[APRESENTAÇÃO – ÉRICA GONÇALVES]
Meu nome é Érica Gonçalves. Vinte e nove anos, policial civil, lotada na 58ª DP, integrante da CORE. E se você nunca ouviu falar de mim… ótimo. É sinal de que tô fazendo meu trabalho direito. Porque quem me conhece, ou tá preso, ou tá no caixão.
Sou filha do caos. Órfã desde os 15, quando dois filhos da puta invadiram minha casa, meteram bala nos meus pais e saíram rindo enquanto eu tremia atrás do sofá com uma faca na mão e nenhum plano. Desde aquele dia, o medo virou munição. Eu não fui pro fundo do poço, eu virei o próprio poço. Frio, escuro e fundo o bastante pra engolir qualquer um que pense em me subestimar.
Não sou mulher de batom nem de selfie. Sou mulher de coturno sujo, olho afiado e dedo leve no gatilho. Não vim pra ser esposa de ninguém, muito menos pra esperar autorização. Homem frouxo não me serve. Se não aguenta minha guerra, não tenta minha cama.
Já ouvi de muita gente que eu sou “difícil”. Que eu assusto. Que falo grosso, que não sei brincar. Sabe o que eu respondo?
“Vai procurar boneca. Eu sou granada sem pino.”
Não tenho tempo pra amor. Tenho tempo pra operação. Pra missão. Pra quebrar porta e invadir barraco no grito. Minha adrenalina vem do estampido de ponto 40, do cheiro de pólvora no uniforme, da sirene rasgando a madrugada.
Hoje, o delegado me chamou. Sabia que vinha merda.
Bati na porta com a autoridade de quem já viu o inferno e voltou com uma bala cravada no colete.
— Gonçalves, entra — ele disse.
Entrei sem pedir licença. Meu nome já é a permissão.
— Delegado Ribeiro. Érica Gonçalves, pronta pro combate.
Ele me olhou por um segundo. Aquele olhar de quem sabe que se disser a coisa errada, pode levar um esporro antes de terminar a frase.
— Temos uma operação. Morro da Posse. O alvo é o “Fera”. Criminoso invisível, sem rosto, sem identidade. Mas com um histórico que faz até traficante da velha guarda mijar nas calças. A PM vai subir, mas a gente precisa da CORE no apoio. E você foi a primeira que me veio na cabeça.
Eu respirei fundo. Olhei pra ele sem piscar.
— Se ele for tão perigoso assim… vai ser um prazer pessoal colocar esse filho da puta no chão. Só me diz onde eu assino.
Ele sorriu, tenso.
— Vai ser arriscado, Gonçalves. Pode não ter volta.
— Delegado… — aproximei, deixei o tom baixar, só pra cortar mais fundo — ...eu morri aos quinze. O que sobrou aqui é só munição carregada em forma de mulher.
APRESENTAÇÃO DO FERA
Eu sou o Fera.
Não porque quis, mas porque o mundo me fez assim — um animal treinado pra matar, comer, mandar e sumir com quem respira torto. Nasci na merda e virei rei do esgoto. Me respeita quem me deve. Me obedece quem quer viver.
Minha mãe? Uma puta barata que meu pai arrancou do asfalto e enfiou no barraco. Ela me deu a vida e ele me ensinou a tirar. Quando eu tinha treze anos, esse desgraçado me jogou uma pistola no colo e mandou: “mata tua mãe ou tu morre junto.”
Eu matei. Chorei, vomitei, tremi. Mas matei.
Depois disso, nunca mais chorei. Nunca mais tremi. Nunca mais hesitei. Me tornei o monstro que ele queria. Só que mais inteligente. Mais cruel. Pior.
Meu pai me tratava como cachorro. Me batia, me prendia, me usava. Dizia que eu era o herdeiro dele, o sucessor da desgraça. Me criou no ódio, na bala, no estupro emocional. Aos dezoito, me levou numa boate cheia de mulher quebrada. Colocou uma na minha frente e disse: “faz ela virar tua.”
E eu fiz.
Sem pena. Sem beijo. Sem nome. Fudi como se ela fosse minha inimiga. Como se eu tivesse que rasgar ela pra provar que sou homem. Gozava onde queria, cuspia na cara e jogava o dinheiro como quem joga lixo no chão. E mandava vazar. Sempre.
Porque pra mim, ninguém fica.
Quando fiz vinte, vi ele na boca, sentado como rei, com uma das putas dele de joelho, chupando o pau. Me olhou e deu risada. Não falei nada. Mirei. Atirei. Matei ele. Matei ela. Matei o passado.
Naquele dia, o morro ficou sem dono. No dia seguinte, eu era o dono da porra toda.
