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Um Amor Selvagem

capítulo 1

O sol ainda não tinha nascido quando João abriu a porteira com um rangido preguiçoso. A brisa fria da madrugada trazia consigo o cheiro da terra molhada, promessa de um dia quente depois da chuva da noite anterior. Com as botas afundando na lama, ele caminhou em direção ao curral, como fazia todas as manhãs. Era uma rotina solitária, mas confortável — até aquele dia.

Na entrada da propriedade, entre a cerca e o velho galpão de ferramentas, havia um vulto. Um rapaz, encharcado e coberto de barro, dormia encolhido como um animal assustado. João franziu a testa. Aquilo não era comum. Ninguém aparecia por ali, muito menos no escuro.

— Ei! — chamou ele, se aproximando com cuidado. — Tá tudo bem aí?

O rapaz despertou assustado, os olhos arregalados, verdes como folhas novas. Tentou se levantar, mas mancou e caiu de novo.

— Calma, calma. Não vou te machucar — disse João, estendendo a mão. — Tá machucado?

— Eu... acho que torci o pé. Me desculpa, eu não queria invadir. Só tava procurando abrigo da chuva...

João avaliou o estranho. Roupas de marca sujas de lama, cabelo tingido com mechas desbotadas e uma pulseira cara pendurada no pulso fino. Era óbvio que aquele menino não era dali. Parecia saído de uma balada da capital, e não de uma estrada de terra no interior de Minas.

— Meu nome é João. E você?

— Léo.

— Bom, Léo... vem. Vamos cuidar desse pé aí. E depois você me conta o que tá fazendo no meio do mato, parecendo um gato fugido.

Léo hesitou, mas a dor o venceu. João o ajudou a caminhar até a casa, apoiando-o com firmeza. Pela primeira vez em muito tempo, João sentiu uma coisa estranha: o silêncio da fazenda parecia menos pesado com aquele desconhecido ao seu lado.

Na cozinha, enquanto fervia a água pro café, João observava Léo sentar na cadeira como se ela fosse um trono desconfortável. Olhava ao redor com curiosidade — o fogão à lenha, a cristaleira com xícaras antigas, a toalha de crochê feita pela mãe de João antes de falecer.

— Isso aqui parece cenário de novela rural — disse Léo, com um sorriso debochado, mas não maldoso.

— E você parece que saiu de uma novela das nove — retrucou João, levantando uma sobrancelha. — Mas acho que vai se acostumar.

— Vai me deixar ficar?

João encarou aqueles olhos verdes por um momento longo demais.

— Por enquanto. Mas amanhã você me conta por que um Playboy da cidade veio parar no meu terreiro.

Léo sorriu com canto da boca, meio aliviado, meio desafiador. E foi ali, sob o céu que começava a clarear, que algo invisível e teimoso começou a crescer entre eles.

João serviu o café forte em duas canecas grossas de ágata, o cheiro amargo enchendo a cozinha. Léo levou a xícara aos lábios com as duas mãos, como se estivesse tentando aquecer mais do que os dedos — talvez o coração, talvez a vergonha.

— Isso é café de verdade — murmurou, após o primeiro gole, com um sorriso tímido. — Nada daqueles expressos aguados da cidade.

— Aqui a gente faz tudo direito — João respondeu, sentando-se à frente dele. — Inclusive as perguntas. Vai me contar agora o que fazia dormindo na minha porteira?

Léo baixou os olhos para a caneca. Por um instante, João achou que ele fosse inventar alguma desculpa, mas o silêncio longo denunciava que a verdade era mais complicada.

— Fugi — respondeu por fim. — De casa, da vida... de tudo.

João não respondeu. Apenas esperou, paciente, como quem observa o gado se aproximar da água.

— Meus pais são... importantes, sabe? Empresários. Gente que se preocupa mais com aparências do que com sentimentos. Eu cansei de ser o filho perfeito, o garoto de vitrine. Peguei o carro, o cartão, e fui embora. Achei que ia pra praia. Acabei aqui.

— E o carro?

— A bateria morreu. Deixei no meio da estrada. Acho que estava esperando que alguém me encontrasse. E você encontrou.

João assentiu, pensativo. Não era do tipo que se metia na vida dos outros, mas também não era de negar ajuda a quem precisava — ainda mais quando o “quem” tinha aquele olhar de bicho ferido que tentava esconder a dor com ironia.

— Tem um quartinho nos fundos da casa. Era do antigo peão. Tá vazio agora. Pode ficar lá enquanto decide o que fazer.

Léo o encarou, desconfiado.

— Por quê?

— Por que o quê?

— Por que tá me ajudando? Não tem medo que eu seja algum maluco?

João deu uma risada baixa, o canto da boca se curvando.

