O som da chuva fina batendo contra a janela era a trilha sonora de todas as tardes daquela cidade esquecida. Um lugar onde as pessoas se conheciam pelo nome, mas ninguém realmente se importava com os detalhes da vida alheia. E era nesse cenário de anonimato e rotina arrastada que vivia Luna. Uma menina de dezessete anos que parecia carregar o peso de um silêncio que ninguém conseguia decifrar. Ela caminhava pelos corredores da escola como se fosse invisível, com os ombros encolhidos, os olhos sempre voltados para o chão e um caderno surrado nas mãos, onde rabiscava mundos melhores do que o que tinha ao redor. Os colegas de sala mal percebiam sua presença, e quando percebiam, era apenas para soltar um comentário maldoso ou uma risada abafada enquanto ela passava.
Os professores já haviam se acostumado a sua voz baixa, suas respostas monossilábicas e ao modo como ela evitava qualquer tipo de exposição. As amizades, essas eram inexistentes. Nos intervalos, enquanto os outros adolescentes se amontoavam em grupos barulhentos, Luna preferia o banco isolado próximo à biblioteca, onde podia observar o céu cinza através das janelas, se perguntando se, em algum lugar do mundo, existia alguém que a enxergasse de verdade. Ela tinha medo de muita coisa: de falar alto, de errar, de ser notada… Mas o que mais a assustava era a ideia de passar a vida inteira naquele estado de invisibilidade emocional. O quarto dela era o único refúgio onde se permitia ser quem realmente era, e mesmo ali, a companhia era apenas o som da caneta deslizando sobre as páginas de seu diário, onde escrevia histórias de personagens corajosos que viviam tudo aquilo que ela jamais ousaria viver.
A relação com a mãe era de cuidado excessivo, o tipo de proteção que, ao invés de confortar, criava ainda mais barreiras. Dona Marina, viúva há anos, via em Luna uma menina frágil demais para o mundo lá fora e fazia de tudo para mantê-la distante de qualquer risco, de qualquer aventura, de qualquer contato que pudesse, de alguma forma, machucá-la. Era uma rotina sufocante de escola, casa e mais nada. Aos poucos, Luna foi se acostumando com essa vida sem cor, onde as emoções eram reprimidas e os sonhos... bem, os sonhos eram deixados apenas no papel.
Mas naquela manhã, algo diferente pairava no ar. Um peso estranho, como se o universo segurasse a respiração à espera de um acontecimento. Luna não sabia explicar, mas desde que abriu os olhos, havia uma ansiedade nova dentro do peito. O céu parecia mais carregado que o normal, e uma névoa espessa cobria as árvores do parque que ela via da janela do quarto. Algo dentro dela dizia que aquele dia não seria como os outros, mas por mais que tentasse, ela não conseguia imaginar que a partir dali, tudo o que conhecia sobre si mesma, sobre o mundo e até mesmo sobre o conceito de certo e errado, estava prestes a desmoronar. E era justamente no instante em que ela decidia, sem muita convicção, pegar um caminho diferente para voltar da escola, que o destino começava a se mover, silencioso e inevitável... Como as batidas de um coração que, mesmo em silêncio, já estava pronto para amar.
O céu daquela tarde parecia mais pesado que nunca, como se carregasse o prenúncio de algo que o mundo ainda não estava preparado para presenciar. As nuvens se acumularam em tons de cinza e chumbo, rodopiando como se um redemoinho invisível as puxasse para o centro de um vórtice oculto. No alto de tudo isso, muito acima do que olhos humanos poderiam enxergar, uma guerra silenciosa acontecia. Lá, entre as camadas de luz e sombras, um anjo caía. Suas asas, outrora feitas de pura energia dourada, agora se retorciam em chamas de um branco pálido que queimava com a fúria de quem foi traído pela própria essência. Ele gritava, mas nenhum som atravessava as dimensões. Tudo o que restava era a sensação de queda, uma queda eterna, um mergulho sem volta no desconhecido.
Seu corpo atravessou as camadas atmosféricas como uma estrela cadente que fugia do céu, deixando atrás de si um rastro luminoso, breve e perturbador. No último instante antes do impacto, seus olhos se abriram e tudo o que viu foi a sombra da floresta se aproximando como uma boca prestes a engoli-lo. O choque contra o solo foi devastador. Árvores estremeceram, folhas voaram como se uma explosão silenciosa tivesse acontecido ali. O chão se abriu em pequenas rachaduras e, no centro de tudo, ele permaneceu imóvel, respirando com dificuldade, sentindo as costelas fraturadas, as asas completamente destruídas e o gosto amargo da derrota na boca.
