O Chamado de Areia e Pedra
O e-mail chegou às 4h17 da manhã, mas ela só viu ao despertar, ainda com a xícara de café quente nas mãos. “Proposta de trabalho – Museu Thorne.” O coração bateu mais rápido. O nome não era qualquer um. O Museu Thorne, em Londres, era referência em arqueologia egípcia — e não mandava mensagens a recém-formadas com um currículo modesto, a não ser que vissem algo.
Ela clicou.
“Prezada Dra. Elisa Mourad,
Após analisarmos seus relatórios técnicos e artigos publicados, gostaríamos de convidá-la para chefiar uma expedição financiada pelo nosso museu ao sul de Luxor, no Egito. Enviaremos os detalhes logísticos e científicos caso aceite. A expedição parte em duas semanas.”**
Elisa deixou a xícara na mesa. Os dedos tremiam.
Era isso. Depois de anos mergulhada em livros, noites em claro digitalizando fragmentos esquecidos, dias em depósitos de universidades classificando peças que ninguém queria, aquele era o salto que ela esperava — e temia.
Ela se olhou no espelho da cozinha. Os cabelos negros ainda meio desarrumados caíam como um manto sobre os ombros finos. Os olhos verdes, por trás dos óculos, refletiam um misto de medo e fome. Medo do fracasso. Fome de verdade.
Ela respondeu ao e-mail com um sim. Sem pensar muito, como quem pula de um penhasco confiando que há água lá embaixo.
O que ela ainda não sabia era que essa viagem não apenas mudaria sua carreira — ela mudaria sua vida.
E talvez a história da própria arqueologia.
Equipe dos Loucos Corajosos
O galpão improvisado servia como base para as reuniões da equipe antes da partida para o deserto. Mesas com mapas, caixas com equipamentos lacrados, e um calor abafado mesmo com o ar-condicionado lutando pela sobrevivência. Elisa entrou com a prancheta nas mãos e o coração aos pulos.
Seis pares de olhos se voltaram para ela. Alguns curiosos, outros avaliadores. Todos ali sabiam que ela era jovem demais para estar no comando. E justamente por isso, ela se adiantou antes que qualquer um pudesse subestimar.
— Bom dia. Sou Elisa Mourad. E sim, eu sei que sou a mais nova da sala — começou, erguendo uma sobrancelha. — Mas se estão aqui, é porque confiam no trabalho. E eu também.
Um homem alto, com cara de quem já enfrentou três tempestades de areia e dois divórcios, levantou uma mão como se estivesse na escola.
— E se aparecer uma múmia assassina? A chefe tem um plano?
Risadas ecoaram. Elisa sorriu, controlada.
— Se for bonita, eu converso. Se for feia, é com você, Farley.
Mais risadas. Até Farley, o piadista geólogo da equipe, assentiu com um grunhido satisfeito.
Uma mulher no fundo, trançando os cabelos grisalhos com calma metódica, ergueu os olhos.
— Cês tão rindo, mas é bom lembrar: aquela área já tinha sido estudada. Nada foi encontrado. Agora, do nada, surge uma nova formação no subsolo. Isso não é normal.
— Ah, pronto… Vai começar a sessão espírita — murmurou outro, jovem, olhos vivos, provavelmente o técnico de drones.
— Cala a boca, Greg. Pelo menos respeita os mortos — resmungou Mahmoud, egípcio, responsável pelas escavações. Ele já entrou na sala sussurrando orações. — A gente nunca sabe o que tem lá embaixo. Se era pra ficar escondido, pode ter um motivo.
O silêncio caiu por um segundo.
— Bom — disse Elisa, quebrando a tensão — se for maldição, a gente só precisa correr mais rápido que o Farley.
— Ei!
Mais risos. A tensão se dissolveu como poeira ao vento.
Elisa olhou para o mapa no centro da mesa. A nova formação havia surgido em um levantamento de solo por satélite. Ninguém sabia o que era. Mas todos sentiram — como se algo estivesse esperando ali. Enterrado. Silencioso.
Talvez não por acaso.
Olhos no Subsolo
— Antes de qualquer picareta tocar o chão, os drones descem primeiro — disse Elisa, apontando para o monitor central.
O grupo se aproximou enquanto Greg, o técnico de tecnologia, já ativava o console. Os drones compactos estavam prontos: câmeras térmicas, sensores de gás, iluminação de LED e estabilizadores para resistir a espaços estreitos e instáveis.
— A gente precisa entender a estrutura. Se for uma tumba, ou algo próximo disso, qualquer passo errado pode causar um desabamento. E a última coisa que eu quero é virar manchete como "a arqueóloga que cavou um túmulo e cavou o próprio junto" — completou Elisa, olhando para Farley. — Sem ofensa.
— Só se for um túmulo climatizado — murmurou Farley, abanando o colarinho.