— Se você fosse maluco mesmo, não tava com esse olhar de quem só quer um canto pra respirar. E também... — ele se levantou, pegando a caneca de Léo — ...às vezes a gente ajuda porque já esteve no lugar de quem precisa.

Léo seguiu João com os olhos enquanto ele ia até a pia. Pela janela, o céu começava a se pintar em tons alaranjados. A fazenda despertava, e com ela, alguma coisa diferente também parecia despertar dentro de si.

Talvez, ali naquela casa simples, entre cheiro de café e o silêncio do mato, ele encontrasse mais do que abrigo. Talvez, encontrasse um lar.

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capítulo 2

Os dias na fazenda correram rápidos, como as águas do riacho que cortava os fundos do terreno. Léo, que mal sabia a diferença entre um arado e um trator, aos poucos aprendeu a lidar com a lida da roça. Era desajeitado, reclamava do sol, mas sorria. E João... João sorria também, ainda que tentasse esconder.

À noite, às vezes dividiam a varanda, os dois sentados em cadeiras de palha, o silêncio confortável entre eles. Era como se o tempo ali obedecesse outras regras. Mais lentas. Mais leves. Mais perigosas.

Foi numa tarde abafada de sábado que a poeira subiu na estrada de terra, anunciando a chegada de um carro preto, reluzente demais pro tom do campo. João, de chapéu na testa e camisa aberta até o peito, parou o que fazia e franziu os olhos.

O carro parou na entrada da fazenda. Dele saiu um homem de terno cinza claro, óculos escuros, e um celular na mão.

— Boa tarde! — gritou ele, sem se aproximar muito. — Desculpe incomodar. Estou procurando por uma pessoa. Léo Andrade. Jovem, vinte e poucos anos, cabelo claro. Deve estar por essas bandas.

João sentiu o estômago revirar.

— Quem é o senhor?

— Sou da família dele. Enviado pelo pai. O garoto desapareceu há alguns dias. Estamos preocupados.

Antes que João pudesse responder, a porta da varanda rangeu. Léo estava ali, parado, pálido como farinha, encarando o homem como se tivesse visto um fantasma.

— Sr. Diniz... — murmurou ele.

O homem tirou os óculos, revelando olhos frios e impacientes.

— Léo. Que bom te encontrar. Seu pai está à sua espera.

— Eu não vou voltar — respondeu Léo, firme, mas com a voz trêmula.

João se aproximou devagar, como quem protege um bezerro assustado.

— Ele fica aqui enquanto quiser. Essa terra é minha, e você não manda em nada por aqui.

Sr. Diniz mediu João de cima a baixo. O silêncio que se seguiu foi tenso como corda esticada demais.

— Isso é um sequestro, sabiam? — disse ele. — Estão impedindo um jovem de voltar pra casa.

Léo deu um passo à frente, agora mais firme.

— Ninguém me sequestrou. Pela primeira vez na vida, eu escolhi ficar em algum lugar. E esse lugar é aqui.

O homem bufou, irritado.

— Você vai se arrepender disso, Léo. Seu pai não aceita “não” como resposta.

— Talvez ele precise aprender a aceitar, então.

Sr. Diniz entrou no carro sem outra palavra, levantando nova nuvem de poeira. Quando o carro sumiu na curva da estrada, João olhou para Léo, que tremia levemente.

— Ele vai voltar — disse Léo, com a voz embargada. — Eles não vão parar tão fácil.

João assentiu e colocou a mão no ombro dele.

— Então a gente fica pronto. Ninguém te tira daqui à força. Não enquanto eu estiver aqui.

Léo o olhou como se quisesse dizer mais. Como se o medo e a gratidão estivessem misturados com algo mais profundo, que ainda não tinha nome. Mas em vez de palavras, foi um silêncio terno que se instalou entre eles.

E naquela tarde morna, sob o céu vasto e vermelho do interior, os laços entre os dois se apertaram um pouco mais.

capítulo 3

A noite chegou carregada, o céu coberto por nuvens pesadas que escondiam as estrelas. O vento soprava mais forte do que o habitual, assobiando entre as janelas da casa como se quisesse avisar de algo.

João tentava dormir, mas o encontro com o tal Sr. Diniz ainda martelava sua cabeça. Algo naquele homem — no modo como falava de Léo como se fosse uma propriedade — o deixara inquieto. Havia algo não dito, algo escondido, e João sentia no fundo dos ossos que não era só uma briga de família.

Foi então que ele ouviu o barulho. Um estalo, vindo do lado de fora.

Pegou o lampião, calçou as botas, e saiu.

Léo não estava no quarto.

João seguiu os sons até os fundos da propriedade, passando pelo galpão de ferramentas e pela cerca que separava o campo da mata. E lá, sob a lua escondida por nuvens, viu algo que o fez parar de respirar.

Léo estava de pé no meio do campo, sozinho. Ou, pelo menos, deveria estar.