Havia raiva queimando dentro dele. Uma fúria que o fazia querer gritar, mas a dor o calava. Ele tentou se levantar, mas as pernas não obedeciam. Os dedos cavavam a terra úmida enquanto a mente dele se afundava em pensamentos de ódio, vergonha e desprezo. Como pôde ser expulso daquela maneira? Como pôde ser traído pelos próprios irmãos celestiais? Tudo por causa de uma única escolha, um único erro, uma única desobediência. Ele, que antes caminhava entre as estrelas, agora estava ali… largado em um pedaço de terra esquecida por Deus, sujo, sangrando e sem qualquer poder para reverter sua condição. A cada segundo, sentia a essência angelical se esvair, como areia entre os dedos.
Enquanto a garota caminhava, distraída com seus próprios pensamentos, desviando-se dos galhos e concentrada em fugir da realidade sufocante da sua rotina, o universo traçava um caminho inevitável entre eles. Ela ainda não sabia, mas aquele passo em direção à floresta não era apenas uma simples caminhada de fim de tarde.
A noite começava a cair, e com ela, o frio se tornava quase insuportável. O corpo dele, acostumado à ausência de temperatura, agora tremia, conhecendo pela primeira vez a sensação de vulnerabilidade física. Ele olhou em volta, os olhos estreitos, tentando captar qualquer sinal de vida, mas tudo o que viu foi a sombra das árvores balançando com o vento e o som de animais distantes que pareciam farejá-lo, como predadores sentindo o cheiro de uma presa enfraquecida. A ideia de estar à mercê de perigos tão terrenos o enchia de desprezo por si mesmo. Como um ser tão poderoso pôde cair tão baixo?
Por horas ele permaneceu ali, imóvel, a mente oscilando entre lembranças de batalhas no céu e a realidade cruel daquele novo mundo. Ele se lembrou do momento exato em que foi julgado… da sentença proferida com palavras cortantes… da expressão fria daqueles que um dia o chamaram de irmão. Uma mistura de orgulho ferido e arrependimento rasgava por dentro. Por mais que odiasse os humanos, ele sabia… agora fazia parte desse mundo, e sua sobrevivência dependeria de se adaptar, mesmo que a cada respiração sentisse o gosto amargo da humilhação.
Uma neblina densa cobriu toda a floresta. As estrelas estavam escondidas, como se até elas se recusassem a testemunhar sua vergonha. Em meio à dor, um pensamento insistente martelava sua mente: ele precisava se recuperar… precisava encontrar uma maneira de voltar ao que era… ou pelo menos… precisava encontrar um propósito que justificasse todo aquele sofrimento. Mal sabia ele que esse propósito estava mais próximo do que imaginava… caminhando distraidamente em direção àquela mesma floresta… carregando um coração tímido… e um destino entrelaçado ao dele de uma forma que nenhum dos dois jamais poderia prever.
O silêncio era cortado apenas pelo som das folhas sendo arrastadas pelo vento, e mesmo assim, ele conseguia ouvir algo além... uma vibração estranha no ar, como se o próprio tempo estivesse hesitando em avançar. De olhos semicerrados, ainda deitado sobre o solo frio, o anjo caído tentou se concentrar. Seu instinto gritava que algo, ou alguém, se aproximava. Não era uma ameaça, não parecia ser... mas também não era algo que ele pudesse ignorar. O calor fraco de uma presença humana começou a invadir o perímetro de sua consciência, e com um esforço quase sobre-humano, ele moveu o rosto na direção de onde vinha aquele fluxo de energia. Uma fração de esperança quase imperceptível brilhou em sua expressão antes de desaparecer tão rápido quanto veio. Ele não queria precisar de ajuda. Não queria dever nada a ninguém. Mas a verdade cruel era que, naquele momento, qualquer forma de salvação vinha como um sopro de vida em meio ao colapso.
Era o início de uma colisão de destinos. Cada batida fraca do coração dele parecia ecoar com mais força à medida que ela se aproximava. E quando finalmente seus pés tocaram o limite onde o solo se partira pela queda, ela parou. O olhar confuso de Luna encontrou, ali no meio da escuridão e da terra revirada, a figura caída de alguém que parecia ter caído de um lugar muito além das nuvens. E foi nesse instante, entre o medo e a curiosidade, que o fio invisível entre os dois foi amarrado, selando um laço que nem o próprio céu conseguiria desfazer.