Hoje, quem manda na Posse sou eu. O tráfico passa por mim. O fuzil canta por mim. A boca gira porque eu deixo. Quem não anda na linha, desaparece. Eu sou a sombra que corta a luz. Sou o fim da estrada.
Não acredito em Deus. Não rezo, não peço, não agradeço. Eu tomo. Eu queimo. Eu executo. Sou o demônio disfarçado de chefe.
E tão dizendo aí que a polícia quer subir. Que tão vindo com uma mulher na frente, uma tal de Érica Gonçalves.
Policial civil, CORE, cheia de trauma e vontade de mudar o mundo com coldre na cintura. Coitada.
Quero ver ela subir achando que vai fazer justiça. Quero ver ela bater de frente achando que é especial. No meu morro, mulher fardada vira alvo igual a qualquer um. Vai morrer com a mesma bala. Vai sangrar igual.
Se subir aqui, vai descer no saco preto.
Eu sou o Fera.
E nessa selva de concreto rachado, eu sou o predador final.
Tava na minha sala, só de bermuda, peito suado, baseado colado no canto da boca e a Glock no colo como se fosse parte do meu corpo. A luz fraca piscando no teto, a fumaça dançando no ar. O silêncio do morro era barulho pra mim.
A porta arrombou com força. Um dos meus vapores entrou cuspido do medo, correndo que nem rato. Tava branco, gaguejando, suado até o cu.
— C-chefe... a PM vai subir. T-tão vindo forte, caveirão, civil junto. Tão dizendo que quem comanda é a Érica Gonçalves...
Levantei devagar. Traguei fundo. A calma do meu gesto era pior que grito.
— Não sabe bater na porra da porta, não, verme? Tá achando que aqui é bar? Porra?
Ele balbuciou alguma desculpa. Nem ouvi. Já tava com a mão no ferro.
— Deixa eles subir. Quero ver cada farda rasgada, cada verme de coturno implorando ar com chumbo no pulmão. Quero ver sangue nas escadas, grito nos becos, desespero nas rádios.
Pisei o baseado no chão com a sola molhada de suor, peguei o rádio.
— Atenção, porra. Avisa geral: barricada fechada, fuzil travado no osso. Quem tiver com medo, desce agora. Quem ficar, fica pra matar.
Pausei. E rosnei mais forte:
— Essa Érica? Se ela botar o pé aqui, não matem logo. Quebrem. Façam ela rastejar no chão do barraco, pelada e chorando. Quero amarrada, cuspida, esfolada viva. Quero ela consciente enquanto a justiça dela morre engasgada no próprio sangue.
Soltei o botão. Olhei pro vapor de novo.
— Espalha isso. O morro vai matadouro. E o cheiro de farda queimada vai subir até a puta que pariu.
NARRADO POR FERA
Fera: “Deixa essas porra subir. Não tenho medo de nenhum deles. Vou derrubar um por um, nem que eu tenha que pisar no pescoço.”
Juninho tava com o olho arregalado, igual rato vendo ratoeira armada. Falou, gaguejando:
Juninho: “Senhor... dizem que dessa vez tão vindo com reforço. CORE, BOPE... a porra toda.”
Soltei a fumaça do baseado devagar, o cheiro tomando conta da sala. Olhei pra ele como quem encara um verme.
Fera: “Então pega tuas tralhas e desce do meu morro. Aqui não tem espaço pra medroso. Se tu treme diante de farda, vai vender bala no sinal. Aqui, ou mata ou morre. Tá com medo? Some da minha vista.”
Juninho: “Não, Fera... eu fico. Tô contigo.”
Fera: “Então fecha a boca e faz o que mandei. Vai avisar o informante pra deixar eles subirem. Quero eles lá em cima, achando que têm o controle. Porque não vão descer. Vão virar parte da terra.”
O moleque saiu quase tropeçando nas próprias pernas. Fiquei sozinho, o gosto amargo do ódio na boca. Eles acham que vão me pegar, que vão me prender... esses filhos da puta tão iludidos. Já tentaram antes. Sempre falham. Não porque eu me escondo. Mas porque eu mato primeiro.
Se entrar no meu morro... é sentença de morte. E sentença comigo se cumpre na bala.
Subi na minha XJ, acelerei rasgando a rua. O povo abria caminho como mar pro diabo passar. Cheguei na goma — casa escondida no alto, de onde eu vejo tudo. Tudo mesmo. A empregada já tinha feito o corre: comida quente, cama arrumada, mas nenhuma alma viva no meu caminho. Não gosto de conversa fiada.
Entrei direto pro meu quarto. Tiro a camisa, deixo cair no chão. Entro no banho, a água quente limpando só a pele, porque por dentro... o sangue já tava fervendo. Saio, pego outro baseado, acendo.
A fumaça sobe. E comigo sobe o plano de guerra.
