Eu estava caindo do céu.
Algo invisível me puxava pelos pés, arrastando-me em direção ao vasto oceano abaixo. Eu gritava até a voz falhar, mas ninguém podia me ouvir. Meus braços e pernas se debatiam inutilmente no ar enquanto eu despencava. O céu, envolto em trevas, era pontilhado de estrelas que cintilavam como chuva de meteoros. E a lua... a lua era de um vermelho flamejante. Uma lua de sangue. Seu brilho era tão intenso que queimava meus olhos - fechei-os com força, tentando escapar da luz que parecia me despir por dentro.
Não sei como fui parar ali. Minhas lembranças eram apenas borrões, como se alguém tivesse apagado partes de mim. Parecia que eu tinha sido arremessada de um avião... ou empurrada. Por alguém. Mas quem? Por quê?
Meu corpo rasgou a superfície do oceano e afundou rapidamente. A força me arrastava ainda mais fundo, em direção aos recifes de coral, enquanto a água salgada invadia meus pulmões. Eu continuava a gritar, mesmo sem voz.
Seria esse o meu fim? Seria assim que eu morreria - sozinha, num lugar desconhecido, afogada, apenas para ter meu corpo dilacerado por tubarões atraídos pelo cheiro do meu sangue?
Que forma mórbida e ridícula de morrer.
Mas então... abri os olhos.
E o vi.
A silhueta de um homem nadava na minha direção. Alto, imponente, com cabelos ruivos como fogo e olhos verdes que pareciam brilhar mesmo na escuridão do oceano. Ele era belo como um deus, com traços marcantes, a pele dourada como se fosse banhada pelo sol. Vestia uma armadura dourada, com um dragão entalhado no peito.
Fiquei tão hipnotizada por sua presença que nem percebi quando a água ao meu redor começou a gelar. Um frio cortante tomou meu corpo; meus membros ficaram dormentes, imóveis. Não conseguia mais me mexer.
Ele parou a poucos centímetros de mim. Não tocou em mim. Apenas me observou.
Seu olhar era profundo, quase insuportável, como se enxergasse cada pedaço da minha alma. E então, seus olhos verdes começaram a brilhar com uma luz prateada intensa.
Fechei os meus olhos.
E gritei.
Acordei assustada.
Tudo não passava de um sonho.
Um sonho absurdamente real.
Mesmo sabendo que era apenas isso, Selene Lancaster ainda conseguia sentir o peso da água ao seu redor, o impacto das ondas, o vento bagunçando seus cabelos enquanto despencava do céu... e a força invisível que a puxava em direção ao estranho de cabelos cor de fogo.
Desde que se mudou para Londres com sua família, Selene vinha tendo sonhos assim. Às vezes, eram sonhos quentes - o que ela atribuía ao fato de não fazer sexo havia uns seis meses, desde que se formou na universidade. Mas, com o tempo, os sonhos se tornaram pesadelos aterradores.
Pesadelos onde se via pendurada pelas mãos, amarrada nas vigas de um teto escuro, enquanto um homem alto de olhos dourados a torturava. Ele queimava sua pele com o atiçador de uma lareira, ou cortava sua carne com a lâmina fria de uma adaga, evitando sempre as artérias principais - prolongando a dor, se divertindo com seus gritos.
Felizmente, Selene tentava esquecer esses pesadelos. Alguns desapareciam com facilidade, como poeira levada pelo vento.
Ela suspirou e olhou o relógio ao lado da cama. Eram cinco da manhã.
- Que ótimo... - murmurou. - Com certeza gritei. Mamãe deve ter ouvido.
Sua mãe sempre ouvia. Sempre se preocupava.
Às vezes, até demais.
Era sufocante a forma como Genevieve Lancaster tentava protegê-la - a ela e às irmãs. Como se ainda fossem crianças. Como se o mundo lá fora fosse uma fera pronta para devorá-las. E talvez fosse.
Selene se levantou e caminhou até o banheiro. Ao acender a luz e encarar o espelho, soltou um suspiro.
