O som abafado de uma banda local ecoava pelas paredes desgastadas do bar, misturando-se ao cheiro de cerveja barata, cigarro e gordura antiga. A madeira do piso rangia sob passos apressados, e as luzes amareladas pendiam como pequenas luas cansadas, mal disfarçando a decadência aconchegante do lugar.
Ashiley Monteiro — ali, apenas Ashiley — atravessou a porta com passos decididos, os olhos treinados para não pedir licença a ninguém. Alguns rostos conhecidos acenaram de longe; ela não retribuiu. Aquela noite, diferente de tantas outras, não havia espaço para sorrisos de fachada.
Encostou ao balcão, sentindo a aspereza da madeira sob a palma. Pediu um uísque barato, desses que ardem mais do que aquecem, e girou o copo entre os dedos, como se pudesse enrolar junto o incômodo que inchava no peito. Levou a bebida aos lábios. A primeira queimada foi um recado: hoje, ela não seria gentil consigo mesma.
Do outro lado do salão, uma risada estalou, limpa, inconfundível. Não era qualquer risada. Era a dele.
Pietro Santoro.
O homem que ela amara em silêncio — e em ruído interno — por três anos. O homem que nunca a amou de volta, ou não o suficiente para chamá-la de porto. Sempre havia um porém, uma desculpa elegante, um horário impossível.
Estava ali como sempre: cercado, luminoso por hábito, centro de uma órbita tola. Mas naquela noite havia uma presença nova velando o mesmo altar. Uma silhueta que Ashiley reconheceria até de costas.
Laura.
A ex oficial. A história mal resolvida que nunca se deixava enterrar. Vestido que desenhava certezas, cabelos ondulados por cálculo, sorriso de quem conhece a cena e a plateia. A mão pousada no ombro de Pietro com a intimidade de quem volta para a casa que julga sua.
Por um instante, Ashiley congelou. O coração quis disparar, mas ela o domou com um fôlego longo, treinado. Não era mais a garota que chorava no travesseiro por migalhas de atenção. Aquilo terminara — e ela decidira que terminara.
Virou o copo de uma vez, deixou o fogo rasgar a garganta e, com um sorriso que sabia exatamente onde cortar, atravessou o salão.
— Que cena bonita… — comentou, pousando a voz entre eles como quem deixa uma lâmina sobre a mesa.
Pietro a viu primeiro. O susto vazou no modo como ele ajustou o corpo na cadeira.
— Ashiley! Eu… eu não sabia que você vinha hoje.
Ela inclinou a cabeça. Laura, ao contrário dele, parecia perfeitamente confortável: tomou a presença de Ashiley como mais um adereço do próprio figurino.
— Pois é… surpresa — disse Ashiley, num tédio educado. — Achei que você estivesse ocupado demais ultimamente.
Pietro abriu a boca, mas Laura chegou antes, com doçura temperada de veneno:
— O Pietro estava me contando sobre a nova filial. Estamos trabalhando juntos de novo.
Trabalhando juntos. A expressão soou como um brinde a portas fechadas.
— Que ótimo. Trabalho costuma ser… produtivo. — Ashiley ergueu uma sobrancelha, sem pressa.
Pietro riu curto, nervoso.
— Não é o que você está pensando, Ash. Eu e a Laura somos só… amigos.
“Amigos.” A palavra tinha o gosto cansado de todas as vezes anteriores. Quantas desculpas ela já aceitara para não perder o pouco que tinha dele? Quantos silêncios decorados?
— Claro. Amigos. — O sorriso dela foi afiado o bastante para fazê-lo ajustar o olhar.
O vazio pesado que se instalou fez Bruno, o mediador de sempre, tentar salvar a mesa:
— Que clima, hein? Mais uma rodada, gente? Tá tudo certo aqui.
Mas já não estava. Não para ela. Ashiley fechou a mão em torno da bolsa como quem fecha um capítulo.
— Na verdade, eu só passei pra uma bebida rápida. Tenho um compromisso depois. — Mentiu sem remorso. Preferia a honestidade da própria solidão ao papel de figurante em drama alheio.
Pietro levantou-se um palmo, como se pudesse detê-la com a intenção.
— Ash… espera.
Ela parou só o suficiente para encontrá-lo nos olhos. Não havia súplica naqueles olhos. Nem raiva chamativa. Havia um frio novo, consolidado em meses de decepção cuidadosamente arquivadas.