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ERICA GONÇALVES
— “Eu aceito.” — falei, sem piscar. — “Se for pro abate, me chama. Só me diz a hora.”
— “Ainda estamos ajustando os detalhes. Essa operação tem que ser cirúrgica. Não quero ninguém nosso deitado no chão, entendeu?”
— “Entendi, senhor. Se ele for o diabo... eu sou o apocalipse.”
Levantei. Minha bota estalando no piso ecoou no silêncio da sala. Saí com a equipe atrás de mim, cada passo meu dizendo "essa missão tem dono."
Foi quando ele apareceu.
Marcos Moura.
PM, figurinha carimbada de abuso e arrogância. Encostado na parede, igual cachorro de beco. Me agarrou pelo braço com força.
Escolha errada.
Girei o corpo como cobra acuada. Arranquei o braço com brutalidade, já com o dedo tremendo de vontade de puxar gatilho.
— “Solta, Moura. Ou vai sair daqui sem os dentes.”
Ele riu. Aquela risada nojenta que só sai da boca de homem frouxo.
— “Calma, Gonçalves. Só queria dizer que... você chama atenção. E que, talvez, a gente pudesse fazer uns... acordos.”
Desceu o olhar pelo meu corpo com descaro. E completou:
— “Eu te protejo... e você me dá o que eu quero.”
Foi aí que o mundo apagou por um segundo. Só sobrou o meu punho atravessando o ar.
O soco veio com o peso de todas as mulheres da corporação.
O som do osso quebrando ecoou como disparo. O nariz dele se desfez na hora. Sangue espirrou no uniforme. Ele caiu de joelhos.
— “Você cruzou a linha, seu verme. Isso é assédio. E eu sou a porra da líder da equipe. Vai juntar teus dentes no chão e sumir daqui. Porque se eu te pegar de novo, eu te arranco a farda com a bala.”
Ele gritou, tapando o rosto:
— “Desgraçada! Isso vai te custar caro!”
— “Vai, sim. Vai te custar a carreira, Moura. E sorte a tua que eu não te matei no corredor.”
Deixei ele lá. Sangrando. Humilhado. Quebrado.
Do jeito que todo canalha devia terminar.
Saí com o peito inflado e a cabeça erguida. Entrei no carro, liguei o motor, socando o volante com força. O ronco do motor abafou o barulho da minha raiva.
Ali, no reflexo do retrovisor, vi quem eu era:
Não era mulher. Não era policial. Era tempestade vestida de colete.
E se o Fera fosse mesmo o rei daquele morro…
Então ele que reze. Porque a rainha tá subindo armada até os dentes. E com sede de justiça.
FERA
Tava de saco cheio das bocetas murchas do meu morro.
As mesma vadia de sempre, rebolando na esquina como se meu pau tivesse carência. Como se eu fosse um dos qualquer, desses que goza só com peito de fora.
Não sou. Nunca fui.
Já comi todas. Já caguei pra todas. Não tem mais gosto. Não tem mais graça. Tava tudo mofado.
Hoje, eu queria sangue novo. Cara nova. Alma suja, mas diferente. Vadia que cuspisse fogo, não que lambesse minha bota pedindo migalha.
Botei a Glock na cintura, camisa preta colada no peitoral, perfume barato com cheiro de pecado e o capacete no antebraço. Subi na moto, e deixei o escapamento cantar pela cidade.
A noite era minha cadela. E eu tava com fome.
Cheguei na boate do centro. Ambiente fedendo a ego e porra seca. Muita pose, pouca moral. Luz colorida. Música romântica de merda. Bar cheio de otário pagando bebida pra puta falsa que só sabe gemer com o PIX certo.
Pedi uma tequila braba. Daquelas que arde mais que traição. Acendi um cigarro e fiquei ali, encostado no balcão, olhando tudo com cara de desprezo.
Aí veio ela.
Morena, peito turbinado, riso fácil. Rebolado de quem pensa que tem o mundo na buceta.
Veio deslizando a mão no meu peito, se achando.
— Oi, gato... te vi aqui sozinho. Tava pensando em te fazer companhia...
Peguei a mão dela com força. Frio. Sem olhar.
— Me solta, porra. Não gosto de puta me encostando.
Ela arregalou os olhos.
— Calma aí... não tô aqui pra ser maltratada.
Virei de frente, encostando meu peito no dela.
— E eu não tô aqui pra ser lambido por cadela de balada. Alguém te chamou? Não, né? Então vaza. Some da minha frente antes que eu enfie tua dignidade no bolso da tua calcinha.
Ela recuou, tremendo. Dei as costas, larguei umas notas em cima do balcão e saí.
Nem aqui na cidade tem mulher que me dá tesão. Tô de saco cheio dessa raça de plástico.