- Meu Deus, eu tô horrível.
Seus cabelos estavam embaraçados, arrepiados, e duas olheiras enormes destacavam ainda mais o âmbar dos seus olhos. Desde a mudança para a cidade, ela não dormia bem. Os pesadelos eram constantes, e aquele sentimento estranho de inquietação não a deixava em paz. Vivendo com os músculos sempre tensos, ansiosa, como se seu corpo esperasse... algo.
- Deve ser coisa da minha cabeça - disse a si mesma, com um sorriso nervoso. - Tô ficando louca. Ou pior... ficando igual à minha mãe.
Genevieve dizia ter empatia - aquela habilidade de sentir o que os outros sentem. Selene nunca acreditou nisso. Atribuía tudo à intuição materna. Mas, ultimamente, ela própria vinha sentindo coisas. Sensações inexplicáveis. Vozes dentro da mente que sussurravam para ela se preparar.
Selene abriu o armário atrás do espelho e procurou seu remédio. Desde que contou à mãe que andava dormindo mal, recebeu um frasco de aspirinas e a recomendação de tomar uma antes de dormir.
Ela não tomara naquela noite. Achava que não precisaria. Se enganou.
Achou o frasco, tomou dois comprimidos com o copo d'água que deixava ao lado da pia, e voltou para o quarto.
Logo depois, alguém bateu à porta.
- Lena? Você está bem? - perguntou sua mãe, do outro lado.
Selene foi até a porta, tentando soar tranquila.
- Estou bem, mãe. Não se preocupe.
- Você sempre foi péssima mentirosa. Me diz, o que aconteceu?
- Só outro pesadelo. Mas estou bem, tomei o remédio. Vou conseguir dormir tranquila agora. Por favor, volta a dormir.
Houve uma pausa antes da resposta.
- Tudo bem... Mas amanhã, no café, a gente conversa. Boa noite, filha.
- Boa noite.
Genevieve Lancaster sempre foi uma mulher forte, determinada. Desde pequena, Selene a via batalhar para criar as três filhas. Mas havia segredos. Muitos.
A mãe nunca falava sobre sua infância, nem sobre os próprios pais. Até hoje, Selene não conhecia os avós. Não sabia se estavam vivos, mortos, ricos, pobres. Toda vez que tocava no assunto, a mãe se fechava, ficava tensa.
O pai também era um mistério. Os dois - mãe e pai - pareciam cúmplices de um segredo que as filhas jamais conheceriam.
De volta à cama, Selene se deitou e encarou o teto branco do quarto. Os olhos pesavam; o remédio já fazia efeito.
Mas sua mente ainda gritava perguntas sem respostas.
O que era essa inquietação que sentia?
Essa tensão nos músculos, essa ansiedade constante?
O que estava acontecendo com ela?
Virou o rosto para a janela e viu a lua brilhando no céu escuro, cercada de estrelas. Bem naquele instante, uma estrela cadente cortou o firmamento.
Selene fechou os olhos e fez um pedido.
Quero respostas.
E, com esse desejo, finalmente adormeceu.
Acordei melhor do que na noite passada. Dormi umas sete horas - o que, pra mim, já é milagre. Levantei, tomei banho e fui direto pra maquiagem. Não era só vaidade, era necessidade: esconder as olheiras profundas que mais pareciam tatuagens. Se eu descesse do jeito que acordei, minha mãe ia sacar na hora que eu não estava bem. E lá vinha a enxurrada de perguntas.
Então sim, maquiagem virou armadura. Um pouco de pó, corretivo, lápis e máscara de cílios. Não é o melhor disfarce do mundo, mas já evita uma sessão de interrogatório e aquela preocupação exagerada que ela anda tendo desde que mudamos de cidade.
Ou melhor, de país.
Estamos agora no Reino Unido. Inglaterra. Yorkshire, pra ser mais precisa. Numa casa vitoriana, daquelas que parece cenário de filme antigo. Meus pais compraram quando decidiram, depois de vinte anos rodando o mundo, criar raízes.
