação entre as famílias.
Quando os Bianchi finalmente se despediram, com promessas de um novo encontro em breve, Isadora respirou fundo, como se fosse a primeira vez que o fazia naquela noite.
Subiu as escadas rapidamente, ignorando o chamado de Alberto no final do corredor.
Ela não queria ouvir mais mentiras, nem justificativas. Só queria ficar sozinha.
Dentro do quarto, ela trancou a porta e se permitiu finalmente desabar.
Sentou-se na beirada da cama, afrouxando o laço apertado do vestido, tentando aliviar a pressão sufocante no peito.
"Ele não é surdo…
Ele não é doente…
E ele definitivamente não é um homem fácil de manipular."
Pela primeira vez, Isadora teve a real noção da encrenca em que estava se metendo.
Lorenzo Bianchi era mais do que um noivo imposto. Era um adversário. Um homem com a mente afiada, o olhar de um estrategista… e o ego de alguém que não estava acostumado a perder.
Ela fechou os olhos, respirando fundo.
"Se ele gosta de jogos… vai ter o meu melhor jogo também."
Na manhã seguinte, o clima na casa estava mais pesado que nunca.
Enquanto tomava o café da manhã, Sofia entrou na sala com o sorriso doce de sempre, mas com um brilho curioso nos olhos.
— Então… — ela começou, sentando-se à frente de Isadora. — Como foi o passeio no jardim com o Sr. Bianchi?
Isadora ergueu os olhos devagar, fingindo indiferença.
— Um simples passeio.
Sofia apoiou o queixo nas mãos, com um sorriso provocativo.
— Hum… Estranho… porque, pelo jeito que ele te olhava ontem, não parecia tão simples assim.
Isadora congelou.
— Não viaje, Sofia.
— Só estou dizendo… — a irmã deu de ombros. — Ele pode ser estranho, reservado… mas é bonito. Muito bonito, aliás. Eu até agradeceria por você ter ficado com ele no meu lugar… se não estivesse tão claro que você está apavorada.
O sangue de Isadora subiu no rosto.
— Você não entende nada, Sofia. Nada.
Ela se levantou bruscamente, deixando a xícara de café pela metade, e saiu da sala antes que a irmã pudesse provocá-la ainda mais.
Enquanto atravessava o corredor, deparou-se com Alberto, que saía de seu escritório.
— Precisamos conversar. — Ele disse, sem rodeios.
— Se for sobre o casamento, eu já entendi o recado. — Ela rebateu com frieza.
Alberto a encarou com aquele olhar calculista, como sempre fazia quando queria intimidá-la.
— Não se engane, Isadora. Isso não é apenas sobre o que você entende ou não. É sobre o futuro desta família. Os Bianchi são a nossa única chance de salvação financeira. Você vai sorrir, vai aceitar, vai obedecer.
Ele se aproximou, diminuindo a distância entre eles.
— E vai fazer esse homem acreditar que você é tudo o que ele procura. Mesmo que precise engolir cada gota de orgulho para isso.
Isadora sentiu os olhos arderem, mas se recusou a chorar na frente dele.
— Eu nunca fui boa em fingir, pai.
— Então aprenda. — Ele virou as costas e desapareceu novamente no escritório.
Mais tarde, sozinha no quarto, Isadora olhou pela janela, observando o jardim onde, na noite anterior, sua vida tinha começado a mudar.
Ela sabia que a partir daquele momento, cada gesto, cada palavra, cada olhar entre ela e Lorenzo seria um movimento num jogo que ela não pediu para jogar… mas que, agora, era obrigada a vencer.
E mesmo com o medo crescendo dentro de si, havia uma parte de Isadora que queimava de raiva. Uma parte que queria provar que ela não era uma marionete, nem uma vítima.
Se Lorenzo queria brincar… ela também sabia jogar.
Ela respirou fundo, levantou-se e caminhou até o guarda-roupa.
"Se é guerra que ele quer… é guerra que vai ter."
O salão principal da mansão Montenegro nunca esteve tão cheio.
Lustres de cristal reluziam com uma intensidade quase ofuscante, refletindo nas taças alinhadas sobre as mesas. Arranjos de flores frescas decoravam cada canto, e garçons circulavam com bandejas de champagne.
