Em primeiro dedico esse livro a toda garota que duvidou de si mesma,que nunca foi ouvida ou apoiada, que nao tinha colo para escorar a cabeça enquanto seu mundo desabava.
Dedico também a cada garota que se achava pequena demais e mediocre demais para o mundo, e se diminuía para caber no mundo de outra pessoa.
Garota acredite, você é capaz de muito mais do que acredita, viva a vida por você, pois essa é uma viagem sem retorno.
E para você que procura no Dark, um homem rendido, que destruiria o mundo só para te salvar, saiba que você nao está sozinha.
Nossa, que friozinho na barriga!
Me sinto como se estivesse apaixonada pela primeira vez! Será que isso é normal?
Olá, pirikitinhas! Sonho em mostrar minhas histórias para o mundo a mais tempo do que posso imaginar, não por me achar boa, mas porque eu realmente acredito que meus personagens merecem ser ouvidos e sentidos. Amo que minhas meninas são duronas e meus garotos sao rendidos, acredito que deveria ser ate uma característica padrão, rsrs
Antes de tudo gostaria de agradecer a cada um(a) que dedicou, ao menos um pouco do seu tempo para conhecer Nix e Scorpion, eles surgiram na minha vida antes mesmo desses nomes, enquanto era só crianças lutando pela sobrevivência, demorei demais para iniciar essa história, eles são feitos de camadas, são seres fragmentados e cheios de traumas, então por favor, deem um voto de confiança a eles, pois de todas a história que escrevi essa é a primeira que tenho coragem para trazer a público.
Nix tem um passado triste, que eu nao desejaria para meu pior inimigo, em varias cenas eu sofri e chorei junto com ela. Ela vai aprender que o fim, nem sempre é como se imagina, que de alguma forma a confiança e a amizade é possível ate nos lugares mais insalubres da face da terra.
Scorpion tem um passado mistério e sombrio, mas ele encontra em Nix a única razão de continuar.
Não so eles comos os outros integrantes da história não tiveram a vida fácil, não compactuo com nada do que fizeram de forma alguma.
Abaddon a princípio seria uma serie de 4 livros distintos, onde contaria a história de cada pavilhão separadamente, mas com o decorrer da história eu simplesmente me apaixonei pelos Supremos e acabou se tornando a história apenas do Pavilhão A, com a participação dos outros pavilhões de forma mais sutil.
Sim meus amores teremos o próximo livro,continuando a saga dos nossos personagens, mas com outro casal em destaque. Óbvio que teremos Nix e Scorpion nele também.
Queria deixar a essência dos meus personagens em cada cena, em cada detalhe do livro, eu realmente espero que tenha conseguido.
Também devo ressaltar que esse é uma história de Dark Romance, tem cenas que eu considero pesadas e com alguns gatilhos, como abuso sexual, violência, agressão, luto, cenas quentes, etc. Se algo não lhe fizer bem, para e não continue a leitura, a sua saúde mental é muito mais importante.
Outro detalhe importante é que todos os personagens aqui, são frutos da minha mente um pouco perturbada, qualquer semelhança com a vida real, é mera coincidência.
Abaddon tem playlist naquele app famosinho que começa com S, se quiserem ouvir as músicas que ouvi enquanto surfava com esses dois é so ir lá.
PS: Queridas e queridos, mania minha chamar qualquer um de pirikitinha tá?
Beijos da B.
(Estou cansado de ser o que você quer que eu seja)
Me sentindo tão sem esperança, perdido abaixo da superfície
Eu nao sei o que você está esperando de mim
Me pressionando para seguir seus passos
(Apanhado pela corrente, simplesmente apanhado pela corrente)
NUMB — LINKIN PARK
O choro cortava o ar espesso dos corredores como uma navalha enferrujada, ecoando entre as paredes sombrias e frias do hospital psiquiátrico.
— Papai, por favor! Não me deixe aqui! Eu juro que vou me comportar... Eu prometo, papai... por favor... — minha voz mal saía, desfigurada pelas lágrimas e pelo medo.
— É pro seu bem, Bela. — foi a única coisa que ele disse, antes da porta de ferro ranger e se fechar atrás dele com um estrondo seco que calou minha alma.
Minhas pernas falharam. Eu tentei correr, juro que tentei. Mas os dois homens com sorrisos tão vaziquanto os seuseus olhos me arrastaram como se eu fosse apenas um saco de ossos. Estava presa numa camisa de força, e os gritos que saíam de mim não tinham mais volume. Apenas ecoavam dentro da minha cabeça.
