A Sala de Treinamento
A luz dourada do amanhecer mal tocava as pedras frias da fortaleza quando Lía já estava de pé, o corpo miúdo em posição de ataque, como fora instruída.
— Mais rápido, Lía! — bradou a voz firme de sua mãe.
A mulher imponente, de olhos que pareciam conter tempestades e cabelos como a noite, observava sem emoção enquanto a filha repetia movimentos com mãos e pés calejados.
Lía, com seus cachos vermelhos esvoaçando, tentava não demonstrar cansaço. Sua pele clara brilhava com o suor do esforço, e seus olhos verdes buscavam, em vão, qualquer sinal de orgulho no rosto da mãe.
— Isso é tudo? — ela resmungou. — Uma guerreira não descansa. Uma deusa não teme.
Lía abaixou a cabeça. Queria perguntar por que precisava ser uma deusa. Por que não podia apenas… ser filha? Mas sabia que perguntas traziam castigos silenciosos.
Indiferença
O castelo parecia sempre frio, mesmo nas manhãs mais quentes. As paredes sussurrava ecos do passado — e do sofrimento. Lía andava por corredores silenciosos, sem o toque de um carinho, sem o aconchego de uma história antes de dormir.
— Você nasceu para o propósito — dissera sua mãe uma vez. — E nada mais.
Mas as pessoas da vila… aquelas eram diferentes. Quando ela descia com a mãe, mesmo que em silêncio, sempre recebia sorrisos, frutas doces escondidas em bolsos e apertos de mão gentis.
Eram gestos pequenos, mas Lia os guardava como tesouros invisíveis.
O Plano Sombrio
Numa tarde, voltando do pátio, Lía passou pelo corredor que levava ao quarto de sua mãe. O som de vozes a fez parar.
Ela se escondeu atrás de uma tapeçaria e ouviu uma conversa entre sua mãe e outra mulher, de voz rouca e cruel.
— Está tudo pronto — dizia a amiga. — Quando a lua sangrar, começaremos.
— Usaremos a energia da menina para abrir o Véu — respondeu a mãe, sem hesitação. — O sacrifício será recompensado. Todos morrerão. A vila cairá.
Lía cobriu a boca para conter o soluço. Seu coração martelava. “Usar… a mim?”, pensou, as palavras ecoando como gritos. “Todos morrerão…”
Ela correu silenciosamente de volta ao quarto.
Medo e Decisão
Trêmula, ela se sentou no chão, abraçando os joelhos.
“Eles não merecem morrer… Eles foram bons comigo…”
As palavras da mãe feriam mais do que qualquer golpe físico. Pela primeira vez, o medo não vinha dos treinos ou dos castigos — mas da certeza de que sua própria mãe era o monstro.
Então, Lía olhou para a janela. O céu alaranjado parecia sussurrar coragem.
Ela respirou fundo. Sabia que não podia enfrentar… ainda. Mas fugir? Talvez tivesse uma chance.
Naquela noite, com passos leves e o coração acelerado, Lía reuniu o pouco que tinha. Um manto, um colar antigo escondido no fundo da gaveta — presente de sua mãe, na verdade o único — e a vontade ardente de impedir o massacre.
Antes de sair, olhou para trás. O castelo silencioso parecia dormir. Mas ela sabia… o mal acordaria logo. Então se apressou.
E quando o fizesse, ela não estaria mais ali. Com medo e receio, ela foi sem olhar mais para trás.
A Floresta Sem Fim
Os galhos altos encobriam o céu, e a luz do sol mal conseguia atravessar o véu das folhas. Lía caminhava havia dias, os pés feridos, o estômago vazio, o corpo miúdo tremendo sob a capa suja que antes fora branca.
Ela segurava a adaga curta que havia levado da fortaleza — presente de ninguém, apenas algo que pegou por instinto. O metal frio era seu único conforto, e o peso dela em sua mão lembrava que ainda estava viva.
Seu rosto estava manchado de terra e cansaço. Os cachos vermelhos estavam embaraçados, a pele antes clara agora marcada pelo tempo, por galhos e pela ausência de cuidado. Seus olhos verdes tinham perdido o brilho, substituído por um olhar de fera acuada, como um animal fugido da caça.
Tudo doía. E, no fundo, ela começava a se perguntar: Será que valeu a pena fugir?
O Encontro
Na tarde do sexto dia, quando o frio já começava a cair entre os troncos, ela ouviu passos. Congelou. Apertou a adaga contra o peito e se encolheu atrás de uma raiz grossa, arfando em silêncio.
— Não tenha medo — disse uma voz grave, mas gentil.
Ela espiou. Um homem de cabelos grisalhos, barba longa e olhos dourados como âmbar estava parado alguns metros adiante, ao lado de uma criança — um menino com pele morena, expressão curiosa e um cajado esculpido nas mãos.
