O sol ainda acordava por trás das montanhas, tingindo o céu com pinceladas suaves de rosa e dourado. A bruma dançava por entre as plantações de milho, subindo pelas frestas das janelas, trazendo o cheiro fresco da madrugada. Os galos cantavam ao longe, pontuando o despertar das casas de madeira, uma a uma.
Na varanda dos fundos da propriedade dos Duarte, uma figura delicada permanecia sentada, com os pés descalços sobre a madeira fria e os olhos fixos no campo. Helena. Vinte e dois anos de doçura calada, moldada pelo tempo e pela tradição. Os cabelos longos, castanhos e pesados, estavam trançados com fitas bordadas pela própria mãe. Usava um vestido simples de algodão azul-claro, já um tanto gasto nas bainhas, mas ainda conservando a graça inocente de sua juventude.
Segurava nas mãos um bordado por terminar, mas os olhos... ah, os olhos estavam muito longe dali.
— Helena, minha flor — chamou a voz da mãe, vinda da cozinha. — Vem tomar o café, minha filha. O leite ainda está morno.
— Já vou, mãezinha — respondeu com suavidade, mas sem mover-se.
Naquela manhã, algo a inquietava. Um pressentimento vago, um incômodo que pesava no peito feito pedra de moinho. Ela não sabia ainda, mas o destino já soprava suas intenções no ar — e seu nome era Olavo.
A chegada do coronel
Não era dia de visita, tampouco havia qualquer festa na cidade. Mas ainda assim, uma carruagem preta puxada por dois cavalos marchava pelo caminho de terra batida, com o brasão dos Montenegro gravado na lateral: a família de Olavo, o coronel.
Na sala dos Duarte, o pai de Helena limpava as mãos num pano e ajeitava o colarinho com dedos trêmulos.
— Ele não vem cá por nada pequeno — disse à esposa, que lhe observava com olhos duros. — Coronel Olavo não é homem de passeio. Se bate à nossa porta, é porque traz assunto de peso.
A mulher não respondeu. Apenas cruzou os braços e fitou o relógio de parede, como quem espera que o tempo fuja.
Olavo desceu da carruagem com a firmeza de quem carrega o mundo nas costas e não se curva por nada. Usava botas engraxadas, casaco marrom e um chapéu escuro. O bigode bem aparado, os olhos semicerrados. Tinha o ar de alguém acostumado a mandar.
— Seu Antônio — cumprimentou, ao apertar a mão do pai de Helena com força desnecessária. — Lhe agradeço por me receber.
— Coronel... o prazer é nosso. Esta casa é modesta, mas de coração largo.
Helena escutava a conversa pela fresta da janela. Uma inquietação crescia em seu peito. Sabia quem era Olavo. Toda a cidade sabia. Era o homem que fizera fortuna com gado e terras, que comprava juízes e ameaçava desafetos com o silêncio de uma espingarda.
— Espero que a sinhá esteja com saúde — disse Olavo, após tomar assento. — Ouvi dizer que tem uma filha... de formosura rara.
Antônio hesitou.
— Sim, senhor. Helena é uma moça direita, de casa e de igreja.
— Pois é dela que vim falar.
A frase caiu como um trovão.
Na cozinha, Helena deixou cair o pano de bordado. Sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha. Não precisava escutar mais nada para saber: tornara-se alvo. Um nome pronunciado por um homem com poder demais e piedade de menos.
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O dia mal havia começado quando Helena sentiu que o mundo que conhecia estava prestes a ruir. A chegada do coronel Olavo à sua casa era como o prenúncio de uma tempestade. Mesmo sem saber o que se passava dentro da sala, seus instintos gritavam. Havia algo naquela visita inesperada que lhe provocava um frio no estômago. Sentada no batente dos fundos, ela ouvia os passos ecoando pelo assoalho, as vozes masculinas trocando frases curtas, sérias, definitivas.
Verônica, sua amiga e confidente, chegou ofegante. Vinha do curral, com as saias levantadas até o tornozelo e o rosto corado.
— Helena, tu viste quem acaba de chegar?
— Vi sim — respondeu, com um fio de voz. — O coronel.
— Pois te prepara. Quando homem daquele naipe baixa nesta casa, não é pra tomar café. Ouvi o Seu Antônio falar que ele quer fazer proposta.
Helena apertou os dedos contra os joelhos. O coração parecia tamborilar dentro do peito.
— Proposta de quê, Verônica?
Verônica abaixou o tom, se aproximando como quem traz um segredo grave.
— De casamento, ué. Dizem que o coronel não tirou os olhos de ti na missa do domingo passado. E que desde que a mulher dele se foi, vive à cata de nova esposa pra "acomodar a casa".
Helena sentiu a boca secar. O cenário se fechava como uma armadilha.
— Ele tem idade de ser meu avô, Vero.
— Tem mais que isso, Lena. Tem poder. E teu pai anda com as contas até o pescoço.