Eles se mudaram para Inglaterra enquanto eu estava na faculdade quando tinha 22 anos.
E Ari e Maya tinham acabado de começar a o primeiro semestre na faculdade.
Minha vida inteira foi assim: uma eterna mala feita. Nunca ficamos mais de quatro anos num lugar. Quando eu tinha cinco, veio a bomba: minha mãe grávida de gêmeas. Foi aí que as viagens deram uma diminuída e nos mudamos pra Berlim. Ela já não estava aguentando o ritmo puxado de acompanhar meu pai em cada viagem de trabalho. E claro, ela nunca deixava ele ir sozinho. Levava a mim junto, tipo mascote.
Em Berlim, ficamos cinco anos. Foi quando minha mãe recebeu uma proposta pra dar aula numa universidade. Ela é doutora em mitologia - especialmente a celta. Como boa irlandesa, ela cresceu ouvindo as lendas do próprio povo, passadas geração por geração até chegar nela. Histórias contadas pelos meus avós, sobreviventes de um povo quase varrido do mapa pelos romanos no século I a.C.
Ela conheceu meu pai na universidade. Ele estava se formando, ela no meio do curso. Cinco anos depois, nasci eu. Estão juntos há quase trinta anos e, sinceramente, ainda são um grude. Tão colados que às vezes chega a enjoar.
Desci as escadas e senti o cheiro de café. Aleluia.
Mesmo depois de três anos na Inglaterra, não me acostumei com esse papo de chá inglês. Eu sou do time do café - forte, amargo, preto como a alma de quem inventa aula às oito da manhã.
- Bom dia, mãe - cumprimentei, fingindo naturalidade.
- Bom dia, Lena. Conseguiu dormir? - ela perguntou, já querendo sondar.
- Dormi como uma pedra - respondi rápido, na esperança de encerrar o assunto.
- Sério? Porque tenho notado que você anda diferente - ela continuou, servindo o café.
Ai, mãe, para.
- Não é nada demais, mãe. Ainda estou me acostumando com a cidade - tentei a clássica evasiva.
- É mais do que isso, Lena. Você não está dormindo direito, vive com olheiras - que tenta esconder com maquiagem, mas eu percebo. Tem dores de cabeça constantes, mal come... - disse, com a voz mais tensa do que o normal.
Droga. Sabia que ela ia notar.
- Mãe, eu estou bem. Só não me adaptei ainda, e vamos combinar que passei a vida toda pulando de país em país, como uma cigana. E esse clima aqui... me deprime. E também, nem fome eu ando sentindo - soltei tudo de uma vez.
Era verdade. Desde que viemos pra cá, não me sinto bem. O clima úmido dessa cidade é sufocante. Odeio lugares que vivem chovendo. Sério. Prefiro mil vezes um dia claro de verão, com céu limpo e estrelas à noite.
Me mudei para Londres depois que me formei há três meses.
A comida também é sem graça. Quando como, parece que mastigo carvão. E mesmo comendo, continuo emagrecendo. Três meses aqui e já foram 10 quilos.
- Mas você se adaptou muito bem quando moramos em Berlim - ela rebateu.
- Eu tinha cinco anos, mãe. Criança se adapta a qualquer coisa. E nem lembro direito daquela época.
O que é verdade. Minhas memórias daquele tempo são como fotos borradas. Lembro de deitar com a cabeça no colo dela enquanto ela mexia no meu cabelo, tentando me acalmar. Eu chorava. As gêmeas tinham acabado de nascer, ela não tinha mais tempo pra mim, e meu pai vivia enfiado no escritório.
Fiquei com ciúmes.
Lembro da última coisa que ela disse antes de eu dormir naquela noite:
"Aconteça o que acontecer, você sempre continuará sendo minha filha. Mo ghealach."
Nunca entendi o que significava. Talvez fosse um sonho. Ou um delírio.
- Lena, por favor, não quero discutir. Só estou preocupada - disse minha mãe, agora com os olhos marejados.