— Os drones vão nos dar uma leitura térmica, estrutura básica e imagens 3D. Depois, com os dados, decidimos por onde começar. Nada de heroísmo, nada de pressa.
— E se for só um buraco natural? — perguntou Ana, a topógrafa, cética.
— Então catalogamos, registramos, e voltamos pra casa com uma bela decepção documentada. É assim que funciona ciência — respondeu Elisa. — Mas se for o que parece… então temos algo que escapou de todas as outras escavações anteriores. E isso muda tudo.
Greg acionou o primeiro drone. Um zumbido sutil encheu a sala.
— Drone 1 subindo… e... descendo — corrigiu, quando a tela mostrou a abertura estreita na terra, a entrada escavada cuidadosamente nos dias anteriores.
Todos se calaram. A câmera começou a transmitir. Paredes cobertas de poeira, mas lisas. Muito lisas. Como se tivessem sido talhadas à mão. O drone avançava, metro a metro, revelando um corredor estreito.
Mahmoud fez o sinal da cruz, depois murmurou um versículo.
— Tem algo ali — sussurrou ele.
Na tela, uma curva apareceu. Algo geométrico, claramente não natural. Uma estrutura de pedra. E símbolos… apagados pelo tempo, mas ainda visíveis.
Elisa se aproximou da tela e olhou fixamente.
— Parem o drone. Zoom nesses hieróglifos.
Greg obedeceu.
O silêncio na sala era total.
— Isso é antigo… muito antigo. Pré-dinástico, talvez… — Elisa murmurava, quase pra si mesma. — Mas essa linguagem... tem algo estranho aqui.
Farley assobiou.
— Olha só... parece que a múmia quer conversar.
— Ou quer avisar pra gente cair fora — disse Ana.
Elisa não respondeu. Ela só observava a tela. O rosto concentrado, olhos verdes fixos.
Algo estava ali embaixo. E eles estavam prestes a acordá-lo.
A Mais Amada
O drone avançava lentamente, seus rotores zumbindo baixo, como se temessem fazer barulho demais naquele corredor enterrado.
Na tela, a equipe observava em silêncio absoluto. A câmera virou uma curva e então… parou.
Todos se inclinaram ao mesmo tempo.
Ali, diante do drone, estava uma porta de pedra. Imensa. Coberta por uma camada de pó milenar, mas intacta. Simétrica. Desgastada apenas nas bordas, como se ninguém a tocasse há milhares de anos.
E no centro dela, esculpida em alto relevo com traços firmes e elegantes, uma inscrição em hieróglifos antigos. Elisa congelou.
— Para… para aí… dá zoom. Greg, captura isso.
— Já tô no máximo — respondeu Greg, a voz baixa.
Elisa aproximou-se da tela, os olhos verdes arregalados.
— Isso é… “Hemet Meret” — traduziu ela em voz quase trêmula. — “A Mais Amada.”
— Isso é um título? — perguntou Farley, mais sério agora.
— É mais que isso — respondeu Elisa. — É como uma rainha poderia ser lembrada. Não uma rainha qualquer… Alguém querida, reverenciada. Talvez alguém que dividiria o trono com o faraó.
— Nunca ouvi falar dessa tumba — disse Ana, já consultando registros no tablet. — Isso devia estar catalogado. Com esse tamanho, com essa inscrição…
— Não está — cortou Elisa. — Isso não devia estar aqui. Essa área já foi vasculhada três vezes. Isso não é só estranho. É impossível.
— Ou foi escondido — disse Mahmoud, sussurrando. — Enterrado de propósito.
Antes que alguém respondesse, a imagem no monitor estalou.
— Opa… não, não, não… — Greg começou a digitar feito louco. — Perdi o sinal. Droga, não é possível…
A tela congelou por um segundo. Depois, preto.
— Merda! — gritou Greg, batendo a mão na mesa. — O sinal tava limpo! O drone tava carregado, o ambiente tava estável, não tem porra nenhuma ali que justifique isso! Eles não caem do nada assim!
Farley se inclinou pra trás.
— Bom… parece que “a mais amada” não gostou da visita.
Mahmoud levantou da cadeira e começou a rezar em voz baixa, virado para Meca.
Elisa não disse nada por um instante. Apenas encarava a tela preta.
Depois, virou-se para todos.
— A partir de agora, ninguém entra ali sem meu sinal. E ninguém entra sozinho. Esse lugar não é comum. E se tem algo que não quer ser encontrado… vamos descobrir por quê.
O silêncio caiu de novo. Mas desta vez, era diferente.
Agora todos sabiam:
a tumba estava esperando.
E eles já haviam batido na porta.
O Pacto
A tenda de comando estava silenciosa. A tela do drone agora mostrava apenas o último quadro antes da queda: a porta, a inscrição e um trecho do corredor lateral, onde a parede exibia mais hieróglifos, antes de tudo escurecer.