Helena levantou-se de súbito. Foi para o quarto, mas não para se esconder. Pegou o retratinho amarelado que guardava dentro da caixinha de costura. Era Paulo Felipe. Seu Paulo. Seu amor. O rapaz do sorriso sereno, das mãos calejadas, dos olhos que lhe prometiam um futuro inteiro, mesmo sem posses. O homem com quem sonhava construir uma vida, simples que fosse.
— Ele não pode... não pode fazer isso comigo — murmurou, enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos.
Mas seu pai podia. E estava fazendo.
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Na sala, o coronel retirava as luvas com a calma de quem está acostumado a ver o mundo se curvar à sua vontade.
— Como já disse, Seu Antônio, sei que vossa família é honrada. E como homem de respeito, venho com intenções claras. Desejo desposar sua filha Helena.
Antônio pigarreou. Olhava para o chão, mas seus olhos denunciavam a luta interna. De um lado, o amor paternal. Do outro, a promessa de salvamento financeiro.
— Coronel, Helena ainda é moça de espertezas... tem sonhos, sabe? Não sei se ela...
Olavo ergueu a mão, interrompendo.
— Sonhos não pagam dívidas, meu caro. A senhora sua esposa precisa de remédios, não? E o banco não espera.
Tirou do bolso um envelope grosso e o pousou sobre a mesa. O som surdo do papel pesado ressoou como um trovão abafado.
— Este é o primeiro sinal. Depois do casório, vossas contas serão quitadas. E sua filha será tratada como dama de respeito. Terá criadas, roupas finas, joias. Vai morar na casa grande. É mais do que muitas por aí conseguem.
Seu Antônio não respondeu. Pegou o envelope com mãos lentas, como quem segura uma pedra.
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Helena esperava por ele no alpendre. Quando o pai saiu, já sabia. As rugas no rosto, os olhos baixos, a ausência de palavras. Tudo dizia o que ele evitava dizer.
— Ele te ofereceu dinheiro, não foi? — perguntou, encarando-o.
Antônio se aproximou, sentou-se a seu lado. Por um instante, foi apenas um homem velho diante da filha que amava, mas que estava vendendo.
— Helena, minha menina... a vida nem sempre dá escolha.
— Deu ao senhor. E o senhor escolheu o dinheiro.
— Escolhi salvar tua mãe. Escolhi não perder nossa casa. Escolhi não morrer de vergonha diante dos vizinhos.
Ela levantou-se, sentindo a raiva queimando-lhe o rosto.
— E quem vai me salvar, pai? Quem vai me tirar do leito de um homem que me causa nojo só com o olhar?
Antônio não respondeu. As palavras lhe secaram na boca.
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Naquela noite, Helena correu para o celeiro. Não para fugir, mas para encontrar Paulo Felipe. O coração pedia socorro. Precisava dele. Precisava da verdade.
O luar invadia o espaço entre as vigas de madeira. O cheiro de feno, do suor dos animais, da madeira crua... tudo era familiar. E ali, sob a palha, encontrou Paulo encostado à parede, esperando por ela, como sempre fazia.
— O coronel veio... e me pediu às vistas de meu pai — disse Helena, com os olhos marejados.
Paulo a abraçou. Forte. Intenso.
— Pois não há homem nem dinheiro que me tire de perto de ti, Helena. Não será ele que há de ditar teu destino.
— Mas ele já ditou.
Ficaram ali por minutos que pareceram eternos. Helena soluçava em silêncio. Paulo apertava-lhe a mão com ternura.
— Foge comigo — disse ele, num sussurro. — Hoje. Agora. Temos o cavalo, o caminho. Ninguém nos para.
Ela o olhou, com o rosto banhado em lágrimas.
— Se eu for... ele mata meu pai.
E então, ambos souberam: estavam presos. À vontade de um homem. Aos dogmas de uma época. Ao destino cruel de quem ama em tempo errado.
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O casamento foi marcado para dali a três semanas. A cidade já murmurava elogios e escândalos contidos. "Uma menina de sorte", diziam uns. "Uma vergonha!", sussurravam outros. Mas todos sabiam: com o coronel ninguém se metia.
Helena, de dentro de sua prisão de seda, assistia ao mundo fechar as cortinas.
E enquanto isso, no fundo do coração, um plano crescia. Um plano silencioso, costurado em lágrimas e coragem.
As galinhas cacarejavam no terreiro quando Helena desceu as escadas de madeira, o vestido azul-claro rodando em torno de seus tornozelos. A manhã ainda respirava neblina, e o cheiro de café coado preenchia a casa simples, feita de madeira escura e rangente. Na cozinha, sua mãe, Dona Matilde, mexia a panela com angu, os olhos fundos e as mãos calejadas de tanto trabalhar.
— Bom dia, mãe — disse Helena, sentando-se à mesa.
— Bom dia, minha filha. Dormiu bem?
Ela hesitou. Como poderia dizer que havia chorado em silêncio por horas, apertando contra o peito a fita bordada que Paulo Felipe lhe dera certa tarde no bosque?
— Dormi, sim... — mentiu, baixando os olhos para esconder a verdade.