O chão parecia vibrar sob os pés de Luna quando ela se aproximou ainda mais daquela cena estranha e inexplicável. Havia algo naquela figura caída que a fazia sentir um misto de medo e fascínio. O corpo dele estava parcialmente coberto por folhas e galhos quebrados, como se a própria floresta tivesse tentado esconder sua presença. As roupas, se é que se podia chamar aquilo de roupas, eram como tecidos rasgados e chamuscados, colados à pele de um jeito que revelava marcas profundas de queimaduras recentes. Mas o que mais chamou a atenção dela foram as costas dele... mesmo com a pouca luz e a névoa densa, ela conseguiu ver duas formas retorcidas, como se algo imenso tivesse sido arrancado à força dali. Havia sangue, terra e vestígios de penas espalhadas pelo chão. Por um segundo, Luna pensou em voltar correndo, em fingir que nunca tinha visto aquilo. Mas havia algo naquele homem, ou fosse lá o que ele fosse, que a prendia ao lugar como se os pés estivessem enraizados.
Ela respirou fundo, o coração batendo descompassado, e se ajoelhou com cuidado ao lado dele. Estendeu a mão trêmula para tocar o ombro do estranho, mas antes mesmo de conseguir encostar, ele abriu os olhos. Um par de olhos que não tinha cor definida... uma mistura hipnotizante de tons dourados e âmbar, como se o próprio fogo tivesse se materializado ali dentro. Por um instante, Luna ficou paralisada. O olhar dele era intenso, carregado de uma dor que ela jamais havia presenciado em alguém antes, mas ao mesmo tempo... havia uma força, uma raiva, uma luta silenciosa para continuar respirando. Ele tentou se mover, o corpo reagindo com espasmos, e a expressão no rosto dele era de puro instinto de defesa, como se esperasse um ataque a qualquer momento. Mas ao ver a expressão assustada de Luna, ele parou. Por mais confuso que estivesse, algo naquela menina parecia diferente... o jeito como ela o olhava, com medo, sim, mas também com uma estranha compaixão.
Sem saber exatamente o que fazer, Luna pegou o celular do bolso e ligou a lanterna, iluminando melhor o rosto dele. Foi então que percebeu os pequenos detalhes: a pele parecia mais quente do que o normal, quase febril, e havia marcas estranhas nas têmporas dele, como cicatrizes que pareciam brilhar levemente quando a luz tocava. As mãos dele estavam sujas de terra, mas as unhas... eram mais afiadas que o comum. Nada fazia sentido, e ainda assim, uma voz dentro dela insistia que ela não podia deixá-lo ali, abandonado naquele estado. Engolindo o medo, ela disse, quase num sussurro: "Eu... eu posso te ajudar. Se você me deixar." O anjo não respondeu de imediato. Seus olhos apenas continuaram fixos nos dela, como se estivesse analisando cada batida de seu coração, cada centelha de intenção. Era como se ele pudesse ouvir os pensamentos dela, sentir os medos mais escondidos.
Com esforço, ele tentou se erguer, mas o corpo não respondia. Um gemido baixo escapou de seus lábios, e Luna, num impulso que nem ela mesma entendeu, passou o braço por debaixo dos ombros dele, tentando ajudá-lo a se levantar. A tarefa era quase impossível. Ele era pesado, e ela, com seu corpo franzino, mal conseguia sustentá-lo. Mas algo dentro dela dizia que desistir não era uma opção. A cada passo arrastado, Luna o conduziu pela trilha de volta, usando toda a força que tinha. O caminho até a casa dela parecia interminável, como se o tempo tivesse decidido desacelerar só para testar sua resistência. Ela sabia que, ao chegar, teria que inventar uma desculpa para a mãe... talvez dissesse que encontrou um morador de rua ferido, ou que ele sofreu um acidente. Mas, na verdade, nem ela conseguia formular uma história convincente, porque no fundo, sabia que aquele homem não era comum.
Quando finalmente chegaram, com o corpo dele praticamente desmaiado sobre os ombros frágeis dela, Luna o acomodou no pequeno sofá da sala, rezando para que a mãe não acordasse. Correu até o banheiro, trouxe toalhas, água e uma caixa de primeiros socorros improvisada. O que ela ainda não sabia, era que aquele simples ato de cuidado seria o primeiro elo de uma corrente que mudaria a vida dos dois para sempre. Enquanto limpava os ferimentos dele, percebendo que alguns simplesmente não cicatrizavam como deveriam, ela não conseguia afastar a sensação de que algo grande, algo maior que ela própria, havia acabado de começar. Naquele instante, em meio ao cheiro de sangue e terra molhada, Luna olhou para o rosto dele e percebeu... pela primeira vez na vida... que estava envolvida em algo que desafiava toda a lógica, toda a razão… e principalmente… todo o medo que ela sempre teve do desconhecido.
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