A elite da cidade inteira parecia ter sido convidada para o evento que, até poucas semanas atrás, Isadora jamais imaginaria fazer parte: o anúncio oficial de seu noivado com Lorenzo Bianchi.
Isadora observava tudo de um canto da sala, o coração disparado e o estômago embrulhado. Vestia um vestido de seda cor de vinho, que Alberto mandara fazer especialmente para a ocasião. Os ombros estavam expostos, e o tecido abraçava seu corpo de forma provocante… demais para o gosto dela.
Ela sabia que era intencional. Sabia que seu pai queria exibi-la como um troféu. Um objeto bem polido para impressionar a família Bianchi… e a sociedade.
Sofia, como sempre, estava radiante. Conversava com um grupo de amigas perto da lareira, sorrindo e jogando olhares curiosos para Isadora.
Do outro lado da sala, Lorenzo estava encostado próximo ao bar, conversando com alguns empresários locais. O terno escuro impecável, a postura imponente… e aquele maldito ar de superioridade que parecia natural nele.
Mas o que mais chamava a atenção de Isadora era o quanto ele parecia completamente no controle.
Ele não parecia nem um pouco incomodado com tudo aquilo. Não demonstrava hesitação, nem constrangimento. Era como se aquele noivado fosse apenas mais uma jogada de negócios.
E talvez fosse.
O olhar dele cruzou com o dela por alguns segundos.
Isadora sustentou o contato. Orgulhosa. Firme.
Ele arqueou levemente uma sobrancelha, como se se divertisse com o desafio.
Ela apertou os punhos, lutando contra o desejo de virar o rosto.
O som de um copo sendo levemente batido chamou a atenção de todos.
Alberto subiu dois degraus da escadaria, de onde tinha uma boa visão do salão.
— Senhores e senhoras… — a voz dele ecoou, autoritária. — Obrigado pela presença de todos nesta noite tão especial para nossa família… e para os Bianchi.
O burburinho cessou. Todos os olhares voltaram-se para Alberto.
— Como alguns já devem ter ouvido… hoje celebramos a união de dois grandes nomes desta cidade. — Ele sorriu, satisfeito. — Tenho a honra de anunciar o noivado de minha filha… Isadora Montenegro… com o senhor Lorenzo Bianchi.
O salão explodiu em aplausos educados.
Isadora sentiu o chão faltar por um segundo. O som dos aplausos parecia abafado, distante, como se ela estivesse ouvindo tudo debaixo d’água.
Ela forçou um sorriso discreto, mantendo a compostura. Por fora, a imagem de uma jovem agradecida. Por dentro, um turbilhão de emoções que ela não conseguia nomear.
Lorenzo se aproximou com passos calmos, cortando o salão com sua presença imponente.
Quando parou ao lado dela, Isadora mal teve tempo de reagir antes que ele, com a mesma frieza ensaiada de sempre, estendesse a mão.
Ela hesitou apenas por um segundo… e então aceitou o gesto.
A mão dele era quente… firme… segura.
Ao invés de um abraço protocolar, Lorenzo a surpreendeu: levou a mão dela aos lábios, com um toque tão leve quanto calculado.
O gesto arrancou suspiros e cochichos das mulheres presentes.
Mas só Isadora percebeu o verdadeiro significado daquilo.
Era uma provocação. Um aviso silencioso.
— Parabéns ao casal! — Gritou alguém no meio da multidão.
Mais aplausos. Mais brindes.
Isadora manteve o sorriso de fachada enquanto os convidados vinham um a um parabenizá-los, desejar felicidades, elogiar o “belo casal”.
Mas a cada nova saudação, ela sentia a respiração ficando mais curta. A garganta mais apertada.
Ela queria fugir. Correr. Se esconder.
Mas não podia.
Não naquela noite.
Quando finalmente tiveram um momento a sós, já perto do final da festa, Isadora aproveitou para enfrentá-lo.
Encontrou Lorenzo próximo ao jardim, onde poucos convidados circulavam naquela hora.
— Isso é um teatro. — Ela disse, parando diante dele, com o coração acelerado.
