O relógio do Cabildo anunciava meia-noite quando Jack ajustou a lente da câmera. A umidade fazia o cascalho reluzir como vidro quebrado. Nas vielas, saxofones desafinados competiam com o zumbido dos postes amarelos. Ele mirou o clarão lunar, atento à sensação incômoda de ter algo crescendo sob a pele — um prurido, um latejar nas raízes das unhas.
Do alto de uma sacada de ferro, Kate observava a caça. Trajava veludo anil e bordas de renda que cintilavam em cada passo silencioso. A cidade era o seu tabuleiro; os mortais, peças descartáveis. Contudo, ao inspirar o ar pesado, sentiu uma nota de pinho e tempestade: cheiro de lobo. O olhar dela pousou em Jack com a fome de quem atravessara milênios sem saborear surpresa.
Ele levantou a câmera e, no reflexo da objetiva, capturou algo impossível — olhos cor de rubi fixos nos seus. Um estalo de pânico ecoou dentro dele e, como se obedecesse a um comando biológico, Jack correu. Mas os metros pareciam dobrar; o corpo negava-se a escolher entre fugir ou uivar.
Kate sorriu, deslizando pelos telhados sem pressa. Não havia presa que conseguisse escapar de uma caçadora que fazia a própria escuridão dançar em volta dos tornozelos. Contudo, quando finalmente encurralou Jack contra os portões de ferro do antigo cemitério, o instinto dela tropeçou — o pulsar do pescoço dele era uma canção que mesclava dois ritmos: humano… e algo mais. Ela ergueu a mão, pronta para o golpe final, mas as palavras que saíram não eram de morte:
— Diz-me teu nome, criatura das luas partidas.
Jack ofegou, sentindo as gengivas doerem, quase rompendo em presas que não compreendia.
— Jack… Beaumont…
A vampira inclinou a cabeça, curiosa como quem descobre um poema inscrito em pedra antiga.
— Beaumont… Um nome que carrega pontes. Podes ser chave ou ruína. Vamos descobrir qual antes que o sol nos interrompa.
Naquele instante, o destino de Nova Orleans mudou de curso.
O luar sangrento tingia sua pele pálida de vermelho. Suas costelas ainda ardiam do golpe que levara dela — a vampira de olhos hipnotizantes e cabelos cor de fogo. Nunca vira alguém se mover com tanta graça e brutalidade ao mesmo tempo.
Mas o que mais o assombrava não era o poder dela. Era o que ele sentira dentro de si.
Quando ela o encurralou e o lançou contra a parede de tijolos, ele pensou que aquele seria seu fim. Mas então... algo dentro dele se rompeu. Algo primal. Selvagem. **Ele rugiu.** E por um instante, seus olhos se tornaram âmbar e suas unhas, garras. Kate recuou. Surpresa.
— "Você não é um humano comum..." — ela sussurrou, olhos arregalados.
— "Nem eu sabia disso."
Agora, escondido num dos cemitérios abandonados, Jack tentava entender o que estava acontecendo. Seus sentidos estavam aguçados. Ouvia o bater de asas de morcegos a dois quarteirões. Cheirava o perfume de jasmim nos cabelos dela, mesmo que Kate estivesse longe.
Kate, por sua vez, voltava para a mansão de seu clã, furiosa e confusa. Ela era a princesa dos vampiros de Nova Orleans, treinada desde o nascimento para odiar os lobos, exterminá-los sem hesitação. E agora, havia deixado um escapar. **Um híbrido.**
— "Você hesitou, Kate." — acusou Lorde Silas, seu pai, o Rei Sombrio.
— "Ele não é só um lobo... Ele é algo novo. E perigoso."
— "Então você deveria tê-lo matado."
— "Eu tentei."
Mas a verdade era que não tentou com tudo que tinha. Algo nele a prendeu. **Aquele olhar. Aquele cheiro. Aquela maldita sensação de déjà vu.**
Naquela noite, os dois dormiram mal. Jack sonhou com florestas escuras e luas sangrentas. Com dentes. Com beijos. Com sangue. Kate sonhou com uma outra era, uma outra vida — em que o mesmo olhar a fazia sorrir, não sacar uma adaga.