Havia uma luz estranha saindo dele.

Não uma lanterna. Não um reflexo.

Era o próprio corpo de Léo que emitia um brilho suave, prateado, como se as veias sob sua pele carregassem uma energia líquida e viva. Os olhos dele estavam fechados, mas seus pés flutuavam levemente acima do chão. O ar ao redor vibrava, como se o tempo ali tivesse parado.

— Léo? — chamou João, sem entender se era medo ou fascínio que apertava seu peito.

Os olhos de Léo se abriram, e estavam completamente prateados.

— Não era pra você ver isso — disse ele, com uma voz que parecia ecoar em várias direções ao mesmo tempo.

João deu um passo pra trás.

— Que diabos é você?

O brilho começou a diminuir. Aos poucos, Léo voltou ao chão. Os olhos recobraram a cor natural, e a luz desapareceu de sua pele, como se nunca tivesse existido. Mas a expressão dele ainda era de alguém que carregava um fardo pesado demais.

— Eu não sou daqui, João.

— Da cidade?

Léo balançou a cabeça, com um sorriso amargo.

— Não. Eu não sou... como vocês.

Ele caiu de joelhos no chão, exausto. João correu até ele, instintivamente, e o segurou antes que caísse por completo.

— Você precisa me explicar isso. Agora.

Léo olhou nos olhos dele.

— Prometo que vou. Mas não aqui. E não agora. Eles... estão me caçando, João. E não são só meus pais. São outros. E agora que me acharam, você também está em perigo.

João não sabia o que pensar. Tudo o que acreditava, tudo o que entendia do mundo, estava desmoronando. Mas ali, com Léo nos braços, sentia apenas uma certeza:

Mesmo que aquele rapaz não fosse humano, alguma coisa nele — ou talvez tudo — ainda o fazia querer protegê-lo com a própria vida.

E pela primeira vez, o perigo não vinha de fora da fazenda.

O fogo na lareira estalava enquanto João colocava uma manta sobre os ombros de Léo. Estavam de volta à sala da fazenda, o relógio de parede marcando duas e meia da manhã. Nenhum dos dois conseguia dormir. O silêncio era espesso, quebrado apenas pelo som do vento lá fora e do coração de João, batendo rápido demais.

Léo olhava o fogo como se procurasse coragem dentro das chamas.

— Eu fui criado, João. Não nascido.

João franziu o cenho, mas não disse nada. Esperou.

— Fui feito num laboratório chamado Instituto Diniz. Um projeto secreto, financiado por empresas privadas e gente poderosa que quer criar o “humano perfeito”. Fui uma das primeiras versões... e a primeira a escapar.

— Mas... você parece humano — murmurou João.

— Eu sou, em parte. Fizeram experiências com DNA modificado, usaram biotecnologia avançada. Criaram habilidades que eles chamam de “aperfeiçoamentos”. Cada versão tinha uma função. Eu... fui criado para adaptação. Mudança. Sobrevivência.

Ele levantou a manga da camisa, revelando o antebraço. A pele ali estava coberta por cicatrizes finas, quase invisíveis, que começavam a brilhar levemente quando ele tocava com os dedos.

— Quando fico em perigo, meu corpo ativa defesas. Meus sentidos se expandem. Posso me curar rápido. Posso manipular... campos ao meu redor. Luz, energia... coisas que nem entendo completamente. Mas isso me desgasta. Me machuca. Me transforma.

João passou a mão pelos cabelos, em silêncio. Aquilo era mais do que qualquer um conseguiria digerir. Mas não era mentira. Ele viu. Sentiu. E, de algum jeito estranho, acreditava.

— Por isso você fugiu?

— Sim. Me trataram como uma arma, não como uma pessoa. Quando comecei a questionar, a sentir... me chamaram de defeito. Me ameaçaram. Fugi usando os próprios recursos que eles criaram em mim. E agora estão me caçando.

João se aproximou e se ajoelhou à frente de Léo. Tocou seu rosto com cuidado, como se aquele toque pudesse desmentir tudo aquilo.

— E o que você sente agora?

Léo o encarou, os olhos cheios de um medo que não era de morte — era de amor.

— Sinto que aqui... contigo... eu sou mais do que aquilo que fizeram de mim.

Por um instante, o mundo parou. João inclinou o rosto devagar, como se desse a Léo tempo para recuar. Mas ele não recuou.

O beijo foi silencioso, carregado de tensão e necessidade. Não era apenas paixão — era sobrevivência. Era consolo. Era tudo que os dois nunca tinham tido e, agora, encontravam um no outro.

Quando os lábios se separaram, o vento bateu mais forte lá fora. Um estalo veio da varanda. João se ergueu num pulo.

— Tem alguém lá fora.

Léo fechou os olhos. Quando abriu, estavam prateados de novo.

— Eles chegaram.

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