Elisa estava sentada sozinha, rodeada de anotações, ampliando os detalhes das imagens congeladas. Seus olhos dançavam entre os símbolos como se lessem outra língua — porque era exatamente isso.
Ela murmurava baixinho enquanto traduzia. E a cada linha, seu rosto se tornava mais tenso.
Greg entrou, ainda irritado, mas curioso.
— Conseguiu ler alguma coisa além do título?
Ela respondeu sem olhar pra ele:
— Sim. Isso aqui não é só uma tumba. É uma história. E é antiga. Muito mais do que eu esperava.
Ela girou o monitor e apontou para uma linha quase apagada no canto esquerdo.
— “O rei da noite sem estrela…” — leu em voz baixa. — “Perdeu sua flor do Nilo. Chorou por quarenta noites, e no fim fez oferendas ao Guardião do Silêncio…” — ela olhou para Greg. — Anúbis.
Greg franziu o cenho.
— Isso tá esquisito.
— Fica pior — disse ela. — Ele não fez só orações. Ele ofereceu sangue real. Sacrifícios. E em troca, pediu que Anúbis não deixasse a alma dela cruzar o Duat. Pediu que ela ficasse… aqui. Preservada. “Com a essência intacta, a luz presa em carne.” Essas palavras estão esculpidas duas vezes.
Greg engoliu seco.
— E o nome do faraó?
Elisa respirou fundo, depois falou com clareza:
— Khamenu. E ela… Neferet. “A mais amada.”
Nessa hora, Mahmoud, que ouvira do lado de fora, entrou com expressão grave.
— Khamenu… esse nome é velho. Quase lendário. Alguns dizem que ele não existiu. Outros dizem que o próprio nome foi apagado dos registros por medo.
— Por quê?
— Porque dizem que ele tentou trair a ordem natural. Que fez pactos para viver além do tempo. Para aprisionar a morte.
Farley entrou logo atrás, ouvindo o final.
— Uma tumba com o dedo de Anúbis… não é só simbólica — disse ele. — Isso aqui é um selo. Uma advertência.
Silêncio. Todos estavam ali agora, reunidos. Ninguém fazia piada dessa vez.
— Tem coisas no Egito — disse Ana, lentamente — que são mais antigas do que as areias do deserto. E quando algo é enterrado fora da história… geralmente tem um bom motivo.
Elisa se levantou, encarando a imagem da porta. A inscrição ainda pulsava em sua mente.
— Se Khamenu conseguiu mesmo o que queria… então Neferet não está apenas enterrada.
Ela virou-se para o grupo.
— Ela pode estar esperando.
A Espada de Anúbis
As velas tremeluziam na mesa enquanto Elisa ampliava mais uma imagem congelada do drone. Suas mãos já estavam sujas de anotações, o cabelo preso num coque frouxo, óculos manchados de poeira. Mas ela não parava.
— Tem mais — disse, com a voz baixa e tensa. — Tem um trecho escondido na base da parede. Estava coberto de sedimento, mas a câmera térmica captou. Eu consegui decifrar agora.
Todos se aproximaram.
— “Por uma alma, cem mil.” — Ela parou. — “Por Neferet, minha luz, entreguei cem mil sombras.”
— “Tomei a mão do Deus da Morte, e com ele troquei minha essência.”
— “Já que tomaram minha luz, eu tomarei a luz da terra.”
— “Meu nome será lama, minha alma será lâmina.”
— “Serei a espada viva que ceifa em nome de Anúbis.”
Silêncio.
Farley quebrou primeiro:
— Droga. Merda. A gente tem mesmo que descer lá e mexer com a tumba da esposa do cara que virou ceifador oficial do submundo?
— Farley, cala a boca! — disse Mahmoud, firme. Ele cruzou os braços sobre o peito e virou-se para o canto da tenda. — Não fala assim. Ele pode estar ouvindo. E se estiver… pode se ofender.
Farley levantou as mãos.
— Foi mal. Senhor Khamenu, nada pessoal. Sua esposa deve ter sido incrível. Muito bonita. Rainha maravilhosa. A gente só tá… estudando, ok?
Mahmoud não respondeu. Começou a orar. As palavras em árabe fluíam baixas e constantes, enquanto ele passava as mãos pelo próprio corpo, fazendo sinais para "fechar" os pontos de entrada espiritual — cabeça, peito, barriga, pés.
— Tá fechando o corpo? — sussurrou Greg.
— E você devia fazer o mesmo — respondeu Mahmoud, sério. — Quando se trata de algo que carrega o dedo de Anúbis… não é superstição. É proteção.
Elisa se recostou na cadeira, olhando para a inscrição mais uma vez.
— Essa tumba não é um enterro. É um altar — disse. — Khamenu fez mais do que esconder Neferet. Ele criou um vínculo. Uma âncora.
Ela olhou para a equipe, agora silenciosa.
— Quando abrirmos aquela porta… não estaremos apenas entrando numa tumba.
Estaremos quebrando um pacto.
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