E o destino já estava em movimento.
A mansão dos Daevon erguia-se como um monumento ao tempo. Suas colunas negras, corroídas por musgo, tocavam o céu encoberto. Era ali que o sangue governava há três milênios. O lugar onde as decisões do Clã eram seladas em sussurros e execuções silenciosas.
Kate adentrou o salão principal, sua presença despertando murmúrios entre os membros da cúpula.
— *"A princesa retorna."* — sibilou Verona, a conselheira mais antiga, seus olhos pálidos e opacos como névoa.
— *"Esperávamos notícias melhores."* — disse Armand, com um leve tom de sarcasmo. — *"O híbrido ainda respira, dizem..."*
Kate caminhou até o trono negro onde seu pai, Lorde Silas, repousava como uma sombra viva. Seus dedos longos seguravam uma taça de cristal escuro, o conteúdo espesso e vermelho.
— "Jack fugiu." — ela admitiu, firme.
— "Jack." — Lorde Silas repetiu o nome como se saboreasse uma ofensa. — "O filho de quem?"
— "Ninguém sabe. Mas ele não é só humano... Nem só lobo. É algo novo."
Um murmúrio tomou o salão. Vampiros, todos com séculos de vida, reagiam como se estivessem ouvindo uma profecia se cumprir.
Verona se aproximou, arrastando sua capa azul-marinho manchada de veludo antigo.
— "Eu vi isso antes. Em um presságio. Uma criança nascida entre dois mundos. Um arauto da ruína. Ou da salvação."
— "Poético." — ironizou Armand. — "Mas ele é uma ameaça. Se for metade lobo, deve ser destruído antes que os Licantropos o reivindiquem."
— "Ou usado." — sugeriu Kate. Os olhos se voltaram para ela. — "Podemos descobrir como ele sobreviveu... como ele existe. Talvez... como controlá-lo."
— "Você fala como se estivesse envolvida demais." — acusou Lorde Silas. — "O sangue dos Daevon não se mistura. Você sabe disso."
Kate susteve o olhar do pai.
— "Eu conheço minha linhagem. Mas também conheço a guerra. E sei reconhecer quando precisamos mudar de estratégia."
O silêncio pesou como pedra. Silas se levantou. Com mais de dois metros, sua figura era esquelética e poderosa, como um cadáver revestido de coroa.
— "Então descubra tudo sobre Jack. Traga-o. Ou mate-o. Mas se ousar se apaixonar por ele..." — a voz cortou o ar — "...eu mesmo arrancarei seu coração."
**Na calada da noite**, Kate seguiu até os arquivos secretos, onde Verona a aguardava com uma caixa antiga.
— "Ele já esteve entre nós." — Verona murmurou. — "Não como Jack... mas como outra vida. Outro tempo. O ciclo está se repetindo, querida."
— "O que isso significa?" — Kate perguntou, abrindo a caixa.
Dentro, um retrato antigo. Um homem com os mesmos olhos que Jack. A mesma fúria contida. Ao lado dele... **uma mulher idêntica a Kate.**
— "Reencarnação." — Verona sorriu. — "E isso nunca termina bem..."
Kate segurava o retrato antigo com as mãos trêmulas. O papel estava amarelado, mas os traços eram inconfundíveis. O homem tinha os mesmos olhos de Jack — selvagens, tristes, intensos. E ao lado dele, a mulher com cabelos vermelhos ondulados... ela. Ou alguém idêntica a ela.
— "Reencarnação?" — Kate sussurrou, sem conseguir desviar o olhar da pintura.
— "Você está dizendo que... nós dois já existimos assim antes?"
Verona cruzou os braços, o olhar cansado, como alguém que já viu séculos passarem por seus dedos.
— "Sim. A história se repete. Sempre entre o sangue e a lua. Sempre entre vocês dois."
— "E por que ninguém nunca me contou isso?"
— "Porque você foi feita para esquecer. Toda vez que ele morre... você renasce no mesmo corpo, mas sem a memória. Ele, por outro lado, reencarna. Novas vidas, novos rostos. Mas a mesma alma." — Verona se aproximou, seu tom sombrio. — "E o mesmo amor."