Dona Matilde lhe serviu café e um pedaço de pão seco. Do lado de fora, o sol começava a vencer a névoa e tingia o céu de dourado. O galo cantava em algum lugar, anunciando que a rotina da roça precisava começar.
Pouco tempo depois, Helena pegou seu cesto de palha e saiu para colher flores silvestres. Era uma desculpa, claro. Seu coração disparava, pois aquele era o dia em que veria Paulo Felipe outra vez. Caminhou pelo campo com passos rápidos, como se o chão estivesse quente sob seus pés. O vestido esvoaçava, e os cabelos soltos pareciam acariciar o vento.
No bosque, junto ao riacho onde o som da água era como canção de ninar, Paulo já a esperava. Vestia camisa branca, mangas arregaçadas, e calça de linho marrom presa com um cinto de couro rústico. Seus olhos brilharam ao vê-la, e ele sorriu com ternura.
— Achei que não virias mais, minha flor.
— Sabes que viria, mesmo que o mundo se acabasse, Paulo.
Ela correu e caiu em seus braços. O beijo veio como reencontro de almas separadas, lento e sedento. Ali, o tempo parecia esquecer de andar. Sentaram-se na relva, ele acariciando os cabelos dela, ela com o rosto escondido em seu pescoço.
— Estás tão triste, Lena — disse ele. — O que houve?
— O casamento, Paulo... foi marcado.
Ele a encarou. Seus olhos pareciam de vidro, prestes a partir.
— Com aquele velho maldito?
— Não chames assim, por Deus.
— Que outro nome merece um homem que compra a honra de uma moça com dinheiro? Que arranca-te de mim como se fosses galinha de leilão?
As lágrimas escorreram pelo rosto de Helena.
— Eu tentei convencer meu pai... mas ele está decidido. Disse que é nossa única chance de sair das dívidas. Que o Coronel Olavo prometeu pagar as contas, salvar as terras. E eu... eu sou a moeda.
Paulo apertou os punhos com força.
— E eu? Que sou eu nesta história? Acaso não tenho coração?
— Tens, meu amor... e ele bate junto ao meu.
— Então foge comigo, Lena. Vamos embora desta cidade amaldiçoada. Pegamos a estrada, seguimos para o sul. Conheço gente em Campinas, posso arrumar trabalho de carpinteiro...
— Fugir? Paulo, isso seria nossa sentença. Sabes como são as coisas. Olavo é influente. Ele nos caçaria como a um cachorro perdido. E tu... tu serias preso. Ou morto.
Ele abaixou a cabeça, derrotado.
— Não posso permitir que te tomem, Lena. Não posso ver-te nos braços de outro homem. Ainda mais de um bruto como aquele.
Ela tocou seu rosto com doçura.
— Então vivamos o que pudermos, aqui, agora. Mesmo que seja em segredo, mesmo que seja escondido de tudo. Cada instante contigo vale mais do que uma vida de mentira ao lado de um homem que me repugna.
Paulo a beijou de novo, mais urgente desta vez. E entre os arbustos, sob o canto das cigarras, fizeram amor com pressa e reverência, como se o mundo estivesse por desabar. Ela gemeu baixinho, o rosto enterrado no ombro dele, e ele sussurrou promessas ao ouvido dela, jurando que haveria de lutar por ela até o fim.
Mais tarde, Helena voltou para casa com as flores do campo em seu cesto e os cabelos bagunçados. Sua mãe lançou-lhe um olhar de suspeita, mas nada disse. O pai, sentado na varanda com um jornal, mal levantou os olhos. O jantar foi silencioso.
À noite, Helena sentou-se à janela de seu quarto e olhou o céu estrelado. O vento da noite trazia consigo um cheiro de terra molhada. Sentia o corpo ainda quente de desejo e a alma em pedaços. Sabia que o relógio da vida andava rápido demais, e que os dias ao lado de Paulo estavam contados.
Na casa do Coronel Olavo, o homem de bigode espesso e olhar severo observava documentos sob a luz fraca do lampião. Tinha o rosto vincado pelo tempo e as mãos grossas de quem mandava mais do que fazia. Ao seu lado, um copo de cachaça e uma carta aberta: a confirmação do casamento marcada para dali a vinte dias. Sorriu de canto, satisfeito.
— Em breve, terei a moça em minha cama — murmurou. — E ela aprenderá a me respeitar.
Um de seus capangas, sentado ao lado, coçou a barba.
— Dizem que a menina é rebelde... e que anda com aquele carpinteiro.
Olavo bufou.
— Paulo Felipe? Um miserável. Um cachorro sem nome. Não há o que temer. Se ele cruzar meu caminho, trato de dar-lhe o fim que merece.
Enquanto isso, Verônica, a amiga fiel de Helena, escrevia em seu diário. Ela sabia de tudo. E em seu coração nascia uma semente de revolta.
"Se eu pudesse... se eu tivesse coragem... eu a ajudaria a escapar desse destino cruel. Mas sou só uma moça. Uma moça que sabe demais, mas que nada pode fazer.”
No entanto, ela não sabia que, em breve, o destino a colocaria diante de uma escolha que mudaria tudo.
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