Abracei ela forte. Seu cheiro ainda era o mesmo: lavanda e lilases. Calmante. Quase mágico.
- Eu tô bem, mãe. Tenho problemas como qualquer um, mas não são seus pra carregar. Quero resolver sozinha, ok? - falei, sentindo o calor do abraço dela atravessar a blusa de linho.
- Um dia você será mãe, e vai entender - disse ela, com aqueles olhos azul Caribe brilhando.
Ouvi passos pesados. Meu pai.
- Para de chorar, mãe. O papai tá vindo, e você sabe que ele odeia te ver chorando - avisei, limpando as lágrimas dela.
- Bom dia, minha bela - disse ele, aparecendo atrás dela, beijando sua bochecha.
Os dois são mel demais pra minha glicose.
- Bom dia, minha linda - ele veio até mim e me esmagou com um abraço de urso.
- Pai... tá me esmagando. Pode soltar?
- Desculpa, Luna - ele riu, me soltando. Esse apelido veio sabe-se lá de onde, já que meu nome nem é esse.
Minhas irmãs me chamam de Liz, por causa do meu segundo nome: Elizabeth. Homenagem da mamãe à Elizabeth Bennet de Orgulho e Preconceito. Já o primeiro nome, Selene, é grego, e eu nunca perguntei o motivo.
- O que vocês vão fazer hoje? - ele perguntou, casual.
- Vou à cidade comprar umas coisas pro jantar de amanhã - respondeu minha mãe animada.
- Jantar? Desde quando?
- Decidi ontem. Amanhã é nosso aniversário de casamento. Quero comemorar aqui em casa.
Ai, que brega.
- Sério? E um restaurante cinco estrelas, não seria mais prático?
- Jantar fora é clichê demais, Lena - disse ela, toda romântica, com aquele sorriso de quem está em um comercial de margarina.
- Ok. Cadê May e Ari?
- Já foram pra aula - respondeu meu pai. - E eu também estou indo. Beijo nas mulheres da minha vida!
Assim que ele saiu, ela voltou ao assunto. Claro.
- Lena, me diga o que está acontecendo. Você tem pesadelos, eu sei. Não tente negar.
Como ela sabe?
Fugi do olhar dela, fui pra sala e me joguei no sofá. Fiquei encarando o chão de carvalho até ouvir os passos dela atrás de mim.
- Como sabe dos pesadelos?
- Porque eu sou sua mãe. Você grita dormindo, Lena. E eu notei cada vez que ia te ver e você dizia que estava tudo bem com o rosto apavorado.
Ela não vai largar do meu pé enquanto eu não contar.
- Eu sonho que estou caindo do céu no oceano. Quando caio na água, algo me puxa pra baixo. É escuro, não vejo nada. Tento me soltar, nadar, mas não consigo. E sempre afundo mais.
Ela empalideceu. Tipo, instantaneamente.
- Mãe? Que foi?
- Sonhar com água... não é um bom sinal - disse ela, claramente mentindo com a cara.
- O que mais você viu? - insistiu.
- Um homem. Ruivo, bonito. Usava uma armadura dourada. Os olhos dele brilhavam como fogo. Acordei gritando.
Nesse instante, algo de vidro se quebrou.
Ela estava com uma xícara quebrada na mão. E sangrando.
- Mãe! - corri até ela, tirei os cacos da mão dela e a levei pra pia. Ela deixou a água correr sobre o corte.
- Tá tudo bem, foi superficial - disse, tentando fingir normalidade.
- Que porra foi essa, mãe? Por que você reagiu assim?
- Foi só... uma lembrança do passado.
Mentira.
Ela enrolou um pano na mão, e tentou disfarçar com um sorriso.
- Melhor você ir, não tem compromisso com a Jane?
- Só vou se você estiver bem.
- Estou, juro. Vai lá, se divirta. E diz à Jane que pode nos visitar.
- Ok. Mas a gente vai falar disso depois.
Beijei o rosto dela e fui.
Ela está escondendo alguma coisa. E eu vou descobrir.
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