— Não, Pietro. Não espera mais nada de mim.
Virou-lhe as costas e saiu. A porta devolveu um rangido quase solene.
O ar frio da noite a golpeou como um banho. Caminhou sem olhar para trás. O coração batia forte, mas não de saudade; batia por sobrevivência. Era o fim de um luto mal processado — e a aceitação que vem depois do último choro.
Na praça central, as luzes dos postes replicavam-se em poças escuras da garoa da tarde. Ela sentou-se num banco de madeira, enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta e deixou que o silêncio fizesse o seu trabalho.
Quando o barulho dentro dela baixou, pegou o celular. O contato que evitava tocar continuava intacto, como se três anos de fuga fossem uma nota de rodapé na biografia do seu sobrenome.
Pai.
O dedo pairou. Resistência e rendição travaram uma luta breve. A liberdade que ela protegera a custo parecia, de repente, um quarto de porta trancada por dentro. Por fim, respirou fundo e discou.
A voz dele atendeu quase de imediato, uma mistura de surpresa, cálculo e um cuidado antigo:
— Ashiley?
Ela fechou os olhos por um segundo, reuniu a firmeza que vinha praticando desde o primeiro não engolido.
— Eu aceito.
— Aceita o quê?
— O casamento com o Gustavo. — Nome dito com precisão, como quem assina um documento. — Pode marcar a reunião com a família Martins.
O silêncio que veio depois tinha o peso de uma catedral. Havia alívio ali, talvez orgulho, talvez a sensação fria de um plano finalmente em marcha. Antes que qualquer palavra do pai viesse batizar aquele momento, ela encerrou a chamada.
Ficou olhando o céu baixo e nublado, o telefone quente ainda em sua mão. Estava sozinha. Livre, e ainda assim… presa de novo. A diferença é que agora a cela tinha a chave do lado de dentro.
Ela respirou mais uma vez, devagar, e percebeu a estranha calma que sucede as decisões que mudam a topografia de uma vida. O nome Martins não era apenas um casamento — era uma fronteira. Ali, no banco molhado da praça, com a cidade ignorando seu pequeno terremoto pessoal, Ashiley entendeu que escolhera a própria prisão para sair de outra maior: a de esperar amor onde não cabia mais nenhum.
Levantou-se. Apertou o casaco contra o corpo e começou a andar. Ao passar por uma banca ainda aberta, viu na capa de um jornal uma nota de rodapé sobre “negociações entre conglomerados”. Não leu. Não precisava. Pela primeira vez em muito tempo, não se sentia perseguida pelo que a cidade dizia — sentia-se perseguida, sim, pelo que finalmente estava disposta a fazer.
A noite parecia mais fria quando virou a esquina rumo ao apartamento modesto que escolhera como refúgio nos últimos anos. Cada passo tinha o som de uma página virada. Não havia euforia, apenas um foco que não permitia fantasias: o acordo viria, a reunião seria marcada, e com ela viriam os rituais, as famílias, os olhos. Ela seria observada — e não fugiria.
No alto do prédio, enquanto subia as escadas em vez de esperar o elevador cansado, pensou em Pietro mais uma vez. Não doeu. Ou doeu como dói um músculo ao voltar a ser usado: sinal de recuperação. Sorriu sem mostrar dentes, um gesto mínimo, e destrancou a porta de casa.
O quarto estava como deixara: sóbrio, prático, sem lembranças que pudessem traí-la. Largou a bolsa, sentou-se na beira da cama e, antes de deitar, escreveu uma única frase numa nota do celular — um pacto silencioso consigo mesma: Da próxima vez que eu me trair, que eu lembre desta noite.
Então apagou as luzes. A cidade seguiu barulhenta do lado de fora. Dentro, enfim, havia silêncio.
O quarto pequeno estava tomado por malas abertas, cabides espalhados e roupas dobradas às pressas. Ashiley sentava-se no chão, pernas cruzadas, uma pilha de camisetas ao lado. Cada peça que tocava parecia carregar uma memória: algumas que aqueciam, outras que preferia esquecer.
Do fundo de uma gaveta, puxou um moletom cinza de Pietro, esquecido meses antes. Os dedos vacilaram um segundo. O cheiro dele já não estava ali; o peso emocional, sim. Sem cerimônia, lançou a peça no fundo de uma sacola de doação. Nenhum vestígio dele iria com ela.
