(Narrativa de Savena)
O vento frio do outono acariciava meu rosto enquanto eu me curvava para juntar as folhas alaranjadas espalhadas na entrada da nossa nova casa. Senti o cheiro úmido da terra misturado com o aroma das folhas secas, e por um instante, me peguei lembrando do Brasil — do calor, dos sons das crianças correndo pelas ruas e da cozinha cheia de cheiro de comida boa. Aqui em Gary, Indiana, tudo era diferente: mais silencioso, mais contido. Eu me sentia pequena e deslocada nesse lugar estranho.
Minha mãe e eu tínhamos nos mudado para os EUA para que ela pudesse trabalhar, ela conseguiu um emprego de merendeira em uma escola local, com ajuda de um conhecido dela de infancia.
Enquanto juntava as folhas, ouvi passos e risadas se aproximando. Levantei o olhar e vi um grupo de meninos atravessando a calçada em direção à casa ao lado. Eles pareciam irmãos, com traços parecidos e uma cumplicidade fácil entre eles.
O mais falante, Tito, percebeu que eu estava ali e me lançou um sorriso largo, daqueles que parecem esconder alguma travessura.
--Oi! -- Disse ele com a voz suave.
Meu rosto ficou quente. Não sou muito de falar com estranhos, especialmente quando estou sozinha e com a sensação de que não pertenço.
— Oi... — consegui responder, quase sem jeito, enquanto segurava as folhas com mais força.
Foi aí que ele apareceu, andando um pouco atrás dos outros.
(Narrativa de Michael)
Eu vinha andando com meus irmãos para casa, depois da escola, quando notei a garota do outro lado da calçada. Ela aparentava ter 1,50 e alguma coisa de altura, era baixa, magra, pele negra de um tom mais claro que o meu, cabelos crespos com cachos lindos. Ela estava abaixada, juntando folhas, com um jeito tímido, meio estranho para aquele bairro. Algo nela chamou minha atenção — talvez a solidão no olhar ou o jeito que ela parecia tão pequena diante daquele mundo frio.
Eu tinha 17 anos, com meu Black Power volumoso e o rosto marcado por algumas espinhas que denunciavam minha idade. Mas o que eu mais gostava em mim eram meus olhos castanhos — grandes, sinceros, capazes de enxergar além do que os outros viam.
Sem pensar muito, assim que Tito saiu da minha frente falei:
— Oi... — disse com a voz baixa, tímida, estendendo a mão para ela.
Eu não esperava que ela fosse apertar, nem que meu sorriso bobo fosse provocar aquela reação no seu rosto.
(Narrativa de S****avena)
Quando ele estendeu a mão, meu coração quase parou por um segundo. Senti um calor subir pelo rosto, o rosto ficando quente mesmo com o vento frio. Olhei para aqueles olhos castanhos tão doces e sinceros, e de repente, o silêncio entre nós parecia um momento mágico, como se o mundo tivesse parado só para a gente.
— Oi. — respondi, quase num sussurro, com um pequeno sorriso tímido.
Mas antes que pudéssemos continuar, uma voz grave e ríspida cortou o ar.
— ENTREM LOGO, JÁ DISSE! — gritou o pai deles, da porta da casa.
(Narrativa de Michael)
O chamado do meu pai fez a magia do momento desaparecer num instante. Encolhi os ombros, resignado, mas antes de entrar, virei para ela e disse:
— Até mais...
Lancei um último olhar, cheio de esperança e um pouco de tristeza — queria que ela soubesse que aquele momento não seria o fim.
(Narrativa de S****avena)
Fiquei parada ali, olhando para as folhas caírem de novo ao meu redor. Meu coração ainda batia acelerado, e um sorriso involuntário apareceu no meu rosto. Aquele encontro inesperado tinha despertado algo em mim, algo que eu não conseguia explicar.
Sabia que aquele olhar, aquele pequeno “até mais”, tinha mudado tudo.
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(Savena, foto gerada por IA)
(Michael na época, foto tirada da internet)
(...Savena)
O sol mal aparecia naquela manhã. As nuvens cinzentas cobriam o céu, e o ar parecia mais frio do que o normal. Mesmo assim, eu sentia uma energia elétrica percorrer meu corpo. Primeiro dia de aula numa escola nova. Num país novo. Tudo em mim era ansiedade e expectativa.