Lorenzo a observou, com aquele meio sorriso torto que ela já começava a odiar… ou a temer.
— Todo casamento é. Pelo menos no começo.
— Você está se divertindo com isso, não está? — Ela o acusou, os olhos faiscando.
Ele deu um passo à frente, diminuindo perigosamente a distância entre os dois.
— Estou me divertindo… com você. — A voz dele saiu baixa, rouca… mas com uma intensidade que a fez perder o ar por um segundo.
Ela ficou imóvel, o olhar preso ao dele.
Mas antes que pudesse encontrar uma resposta à altura, Lorenzo apenas sorriu de canto… e saiu andando, deixando-a ali… sozinha com seus próprios pensamentos e um coração em chamas.
A madrugada avançava, e a casa finalmente começava a silenciar.
Os convidados já tinham ido embora, e o som de risos, brindes e música agora dava lugar ao eco abafado dos passos dos empregados recolhendo copos vazios e arrumando o salão.
Isadora permaneceu por alguns minutos na varanda, respirando o ar frio da noite, tentando acalmar a mente que parecia em chamas.
Ela ainda sentia o toque dos lábios de Lorenzo em sua mão, como se ele tivesse deixado ali uma marca invisível, um lembrete incômodo de quem realmente estava no comando daquela situação.
Seu vestido já começava a incomodar, o tecido justo demais contra a pele, como se refletisse o sufoco que ela sentia por dentro.
— Está tarde para ficar sozinha aqui fora. — A voz grave e inconfundível quebrou o silêncio, fazendo-a se virar de imediato.
Lorenzo estava ali, encostado no batente da porta que dava para o jardim. As mãos nos bolsos do paletó, o olhar fixo nela.
— Não sabia que agora tinha um horário estabelecido para respirar. — Isadora respondeu, com o tom levemente ácido.
Ele sorriu, um sorriso preguiçoso… quase divertido.
— Não gosto de mulheres que desafiam. Mas admito… você tem talento.
Isadora cruzou os braços, sustentando o olhar dele.
— Não sou uma das suas secretárias, nem uma das mulheres que você está acostumado a dispensar, Sr. Bianchi. Se está procurando alguém submissa, talvez devêssemos encerrar isso antes mesmo do casamento acontecer.
Por um breve momento, ela achou que ele fosse rir da ousadia dela.
Mas o que veio foi um passo à frente. Depois outro.
E então, Lorenzo estava perto… muito perto… o suficiente para que ela sentisse o calor dele invadir o espaço ao redor.
Ele inclinou-se ligeiramente, os olhos negros fixos nos dela.
— Não me subestime, Isadora. — A voz dele saiu baixa, mas carregada de aviso. — Eu sempre termino o que começo.
Ela sentiu o corpo inteiro reagir, o coração disparando, a pele se arrepiando de forma involuntária.
Antes que pudesse responder, ele recuou um passo, como se o momento nunca tivesse existido.
— Boa noite, futura Sra. Bianchi. — Ele disse, com um sorriso quase cínico, antes de virar-se e desaparecer para dentro da casa.
Isadora ficou ali, imóvel, lutando contra a vontade de gritar… ou de chorar… ou talvez de fazer os dois ao mesmo tempo.
Horas depois, deitada na cama, ela encarava o teto do quarto com os olhos abertos, o sono longe de chegar.
O vestido já estava largado numa cadeira, os cabelos soltos, mas o corpo inteiro ainda parecia em estado de alerta.
Ela revivia cada detalhe daquele olhar… daquele sorriso torto… daquela ameaça velada.
Isadora sabia que Lorenzo estava jogando… provocando… testando os limites dela.
E, por mais que uma parte dela desejasse fugir de tudo aquilo, havia outra parte… mais sombria e orgulhosa… que se recusava a ceder.
Ela não ia quebrar.
Não por ele.
Não por ninguém.
Virou-se na cama, fechando os olhos com força.
"Você começou esse jogo, Lorenzo Bianchi…
Mas quem vai dar as cartas… sou eu."
E com esse pensamento, finalmente, adormeceu.
Mal sabia ela que o que viria a seguir… seria apenas o começo.
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