Com os últimos pertences encaixotados, respirou fundo e percorreu o cômodo com os olhos. O refúgio simples agora lhe parecia menor, como se as paredes soubessem que aquele ciclo havia se fechado por dentro.
O celular vibrou no chão, ao lado da mala. Gustavo Martins.
Ela deixou tocar um toque a mais, depois atendeu:
— Alô?
— Ashiley — a voz dele veio direta, sem aquecimento —, está tudo certo com a data da reunião entre as famílias. O casamento segue o prazo combinado.
Ela revirou os olhos, exasperada com a objetividade impecável.
— Claro… porque romance é mesmo o que menos importa aqui, né?
Gustavo não mordeu a isca:
— Preciso que vá à joalheria Monteverdi, no centro. Seu anel de noivado está reservado. Falta apenas você escolher o modelo final para ajuste.
— E se eu não quiser anel nenhum?
— Não é uma opção — seco. — Protocolo.
— Ótimo. — Encerrou antes que a conversa ganhasse mais arestas.
A Monteverdi brilhava sob a fachada de vidro, guardas na porta e atendentes fardados como se servissem a realeza. Ashiley entrou com passos firmes, ignorando o olhar reconhecido da recepcionista.
— Senhorita Monteiro… é um prazer tê-la conosco de novo.
Ela forçou um sorriso educado.
— Apenas me mostre as opções, por favor.
Enquanto a atendente ia buscar bandejas cintilantes, Ashiley se aproximou de uma vitrine, mais para ocupar as mãos do que os olhos. No reflexo limpo do vidro, reconheceu duas figuras ao fundo.
Pietro.
Laura.
Estavam no setor de colares e pulseiras. Laura ria de algo que ele dizia, o braço enlaçado no dele com a naturalidade de quem reclama posse. O estômago de Ashiley se contraiu por um instante — raiva e ironia misturadas.
— De todos os lugares da cidade… — murmurou.
Se Pietro notara sua presença, decidiu fingir que não. Talvez fosse melhor assim. Sem cena. Não mais.
— Aqui estão os modelos, senhorita Monteiro — a atendente pousou a bandeja, um jardim de luzes ordenadas.
Ashiley percorreu os anéis com o olhar de quem avalia um contrato. Pedras, cortes, promessas. Escolheu o primeiro que viu, prático, bonito e impessoal, como convém a quem não pretende pedir ao objeto aquilo que a história não lhe dará.
Enquanto a funcionária anotava os detalhes, uma voz a cortou, mais alta do que o necessário:
— Pietro, este colar ficaria perfeito em mim.
A ênfase veio como um perfume doce demais — proposital. Ashiley não precisou virar para saber. Fingiu indiferença; levantou-se, ajeitou o cabelo e seguiu rumo à saída.
No caminho, Pietro finalmente ergueu os olhos. O susto passou rápido; a hesitação, não.
— Ashiley…
Ela parou meio passo, só o suficiente para encará-lo. O sorriso foi frio, elegante e absolutamente falso.
— Que coincidência, Pietro. — Um olhar breve a Laura. — Vejo que vocês continuam… amigos.
Não lhe deu tempo de resposta. Empurrou as portas de vidro e deixou a rua devolver o ar. O coração acelerado não batia mais por saudade; batia por autopreservação. Sem recaídas.
No bolso, o celular vibrou novamente. Mensagem de Gustavo:
Assim que pegar o anel, me avise. Motorista às 7h. Não quero atrasos.
Ashiley digitou seco:
Tudo certo. Pode mandar.
Levantou o rosto ao céu nublado de fim de tarde. A cidade onde reconstruíra uma vida — chorando, rindo, enganando a si mesma — parecia de repente pequena demais. Entrou na primeira loja de malas, comprou uma bagagem nova: mais noiva de Gustavo Martins do que garota de Jardim de Pedra.
Naquela noite, não dormiu. Organizou documentos, apagou fotos, empacotou livros e objetos de afeto. Cada gesto era uma despedida silenciosa, uma pequena assinatura no rodapé do passado.
No fundo da gaveta, uma caixinha de madeira: cartas nunca enviadas a Pietro e um pingente em forma de estrela — primeiro presente, primeiros meses, primeiras ilusões. Segurou o metal frio por um instante. Depois o atirou ao fundo do lixo. Nada dele iria junto.