Minha mãe, Lúcia, já tinha saído de casa mais cedo. Ela trabalhava na Roosevelt School como merendeira, e foi por isso que consegui a vaga ali. Antes de sair, ela me deu um beijo na testa e tentou me encorajar:
— Você vai arrasar, filha. Vai dar tudo certo.
Me olhei no espelho com atenção. Escolhi minha roupa com cuidado: uma calça jeans escura, uma blusa azul clara de mangas compridas e prendi o cabelo finalizei meus cachos definindo-os levemente. Passei um pouco de brilho nos lábios e coloquei a pulseira que minha mãe derá no meu ultimo aniversário quando completei 16. Era o meu amuleto de coragem.
Respirei fundo e fui.
(...Michael)
Quando cheguei na escola, tudo parecia igual a qualquer outro dia: corredores cheios, vozes misturadas, gente correndo pra não perder o sinal. Eu caminhava devagar pelos corredores estreitos com os lockers azuis, com os fones no ouvido, mas sem música tocando. Era só pra evitar conversa fiada.
Na terceira aula, entrei na sala de História como sempre. Me joguei na minha carteira, penúltima da fileira do meio, e comecei a desenhar no canto da folha enquanto a professora organizava os papéis.
Foi aí que ouvi o nome dela.
— Pessoal, essa é a Savena Fonseca. Ela veio do Brasil. Sejam gentis.
Levantei o olhar, curioso. E lá estava ela... A garota das folhas. A mesma que eu tinha visto no quintal, no dia anterior. Meu coração bateu um pouco mais rápido. Senti um sorriso surgir, quase sem querer.
(...Savena)
Quando a professora me apresentou, senti todos os olhos da sala sobre mim. Minhas mãos tremeram.
Caminhei em silêncio até o fundo da sala, com a respiração curta e a cabeça cheia de pensamentos em português e inglês misturados.
E então... vi ele.
Ele me olhou de um jeito surpreso, mas com aquele sorriso de novo... Aquele sorriso que ele tinha me dado no primeiro dia em que nos vimos. Senti meu estômago dar um salto. Escolhi uma carteira na fileira do lado, uma atrás da direção dele, tentando fingir que era só coincidência.
Durante a aula, de vez em quando, nossos olhares se encontravam. Ele parecia querer falar algo... mas sempre hesitava.
(...Michael)
Cada vez que eu virava o rosto, pegava ela me olhando. Ou... talvez fosse eu que ficava encarando demais. Não sei. Tinha alguma coisa nela que chamava a minha atenção de um jeito estranho, mas bom.
Quando o sinal bateu, a sala virou um formigueiro de gente levantando e saindo correndo. Eu fiquei parado, encostado no batente da porta, esperando ela passar.
Quando ela se aproximou, juntei coragem.
— Você fala bem inglês... mas tem um sotaque bonito.
(...Savena)
Minha vontade foi de enfiar a cabeça dentro da mochila de tanta vergonha. Mas acabei soltando um riso baixo, meio sem jeito.
— Obrigada... Ainda misturo as palavras... Às vezes esqueço até como se fala "borracha".
(...Michael)
Soltei uma risada de verdade dessa vez.
— Eraser, né? — falei, achando graça na sinceridade dela. — Eu também misturo palavras às vezes. Falo "man" dentro de casa e meu pai já grita logo.
(...Savena)
Ri junto, mas com cuidado.
— Ele parece... rigoroso. — comentei, escolhendo bem as palavras.
Vi o sorriso de Michael dar uma pequena diminuída. Ele abaixou o olhar, suspirou e deu de ombros.
— Ele é... exigente. Mas... acho que é só o jeito dele.
Depois voltou a sorrir, como se quisesse mudar de assunto.
— Você mora na casa ao lado, né?
— Sim. — respondi, e então perguntei: — Você tem muitos irmãos?
(...Michael)
Não consegui segurar a risada.
— Muitos. Quer que eu conte? — falei, rindo. — Marlon, Tito, Jermaine, Jackie, Randy... e ainda tem as meninas, LaToya e Janet! Tem dia que nem eu lembro quem é quem.
Ela riu também. Parecia que o gelo entre nós estava começando a derreter.