Subi na moto, pronto pra voltar pro meu trono de escuridão. Mas foi aí que eu vi.
Um carro parado. Três motos cercando. Cinco homens armados cuspindo bala. Farol iluminando a guerra.
Lá dentro, uma mulher. Sozinha.
E ela não era qualquer uma.
Tava reagindo. Tava metendo tiro. Se abaixando, rastejando, se virando com os dentes cerrados.
De longe, dava pra ver o fogo no olho dela.
Mas aí… aí veio um dos filhos da puta pelas costas dela. Dedo no gatilho.
Eu atirei.
A bala comeu seco, explodiu a testa do cara. O sangue espirrou no parabrisa.
Ela virou.
Olhou direto pra mim.
E puta que me pariu... eu nunca vi um olhar igual.
Era raiva e gratidão. Era gelo e inferno. Era... minha próxima obsessão.
Mais três vieram. Meti bala. Um caiu com o peito aberto. Outro com a garganta furada. O último tentou correr, mas meu tiro comeu a coluna dele.
Ela ficou ali. Me olhando. E quando ela se virou eu sumi na noite.
Sem nome. Sem dívida. Sem rastro.
ÉRICA GONÇALVES
Já era noite alta e eu tava a dez minutos do meu apartamento. Dez minutos da minha cama, da minha garrafa de uísque, da minha solidão merecida. Mas a cidade tinha outros planos.
Vi as luzes surgirem pelo retrovisor. Três motos. Rente, milimétricas. O tipo de formação que não deixa brecha. O tipo de ataque que não é de ladrão comum — é de quem sabe exatamente o que tá fazendo.
O instinto falou antes da mente: freiei bruscamente, travei o carro e me abaixei, puxando a Glock. O blindado aguentava. Mas até quando?
Dei um tapa no rádio com a mão esquerda.
— Érica Gonçalves. Unidade Alfa-7. Emboscada! Rua Marechal Teodoro, próximo à padaria Canna. Três motos, cinco homens armados. Reforço urgente. URGENTE, caralho!
Silêncio.
Nem chiado.
Nem resposta.
Nem Deus.
O estômago gelou. A garganta travou. Fui largada.
E não foi erro. Não foi falta de sinal. Foi escolha.
Peguei minhas armas e me preparei. Eles estavam cercando meu carro como hienas. Um já vinha de fuzil erguido. Atirei direto no meio do peito dele, vendo o colete levantar fumaça vermelha.
Saí pela porta traseira, rastejando. O asfalto arranhando minha pele, os tiros zunindo como mosca em carniça.
Outro veio. Dei um tiro no joelho e outro no queixo. Ele caiu roncando sangue.
Não era assalto. Não era tentativa. Era execução. E os filhos da puta sabiam quem eu era. Sabiam o trajeto. A hora. A rota.
Alguém de dentro me vendeu.
Eu tava me movendo pro lado do carro quando senti: tinha alguém atrás de mim. O som do cano engatilhando. Era o fim.
Mas o fim não veio.
Veio o estrondo.
O estampido seco da morte.
O cara atrás de mim caiu com o crânio aberto igual casca de ovo.
Virei no reflexo. E lá estava ele.
Silhueta escura. Ombros largos. Máscara cobrindo o rosto. Glock na mão como se fosse extensão da alma.
Me salvou.
Vi mais três vindo. Ele derrubou os três. Sem hesitar. Tiro na garganta, no coração, na coluna. Pura execução. Sem misericórdia. Como quem faz aquilo por prazer. Ou por tédio.
Fiquei parada. Ofegante. Com o sangue de outro homem escorrendo na minha luva. E só conseguia pensar:
Quem é esse filho da puta?
Me virei pra procurar ele. Já tinha desaparecido. Sem nome. Sem marca. Sem dívida.
Só o rastro de pólvora e corpos quentes.
Um deles ainda respirava. O olhar piscando de dor. Fui até ele.
Me abaixei. Segurei ele pela garganta e com a outra mão apertei o saco dele com força. Com gosto. Com ódio.
Ele gritou. Um grito feio, molhado.
— Quem mandou vocês?! QUEM?!
— Vai… se foder… policialzinha de merda…
Cuspi na cara dele com raiva.
Raiva de tudo.
Raiva da traição.
Raiva de estar sozinha.
— Então fode com isso no inferno.
BANG.
A bala entrou seca e saiu molhada. O crânio espatifou no chão como fruta podre.
Me levantei. Limpei o rosto com o dorso da mão. O sangue secando no canto da boca.
E falei baixinho, só pra mim:
— Alguém quer minha cabeça. E se acha que vai conseguir... que venha rasgando. Porque agora eu tô indo até o osso.
E cada traidor fardado que tentou me apagar...
vai morrer pelado no beco. De joelho. Pedindo perdão.
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