Às seis e cinquenta, o interfone tocou. O motorista de Gustavo — um homem de meia-idade, terno impecável, expressão neutra — esperava na calçada.
— Senhorita Monteiro?
— Sim.
Ele carregou as malas até o sedã escuro. Vizinhos se debruçaram nas janelas, curiosidade de sábado cedo.
— Vai viajar, Ash? — arriscou a dona da quitinete ao lado.
Ashiley sorriu com um resto de mistério.
— Só seguindo em frente.
Entrou no carro sem olhar para trás. A cidade diminuiu pela janela conforme atravessavam a avenida em direção à rodovia. O bar de sempre, a praça, a velha escola de música — marcos de uma vida que já não lhe servia.
O motorista ligou o rádio. Uma canção lenta ocupou o espaço entre os dois. Ashiley encostou a testa no vidro frio e observou o horizonte, deixando a mente percorrer os próximos passos como quem estuda um mapa de guerra.
Do outro lado da viagem, ela sabia o que a esperava: uma mansão de janelas altas, protocolos e sorrisos treinados, alianças caras, Gustavo na postura do herdeiro perfeito — e, sobretudo, olhos. Muitos olhos. Famílias, executivos, imprensa, gente que chama casamento de estratégia e amor de ativo volátil. Parte dela se enrijecia ao pensar nisso. Outra parte, a que aprendera a sobreviver, assentia: melhor isso do que continuar invisível para quem um dia importou.
“Se é para sofrer, que seja com glamour”, pensou, e sorriu de si mesma. Talvez não fosse glamour — talvez fosse apenas armadura.
Fechou os olhos e se permitiu um minuto de descanso. Tinha a sensação clara — desconfortável e libertadora — de que não havia mais retorno. O futuro estava decidido. O anel, em produção. A reunião, marcada. O sobrenome Martins crescendo na margem do papel como uma fronteira.
Pietro Santoro ficaria onde merecia: no passado. E se algum dia voltasse a cruzar o caminho dela, encontraria outra mulher no lugar daquela que o esperou: uma que não negocia migalhas, uma que sabe usar o protocolo a favor até que ele deixe de ser uma prisão.
O carro ganhou velocidade na rodovia. Nuvens pesadas se moviam lentas sobre o asfalto molhado. Ashiley abriu os olhos. Não sentia euforia; sentia foco. E uma calma nova, quase tática, como a de quem finalmente escolhe a própria cela — com a chave do lado de dentro.
— Tudo certo com o horário? — perguntou ao motorista, mais para ouvir a própria voz.
— Chegaremos adiantados, senhorita.
Ela assentiu. A música mudou. Lá fora, placas indicavam a proximidade da saída que os levaria ao bairro dos Martins. Ashiley endireitou a postura, alisou sem pensar a barra da jaqueta. Estava pronta. Ou tão pronta quanto alguém pode estar antes de entrar num salão onde nomes pesam tanto quanto promessas.
— Vamos em frente, então — disse, quase num sussurro.
E o carro entrou na alça, como quem vira a página.
A capital a recebeu com o mesmo ar de superioridade de sempre. Prédios espelhados, seguranças nas portas giratórias, carros de luxo riscando avenidas largas. Os olhares curiosos reconheciam o sobrenome Monteiro como se fosse uma logomarca — e cada olhar lhe lembrava por que partira.
Do banco traseiro, Ashiley observava a paisagem com uma mistura de nostalgia e náusea. Não era saudade; era o peso de retornar ao lugar que jurara não chamar mais de lar. Quando os portões da mansão Monteiro se abriram, o estômago revirou. A fachada permanecia imutável: colunas brancas, jardins matematicamente simétricos, o cheiro de rosas frescas invadindo o hall como assinatura olfativa de bem-vindos-vigiados.
A mãe apareceu primeiro na porta, o sorriso ensaiado como discurso de evento beneficente.
— Minha filha… finalmente em casa. — Dona Lígia a abraçou com mais protocolo que calor. — Você nos deu trabalho com esse sumiço, sabia?
O pai veio logo depois, a mão estendida num aperto que soava a acordo.
— Espero que, desta vez, tenha voltado para ficar.
Ashiley assentiu. Não valia a pena discutir o verbo ficar com quem sempre confundiu presença com desempenho. Um empregado discretamente recolheu a mala nova — a que ela comprara para vestir o papel de noiva Martins — e desapareceu corredor adentro, como se nada naquele lugar pudesse ser pesado por mais de um segundo.