De repente, antes que ela fosse embora, me veio uma ideia... e um pouco de coragem.
— Quer... que eu te mostre a biblioteca depois do almoço? — perguntei, com a voz mais baixa, quase com medo de ouvir um “não”.
(...Savena)
Meu coração disparou. Por um segundo, hesitei... Mas depois, respirei fundo e assenti.
— Quero sim.
(..Michael)
Senti um sorriso escapar antes mesmo de perceber. Um sorriso de verdade.
Naquele corredor gelado, com o barulho das portas se fechando e os alunos correndo, algo dentro de mim soube... que aquele era só o começo.
(...Savena)
A tarde estava morna e silenciosa quando Michael me levou até a biblioteca da escola Roosevelt. As estantes altas cercavam o lugar como muralhas silenciosas, guardando o tempo em páginas antigas. A luz suave, filtrada pelas janelas grandes, iluminava os livros empoeirados e as mesas de madeira gasta.
Ele caminhava à frente, mas de vez em quando se virava pra ter certeza de que eu o acompanhava. As mãos dele estavam nos bolsos de um casaco bege, e havia um nervosismo leve no olhar.
(...Michael)
— Essa aqui é minha parte favorita da escola — falei, parando em frente a uma seção de livros sobre música, cultura afro-americana e biografias de artistas. — Quando tudo tá barulhento demais… é aqui que eu fujo.
Fiquei observando a reação dela. Ela olhava ao redor com os olhos brilhando, como se estivesse entrando num outro mundo.
(...Savena)
— Eu gosto de livros. Mas no Brasil eu lia mais poesia. Às vezes... escrevia também.
Falei baixo, quase como se fosse um segredo só meu.
(...Michael)
Virei o rosto rápido pra ela, surpreso.
— Sério? Você escreve?
Ela assentiu, encolhendo os ombros de um jeito tímido, mas bonito.
(...Savena)
— Não é nada demais... É só… coisas que eu sinto. Eu sempre fui mais quieta... então escrevia pra me entender.
(...Michael)
— Isso é lindo. — Falei sem pensar, com sinceridade demais. Mas era verdade. Me peguei preso nos olhos dela, com uma vontade boba de saber mais. — Você devia mostrar um dia.
(...Savena)
— Talvez... — sorri pequeno.
A gente se sentou num canto perto da janela. Ele tirou um caderno de anotações de dentro da jaqueta. Abriu nas páginas do meio, e me mostrou algumas folhas cheias de rabiscos, letras de músicas e frases soltas.
(...Michael)
— Às vezes eu escrevo letras aqui. Não mostro pra quase ninguém. Mas... — fiz uma pausa, meio envergonhado. — Posso confiar em você.
(...Savena)
Segurei o caderno com todo o cuidado do mundo. Como se fosse uma coisa frágil, feita de vidro.
— Você é muito sensível. Não imaginava. — comentei, folheando devagar.
Meus olhos pararam num trecho que dizia:
"Why do we close our eyes to the things that hurt?"
"Why do we run from the truth we know first?"
Aqui está a tradução:
(Tradução)
"Por que fechamos os olhos para as coisas que machucam?"
"Por que fugimos da verdade que sabemos primeiro?"
Li em voz baixa, quase sussurrando.
(...Michael)
Dei um sorriso pequeno, meio tímido.
— Eu sou... diferente do que esperam às vezes.
(...Savena)
— Eu entendo. — Falei de um jeito que nem precisei explicar. Acho que ele sentiu.
Respirei fundo. Sabia que era a hora de contar um pouco de mim também.
— No Brasil... a vida nunca foi fácil. Meu pai foi embora quando eu nasci. Nem sei como era o rosto dele. Minha mãe, Lúcia, criou todos nós sozinha. A Flávia é a mais velha tem 6 anos a mais que eu — ela é tipo uma segunda mãe pra mim. Depois tem o André, o Diego e o Bruno com quase lum ou dois anos de diferença entre eles... e eu, a caçula com 16.
(...Michael)
Fiquei olhando pra ela, tentando imaginar como devia ter sido tudo isso.
— Deve ter sido difícil…
(...Savena)
Assenti devagar.