— Eu sou Alman, guardião desta floresta. Aqui, você está segura.
Lía não respondeu. Apenas encarou, olhos arregalados, corpo trêmulo. Ela parecia prestes a correr — ou atacar.
O homem então se ajoelhou e estendeu a mão.
— Não precisa lutar mais, pequena. Nem fugir. Nós cuidaremos de você. Confie.
Algo na voz dele não tinha sombra. Era como o som da chuva quando se está sob abrigo, como o cheiro do pão antes mesmo de vê-lo. E quando o menino sorriu, Lía cedeu — lentamente, abaixou a adaga. Um soluço escapou de sua garganta. E chorou.
A Casa Simples
O abrigo não era uma casa.
Era um barraco feito de tábuas, folhas trançadas, galhos curvos. Mas Lía viu algo ali que nunca vira nem no castelo: calor. Não calor de fogo — mas de presença.
Dentro havia uma cama de folhas secas coberta com tecidos ásperos, potes de barro com sopa quente, e símbolos esculpidos em cada canto: runas antigas, que brilhavam suavemente com a respiração da floresta.
— Aqui a natureza protege quem é puro de coração — disse Alman enquanto lhe servia uma tigela. — E ela te reconheceu.
Lía comeu devagar, como se não acreditasse que podia. Quando deitou naquela cama improvisada, o cheiro de terra e flores secas a envolveu. Pela primeira vez, sentiu-se protegida — não por muros, mas por almas.
Antes de dormir, o menino se aproximou e sussurrou:
— Você tem olhos de quem fugiu da escuridão… Mas também de quem carrega luz.
Ela sorriu, quase imperceptivelmente. Então fechou os olhos, e o sono veio como um abraço esquecido.
...“O Despertar dos Elementos”...
Primeira Luz, Primeira Espada
O sol mal havia nascido quando Alman chamou Lía para fora. Ela ainda sentia os músculos cansados, mas os olhos já brilhavam com algo novo: esperança.
Alman estava ao lado de uma pedra coberta de musgo. Sobre ela, repousava uma espada diferente de tudo que ela já vira: lâmina leve e alongada, tom de cinza suave, e finas runas prateadas que pareciam vivas.
— Esta espada não fere sem motivo — disse Alman, com um tom quase reverente. — Ela responde ao que existe dentro de você.
Lía se aproximou, hesitante. Tocou o cabo com os dedos finos. No instante em que envolveu a empunhadura, sentiu uma onda quente correr pelo braço, pelo peito, até o centro do peito. As runas se acenderam, brilhando em tom prateado.
— Eu… estou sentindo — disse, ofegante. — Como se ela estivesse me ouvindo.
Alman assentiu com um sorriso sereno.
— Porque ela está. Toda magia verdadeira começa com escuta.
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A Ligação com a Natureza
Nos dias seguintes, Lía treinava diariamente sob a sombra das árvores antigas. Miri — o menino de olhos vivos e sorriso fácil — a acompanhava em silêncio, às vezes rindo quando ela tropeçava ou fazia algo inesperado.
— Vai rir ou ajudar? — perguntou ela certa vez, com as mãos sujas de terra e os cachos vermelhos cobertos de folhas.
— Rir primeiro — respondeu ele com um brilho nos olhos — depois te ensino como não pisar na raiz errada.
Alman ensinava a ela o equilíbrio:
— A natureza não responde à força, mas à presença. Fique quieta, escute, sinta.
Com o tempo, Lía aprendeu a se concentrar. A espada estava cravada no chão, ela fechava os olhos e respirava. Lentamente, começou a perceber:
Água: gotas flutuavam do solo, formando pequenos círculos ao seu redor.
Ar: o vento acariciava seu rosto e girava em espirais ao seu redor.
Terra: raízes se moviam sob seus pés, como se reconhecessem sua energia.
Fogo: as runas da espada tremeluziam como brasas vivas.
Um dia, Miri a observava enquanto ela concentrava o fogo nas pontas da espada.
— Você está mesmo diferente, sabia? — ele disse.
— Diferente como? — ela perguntou, ainda com os olhos fechados.
— Antes parecia que queria desaparecer. Agora… parece que quer existir.
Lía abriu os olhos e sorriu. Pela primeira vez, ela sentia isso.
A Cura
Durante um treino, Lía escorregou e caiu, rasgando o joelho em uma pedra. A dor foi aguda, mas ela não chorou — apenas fechou os olhos e respirou fundo.
Alman ajoelhou-se ao seu lado.
— Sabe o que precisa fazer.
Ela pousou as mãos sobre o corte, a espada repousando ao seu lado. As runas brilharam, e um calor suave irradiou por sua palma. Aos poucos, a pele se fechou. Sem dor. Sem cicatriz.