Gustavo surgiu, impecável no terno azul-marinho. O sorriso controlado, eficiente — cada palavra calculada antes de nascer.
— Bem-vinda de volta, Ashiley. — O abraço dele teve a exata medida do cavalheirismo: correto, frio, pontual.
— Obrigada… noivo. — A ironia veio sutil e pousou entre eles como uma nota fora do arranjo. Gustavo a ignorou com a destreza de quem também sabe tocar o instrumento.
Seguiram para a sala principal. Prata polida, flores claras, uma mesa posta sem ocasião — naquela casa, sempre havia ocasião. Um funcionário ofereceu água, café, suco, chá. Ashiley pediu água. A mãe preferiu conduzir a conversa como quem apresenta patrocínio.
— Amanhã teremos um almoço íntimo. Apenas família… e os Martins, claro.
“Íntimo”, pensou Ashiley, encarando os arranjos — nada ali era íntimo. Gustavo apoiou um braço no encosto do sofá, postura de reunião.
— A Monteverdi confirmou o anel. — Ele falou de modo objetivo, sem buscar aprovação. — E o jurídico alinhou o contrato pré-nupcial. Restam detalhes do cronograma.
Contrato. Cronograma. Palavras-pedra. A mãe sorriu como se falassem de flores. O pai meneou a cabeça, satisfeito com a boa condução da pauta. Ashiley encostou o copo na mesa, deixando o círculo de condensação marcar discretamente o tampo de vidro.
— Farei a minha parte — disse, simétrica. — Mas não vou posar para revista.
Um silêncio breve assentou. Dona Lígia mascarou o incômodo com doçura:
— Ninguém falou em revista, querida. Só queremos celebrar esse momento… com discrição.
Discrição com fotógrafos do lado de fora, achou Ashiley, mas a discussão seria um gasto inútil. Gustavo desviou o olhar para o relógio — não impaciente; apenas alinhado ao próximo item da agenda.
— Vou te mostrar o escritório onde alinharemos tudo hoje à tarde — informou. — Prefiro que veja os documentos antes do almoço.
— Perfeito. — Ashiley respondeu com um sorriso que não prometia cessar-fogo, apenas leitura atenta.
Quando o protocolo deu uma folga, ela pediu licença e subiu. O corredor continuava amplo demais, o piso brilhando como se ninguém o tivesse pisado por três anos. No quarto dela, alguém trocara as cortinas. Cheiro de lavanda. Sobre a penteadeira, uma caixa com papelaria nova estampada A.M.. Bem-vinda de volta, assinatura do clã.
Ela passou a mão pela superfície, tateando um passado polido. No espelho, seu reflexo parecia mais alto que antes — talvez fosse só a postura. Recolheu um elástico de cabelo, prendeu um coque prático e deixou a janela entreaberta: um pouco de ar real, ainda que em doses controladas.
Em Jardim de Pedra, Pietro batia pela terceira vez à porta da pequena casa onde Ashiley morara. O silêncio absoluto atrás da madeira era a confirmação que ele temia, mas resistia em aceitar. A janela do quarto permanecia aberta, as cortinas brancas balançando com o vento. Na calçada, caixas vazias: uma mudança apressada.
— Mas que droga… — murmurou, passando a mão pelos cabelos. A lembrança do olhar de Ashiley na joalheria mordia. Frio. Preciso. Como se ele já não coubesse na frase que os unira por anos.
A casa não devolveu resposta. Pietro recuou um passo, mãos nos quadris, olhar perdido como quem tenta decifrar um bilhete que não foi escrito para si.
— Procurando por alguém?
A voz suave o fez girar. Laura estava encostada no carro, sorriso sereno, vestido claro, cabelos soltos, perfume floral. Doçura calibrada.
Pietro inspirou, o incômodo latejando sob a pele.
— Você sabe onde ela está?
Laura caminhou até ele com passos leves, como quem tem pena do chão.
— Ah, Pietro… — tocou de leve o braço dele, compaixão de vitrine. — Você ainda está pensando nela?
Ele arqueou a sobrancelha, silenciando.
— A Ashiley é intensa — ela prosseguiu, um suspiro que pretendia compreensão. — Faz drama por qualquer coisa… some sem explicar, cria crises só pra chamar atenção. — Riu baixo, triste de ocasião. — Deve ser o jeito dela lidar com as coisas.