— Foi. Mas minha mãe sempre fazia parecer que a gente tinha tudo, mesmo com tão pouco. Mas Flávia ajudava fazendo bolos para vender e cuidava da gente pra minha mãe trabalhar. Eu não tive avós, nem tios próximos... Era só minha mãe, trabalhava em dois empregos. Ela fazia bolo de fubá nos domingos pra gente fingir que era festa.
(...Michael)
Ri com carinho, imaginando a cena.
— Sabe… minha mãe também é a base de tudo. Ela é um anjo. Às vezes eu acho que sou quem sou por causa dela... e... apesar do meu pai.
Ela me olhou de um jeito que não precisava de palavras. Um olhar que dizia: "Eu sei exatamente como é."
(...Savena)
— Você tem medo do palco? — perguntei, tentando mudar de assunto, mas ainda curiosa.
(...Michael)
Sorri e olhei pra uma fresta de luz entrando pela janela.
— Sempre. Toda vez. Mas quando a música começa... é como se tudo calasse dentro de mim. Até o medo. Só a música fala.
(...Savena)
— Deve ser maravilhoso sentir isso. — disse, encostando o queixo na palma da mão, totalmente hipnotizada pelo que ele dizia. Já tinha ouvido falar deles os Jacksons 5 mas nunca liguei muito.Mas ali, naquele momento isso havia mudado.
(...Michael)
— Eu queria que você visse um ensaio nosso. — falei de repente, sem nem pensar muito. — Acho que... seria legal ter você por perto. Não só na plateia. Tipo... nos bastidores também.
(...Savena)
Abri os olhos, surpresa.
— Você me colocaria nos bastidores do Jackson 5? — perguntei, fingindo espanto.
(...Michael)
Ri.
— Colocaria no palco se quisesse. — disse baixinho.
(...Savena)
Nós dois rimos juntos. E, por um momento, parecia que toda aquela biblioteca tinha sido feita só pra gente.
MAIS TARDE NAQUELE DIA....
(...Savena)
O caminho de volta pra casa parecia mais curto, como se as ruas tivessem decidido me empurrar logo pra frente só pra eu chegar mais rápido. Carregava nos olhos aquele brilho novo... uma mistura de felicidade tímida e expectativa. A tarde tinha sido leve e cheia de conversa boa. A gente falou sobre tudo... histórias de infância, desenhos que ele fazia no caderno, frases que eu gostava de livros antigos… Até sobre sonhos.
(...Michael)
Eu não conseguia parar de olhar pra ela. Cada vez que Savena ria, era como se o som ficasse preso dentro de mim. Falei pra ela que meu sonho era escrever músicas que curassem as pessoas, que fizessem elas se sentirem menos sozinhas. Ela me contou que queria ajudar mulheres como sua mãe. Só ainda não sabia como…. Aquilo mexeu comigo de um jeito que eu nem sei explicar.
(...Savena)
Quando a gente parou em frente à minha casa, fiquei com vontade de prolongar aquele momento. O vento esfriava, mas eu sentia um calor gostoso por dentro. Michael mexeu nas próprias mãos, parecia nervoso.
(...Michael)
— Ei... amanhã depois da aula... se você quiser... pode ir lá no ensaio — falei, tentando soar casual, mas por dentro meu coração batia rápido. — É só bater no portão. Eu aviso pro Joe que é importante.
(...Savena)
Arregalei um pouco os olhos, meio brincando, meio falando sério.
— Ele é bravo, né?
(...Michael)
Soltei uma risada curta e balancei a cabeça.
— Um pouco... — admiti. — Mas... se minha mãe souber que você é minha amiga... ela te protege.
(...Savena)
Eu ri junto. Era fácil rir com ele. O jeito dele fazia o mundo parecer menos pesado.
— Boa noite, Michael.
(...Michael)
— Boa noite, Savena. — Acenei com os dedos, me afastando devagar, mas com vontade de ficar ali mais um pouco.
(...Savena)
Fiquei ali parada, vendo ele sumir aos poucos na penumbra, até a porta dele se fechar. Entrei em casa ainda com aquele sorriso bobo no rosto. Joguei a mochila num canto e me joguei na cama, ainda com o uniforme da escola. Abracei o travesseiro como se pudesse guardar aquele dia dentro dele.
E, pela primeira vez desde que cheguei em Gary, Indiana... eu me senti... em casa.
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