Ela ofegou.
— Eu… consegui.
Alman olhou para ela com ternura.
— O poder que destrói é simples. Mas o que cura… esse exige alma.
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As Conversas ao Entardecer
À noite, os três se reuniam em volta do fogo. O cheiro de sopa de raízes e ervas preenchia o ar. Entre uma colherada e outra, falavam do mundo.
— Você sempre morou aqui, Alman? — perguntou Lía.
— Sim. A floresta me escolheu quando perdi tudo.
— E a espada? Como sabia que era minha?
— Porque ela não aceitou ninguém mais desde que chegou. Esperava alguém que ainda tivesse fé na luz, mesmo depois de atravessar a sombra.
Miri riu:
— Tradução: ela é teimosa, assim como você.
Lía sorriu, mas seus olhos brilharam com emoção. Ela não sabia tudo sobre seu passado, mas agora, pelo menos, sabia uma coisa sobre o presente: ela pertencia ali. Mesmo que só por agora, estava em casa.
Treinando com a Natureza
Os dias se transformaram em semanas. A floresta os envolvia com sua sabedoria silenciosa, e cada manhã trazia um novo desafio. Alman guiava, mas era entre os treinos que Lía e Miri encontravam o verdadeiro poder: a conexão.
— Concentre-se, Lía. O ar não responde à pressa — dizia Alman, observando-a erguer os braços, tentando canalizar o vento.
— O vento que me perdoe — ela resmungava, franzindo a testa — mas ele é muito teimoso!
Miri ria, deitado sobre uma pedra coberta de musgo.
— Talvez ele só esteja imitando você.
Lía jogou um punhado de folhas secas nele.
— Muito engraçado, garoto da vara mágica!
— É um cajado! E é ancestral! — protestou ele, limpando as folhas do cabelo.
O treino terminava sempre com risos, mesmo nos dias difíceis. Aos poucos, os dois começaram a se sincronizar: Miri dominava o controle de energia pela terra e água, enquanto Lía se afinava com o ar e o fogo.
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O Crescimento
As habilidades de Lía evoluíam com firmeza:
Criava redemoinhos de vento com um gesto fluido.
Erguia pequenas chamas entre os dedos sem se queimar.
Aprendera a canalizar o som das árvores, escutando segredos antigos.
E a espada… já parecia uma extensão de seu corpo.
Miri, por sua vez, comandava raízes com precisão, usava a água dos riachos para criar barreiras defensivas e, com o cajado, criava pulsos de energia que desarmavam Lía — para seu desgosto.
— Você está trapaceando, Miri!
— É estratégia! — dizia ele com um sorriso vitorioso.
— Um dia, você vai voar num redemoinho e ver só!
Eles não percebiam, mas estavam crescendo — não apenas em poder, mas juntos.
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Conversas sob as Estrelas
À noite, ao redor da fogueira, dividiam pão seco, frutas colhidas e sonhos.
— Você sente falta dela? — perguntou Miri certa vez, depois de um dia especialmente difícil.
Lía demorou a responder. Fitava as chamas como se buscasse coragem nelas.
— Sinto… o que nunca tive dela. Nunca senti o abraço de mãe. Só ordens… e medo.
Miri se aproximou, os olhos sérios.
— Minha mãe morreu quando eu era pequeno. Eu só lembro da voz dela cantando. Alman me encontrou depois.
Ela o olhou.
— Então somos dois sozinhos.
— Não mais. Agora, somos dois juntos.
Lía sorriu. Pela primeira vez, não se sentia só.
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Treino em Dupla
Com o passar do tempo, Alman os colocava para treinar juntos. Primeiro, em duplas contra ele. Depois, um contra o outro.
— Sem piedade! — gritou Miri, avançando com uma esfera de água nas mãos.
— Vai sonhando! — Lía desviou e usou o vento para desequilibrá-lo.
Caíram os dois, rindo como crianças.
— Você teria perdido se fosse real — disse ele, fingindo dor.
— Eu teria curado você depois. Então tecnicamente, seria empate.
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Uma Promessa no Coração da Floresta
Num fim de tarde, sentados ao pé de uma árvore antiga, com raízes grossas e folhas douradas, Miri falou em voz baixa:
— Lía… você acha que um dia vai precisar enfrentá-la?
Ela ficou em silêncio, os olhos fixos no céu.
— Acho que sim. Mas… não quero odiá-la. Só quero que ela pare. Que veja o que está fazendo.
Miri segurou sua mão.
— Quando esse dia chegar, você não vai estar sozinha. Eu estarei com você.
Ela apertou de volta, lágrimas contidas nos olhos verdes.
— Obrigada, meu irmão.
E ali, no coração da floresta, uma nova promessa nasceu: não importa o que viesse, eles enfrentariam juntos.
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