Kate riu, amargo.
— "Isso é uma maldição."
— "Ou uma chance de redenção."
Ela se afastou, encarando os vitrais escuros da biblioteca secreta.
— "E se dessa vez... ele não me amar? E se dessa vez... ele me odiar?"
— "O amor e o ódio entre vocês sempre caminharam juntos. Você o traiu uma vez. Ou talvez ele tenha traído você. As versões mudam... mas o fim sempre foi o mesmo: morte."
Kate fechou os olhos. Uma dor antiga reverberava em seu peito, como se algo dentro dela começasse a lembrar, mesmo que não quisesse.
— "E se eu quebrar o ciclo?"
Verona sorriu, frágil.
— "Então, pela primeira vez em três mil anos... um vampiro e um lobo vão reescrever o destino."
Enquanto isso, em outro ponto da cidade...
Jack corria pela mata úmida ao redor do cemitério Lafayette. Sua pele ardia, os ossos doíam, e os gritos rasgavam sua garganta. A transformação havia começado. Mas não era só física. Ele via flashes. Memórias que não eram dele.
Um campo em chamas.
Kate, de cabelos trançados e olhos cheios de lágrimas.
Uma promessa sussurrada: "Eu volto por você..."
Uma adaga atravessando seu peito.
Ele caiu de joelhos. O uivo que escapou de sua boca não era humano. Nem totalmente lobo.
— "O que está acontecendo comigo...?"
A lua, cheia e vermelha, parecia observá-lo.
De volta à mansão Daevon, Kate se vestia para sair. Roupas leves, de couro e tecidos elásticos — para correr, lutar... ou fugir. No espelho, seus olhos brilhavam de um jeito diferente.
— "Se isso for reencarnação... então eu tenho uma escolha a fazer."
Ela tocou a adaga presa à cintura.
— "Salvar Jack. Ou matá-lo... antes que meu coração me traia de novo."
A floresta úmida nos arredores do Cemitério Lafayette estava envolta em névoa espessa. A lua cheia, alaranjada e imponente, pendia no céu como um olho vigilante.
O som de carne rasgando, ossos se movendo fora do lugar, e gritos ferais ecoava entre as árvores.
Kate se aproximava em silêncio. O cheiro de sangue e medo estava por toda parte.
Ali, entre raízes grossas e folhas tombadas, Jack se contorcia. Metade homem, metade fera. Os braços cobertos por pelos escuros. Os olhos, selvagens. A pele clara brilhava de suor, e seus dentes já não eram humanos.
— “Jack...” — a voz de Kate saiu baixa, mas firme.
Ele a olhou, com dificuldade. Ofegante. Reconhecendo-a, mas temendo por ela — ou por si mesmo.
— “Fica... longe de mim.” — ele rosnou, entre palavras rasgadas.
— “Não vou machucar você.” — Kate deu mais um passo. — “Eu vim explicar.”
— “Explicar o quê?” — ele gritou, com as garras cravando no solo. — “O que está acontecendo comigo? O que eu sou?!”
— “Você é o fim... e o começo.” — ela murmurou, ajoelhando-se perto, encarando-o com olhos calmos. — “Você é o motivo pelo qual a lua está mais vermelha do que nunca. A maldição foi ativada. E agora, não tem volta.”
Jack caiu de lado, o peito arfando. Sua respiração começou a desacelerar. Parte da transformação havia passado, deixando-o exausto, suado, e parcialmente humano novamente.
— “Por quê agora? Por que aos 25?”
Kate hesitou. Sentou-se ao lado dele, o frio da noite não a tocava, mas a verdade que precisava dizer pesava como ferro.
— “A cada geração, tua alma reencarna. Mas não desperta até um dos sinais ser cumprido.”
— “Que sinal?” — ele sussurrou, encarando-a.
— “O toque do amor... ou a presença da morte.” — ela desviou o olhar. — “Você me viu. Me sentiu. E isso... quebrou o selo. 25 anos é a idade exata que você tinha... na vida passada... quando tudo acabou.”
Jack fechou os olhos. Imagens retornavam. Memórias desconexas: fogo, beijos, traições, e o brilho de olhos vermelhos em meio à escuridão.