Pietro cruzou os braços, desviando o olhar para a janela aberta.
— Ela saiu sem avisar. Nem o trabalho, nem os amigos.
— Exato. — Laura concordou, doce. — E você, como sempre, se preocupa mais do que deveria.
Ele a observou de soslaio, desconfiando do algodão em volta das palavras.
— Não é preocupação. Só achei estranho.
Laura inclinou a cabeça, o olhar envolvente como um cobertor em dia de febre.
— Estranho… — assentiu. — Mas, sinceramente? Você deu algum motivo pra ela ficar? — O tom era macio, quase maternal. — Foi sempre claro pra todo mundo que vocês não tinham futuro.
A frase arranhou. Pietro franziu o cenho, mas ela sorriu antes da réplica nascer.
— Desculpa se fui dura. — O toque no braço voltou, ensaiado. — Eu só me preocupo com você. Não vale a pena se abalar por alguém tão… inconstante.
Ele passou a mão nos cabelos outra vez, impaciente.
— Ela é só uma funcionária. Nada além disso.
Laura sorriu mais, satisfeita com o coro.
— Exatamente. Só uma funcionária. — Repetiu a sentença como quem carimba um documento.
Virou-se para ir embora, deixando Pietro diante do vazio armado. O motor do carro dela ronronou, afastando-se devagar. Pietro ficou ali, uma sombra comprida esticada no asfalto da tarde, as cortinas brancas acenando atrás dele — despedida que não passou pela boca.
Na mansão Monteiro, o relógio da parede marcou quatro horas quando Gustavo chamou:
— Podemos? O jurídico nos aguarda por videochamada.
O pai apareceu à porta do escritório, postura de anfitrião que também é credor. A mãe não veio — preferiu supervisionar flores. Sobre a mesa, pastas etiquetadas, canetas de metal, um papel timbrado com a união das iniciais M e M: um grafismo temporário entre Monteiro e Martins. Ashiley sorriu por dentro — o design sempre se apressa a contar uma história antes do tempo.
— Revisaremos cláusulas de confidencialidade, disposições patrimoniais, agenda pública — disse Gustavo, já abrindo a pasta. — Quero sua opinião sobre o limite de exposição.
— Ótimo — respondeu ela, puxando a cadeira. — Tenho algumas propostas.
Ele a encarou um segundo além do necessário. Não surpresa; medição. O jogo ali não era de afeto — era de competência e controle do dano. Ashiley folheou páginas com a calma de quem aprendeu a não tremer na frente de documentos. Riscou um parágrafo com o dedo.
— Aqui. Nada de fotos em residências particulares. E veto a qualquer matéria que mencione Jardim de Pedra.
Gustavo assentiu, prático.
— Concordo. — Voltou-se à tela. — Incluam esses vetos. E mantenham a logística do almoço sem imprensa.
A chamada terminou meia hora depois. Gustavo fechou a pasta, avaliando-a em silêncio como se testasse uma peça nova de tabuleiro.
— Você lida bem com fronteiras — comentou, neutro.
— Aprendi a duras penas — ela devolveu, devolvendo a caneta ao estojo. — E pretendo mantê-las.
— Ótimo. — Ele se levantou. — Amanhã, 12h. Peço pontualidade.
— Terei.
Quando ficou sozinha, Ashiley se apoiou um instante na beirada da mesa. O reflexo dela no vidro devolveu a mesma mulher do espelho do quarto — só que agora com a luz do escritório colada ao rosto. A cela escolhida segue tendo chave do lado de dentro, pensou, e fechou os olhos por um segundo, como quem ajusta a respiração antes da próxima volta.
Lá fora, o jardim exalava rosas. Aqui dentro, os papéis cheiravam a tinta fresca e promessas antigas. O passado batia à janela de vez em quando; ela mantinha a veneziana aberta o suficiente para ver a chuva aproximar — e fechar na hora certa.
Em Jardim de Pedra, Pietro deu dois passos para longe e voltou a encarar a casa vazia. O celular pesou no bolso; ele não ligou. Tentou lembrar quando fora a última vez que tinha dito a palavra ficar e acreditado nela. O vento mexeu as cortinas mais uma vez, como se a cidade respondesse: agora é tarde.
Ele entrou no carro, mas não deu partida de imediato. Sabia por experiência que o silêncio também é um tipo de resposta — e, às vezes, a mais honesta.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!