— “Eu fui você antes.” — Kate continuou. — “E você... foi aquele por quem eu morri.”
Jack se sentou lentamente, os músculos doloridos, o rosto sujo de terra.
— “Então o que eu sou? Um monstro? Um fantoche de uma história repetida?”
— “Você é Jack.” — ela respondeu. — “Mas também é o filho do ciclo. Metade humano. Metade fera. E agora... parte de algo muito maior do que nós dois.”
— “E se eu não quiser ser parte disso?”
— “Então nos condena. A mim, a você. Ao mundo. Porque agora que despertou... os outros também vão sentir. O Conselho. Os lobos. E... aquele que causou a maldição original.”
Jack olhou para ela, os olhos ainda meio selvagens, mas agora cheios de uma dor mais antiga do que ele mesmo entendia.
— “Você fala como se soubesse o fim.”
— “Porque eu já vivi ele uma vez.”
Silêncio. Apenas o som da floresta e o pulsar das verdades recém-ditas.
E sob a lua ensanguentada... eles entenderam: o destino acabara de recomeçar.
O asfalto molhado refletia as luzes da cidade como um espelho trincado. Nova Orleans continuava viva — bares cheios, jazz vazando pelas janelas, turistas embriagados de cor e pecado. Mas algo no ar tinha mudado.
Jack caminhava ao lado de Kate, ainda com a camisa rasgada e as marcas da transformação recém-vivida. Seus olhos buscavam explicações em tudo: nas sombras entre os postes, nos passos de estranhos que pareciam saber demais, nos reflexos nos vidros dos carros.
— “Você sempre foi de Nova Orleans?” — ele perguntou, quebrando o silêncio.
— “Em parte, sim.” — ela respondeu. — “Mas eu sou do mundo. Já vivi em cidades que não existem mais... e vi impérios caírem antes mesmo do teu nome existir.”
Jack assentiu devagar.
— “E você continua linda.” — disse, sem ironia.
Kate o encarou de soslaio, surpresa por um momento.
— “Você disse isso da última vez também.”
— “Na outra vida?”
— “Sim. Antes de morrer nos meus braços.”
Ele ficou em silêncio. As palavras soaram como poesia, mas queimavam como verdade.
— “Você me amou?” — ele perguntou, sincero.
— “A ponto de me perder.” — ela respondeu, firme.
Eles entraram por uma viela discreta no bairro francês. A boate Lune Noire se erguia ao fundo: fachada antiga, letreiro em neon roxo e uma fila de humanos desavisados. Kate empurrou a porta dos fundos.
Dentro, tudo era diferente. Música abafada, corredores escuros, paredes revestidas de espelhos negros. Um guarda vampiro assentiu ao vê-los passar.
— “Você tem um esconderijo dentro de uma boate?” — Jack perguntou.
— “Melhor forma de se esconder: entre os que não acreditam.” — ela respondeu.
Descendo escadas estreitas, chegaram a um salão subterrâneo. O chão era de pedra antiga. Velas azuis ardiam sem consumir cera. Ali, vampiros mais velhos aguardavam em silêncio. Entre eles, Verona.
— “Ele voltou.” — disse Kate. — “Mas não como antes.”
Verona caminhou até Jack, analisando-o com olhos opacos.
— “A cidade está se movendo. Há murmúrios nos túneis dos licantropos. E Silas... já sabe que você o escolheu.”
— “Eu não escolhi ninguém.” — Jack disse.
— “Ainda.” — completou Kate, olhando-o de forma que apenas ele entendeu.
— “O que a gente faz agora?” — ele perguntou.
Verona ergueu uma das velas. A chama oscilou e projetou na parede um mapa antigo da cidade. Ruas, túneis, rios. E um ponto em vermelho piscando no coração da cidade.
— “Agora... vocês voltam onde tudo começou. Onde a maldição foi lançada. Onde o pacto foi quebrado. A Cripta do Sangue.”
Jack engoliu seco.
— “E o que tem lá?”
Kate cruzou os braços. Seus olhos eram pálidos como inverno.
— “O nosso passado.”
Verona completou:
— “E talvez... o nosso fim.”
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