Uma mulher caminhava à frente com um molho de chaves pendurado no avental branco, como uma carcereira de um inferno particular. Ela usava uma touca branca no cabelo e tinha as mãos manchadas de cicatrizes. Olhava para frente, sem emoção alguma.
Chegamos a uma porta de ferro enferrujada com uma janelinha gradeada. Sem dizer nada, a mulher abriu a cela. Os homens me soltaram da camisa de força e me jogaram para dentro como se eu fosse lixo.
O chão era gelado. O ar, mofado. O odor de urina, fezes e desespero impregnava cada centímetro daquele cubículo. As paredes estavam cobertas por manchas escuras de mofo, e ao fundo havia uma pia trincada e uma privada suja. Com janelas estreitas cobertas por madeiras e pregos. Apenas um colchão velho.
E nada mais.
— Por favor, não me deixem aqui. Eu tenho medo do escuro. Eu prometo... prometo que vou obedecer... — meus soluços se misturavam ao som dos meus próprios joelhos batendo no chão.
— Quem está com a ficha dessa? — a voz da mulher era áspera, sem um pingo de compaixão.
— Aqui — respondeu um dos homens, entregando os papéis.
Mesmo com meu tamanho pequeno e a dor pulsando nos dedos, me apoiei nas grades da janelinha para tentar ver algo do corredor.
— Isabela Belamont. Dez anos. Crises agressivas, a garota vê coisas e tem atos de violência... — a mulher leu em voz alta, rindo ao enfatizar — Awn, chorando? Nem parece a pequena insana que colocaram na ficha.
— Eu prometo... eu prometo ser boa. Por favor, tirem-me daqui... — minha voz falhava.
Sem aviso, senti uma dor aguda. Ela bateu nos meus dedos com um objeto duro, talvez uma tranca. Senti o sangue escorrer.
— Quieta, sua pestinha! Acha que eu acredito nessa cara de anjo? O Doutor Winskou vai adorar você. Vou agendar sua consulta para amanhã.
Os passos dela ecoaram pelo corredor até desaparecerem. Fiquei ali, caída no chão sujo, sem forças para cuidar dos dedos machucados. Apenas abracei minhas pernas e chorei.
Sozinha.
No escuro.
Eu sou suja.
Minha alma é suja.
Desobediente. Inútil. Insuportável.
“Quem mandou mexer onde não devia? Quem mandou xeretar onde não foi chamada?”
As palavras do meu pai se repetiam na minha mente como um disco arranhado.
O tempo perdeu sentido. Adormeci sem perceber e acordei com o frio me consumindo. Minhas roupas estavam molhadas, o cheiro de mofo me enjoava. Encostei-me à parede, encolhida. O silêncio me aterrorizava.
Então, ouvi.
— Acorda. — uma voz dura, feminina.
Um chute nas pernas me fez gritar e abrir os olhos.
— Vamos, menina. Você tem consulta com o doutor. — ela me puxou pelo braço. — Se resistir, vai ser pior.
A mulher do dia anterior caminhava à frente. O mesmo homem de antes me segurava com força.
Caminhamos até um hall iluminado. Um contraste cruel com o lugar onde eu estava. Havia cadeiras, uma recepção organizada, quadros nas paredes. Por um segundo, achei que talvez, só talvez, as coisas fossem melhorar.
— Isabela Belamont, a garota de ontem. — A mulher disse para a secretária, que apenas assentiu e nos encaminhou para uma das salas.
Lá dentro, um homem magro, de barba espessa e óculos retangulares, leu minha ficha sem sequer me olhar.
— O pai autorizou o tratamento? — ele perguntou, frio.
— Sim, doutor. Disse que ela é impossível. Ameaçou agredi-lo ontem. — a mulher respondeu com indignação falsa.
— Começaremos com eletrochoque. Uma pena... tão bonita. Prova de que a loucura não escolhe rosto. — ele murmurou, assinando um papel.
Naquela manhã, não me alimentaram.
******
Vieram cedo, antes do sol nascer. A luz do corredor mal atravessava a pequena fresta da minha cela. Estava escuro, e fazia frio. Sempre fazia frio ali dentro. Mas, naquele dia, parecia mais. Como se o próprio mundo tivesse gelado por dentro.
— Vamos, Isabella. Está na hora. — disse a mulher de jaleco. Ela falava meu nome como se estivesse chamando um cachorro.
Tentei me encolher no canto da cela. Meus braços estavam cheios de hematomas da última tentativa de fugir. Eles disseram que se eu fosse "boazinha", não ia doer. Mas nada ali dentro era verdade.
Ela entrou acompanhada de um homem alto, de olhos apagados e voz firme. Segurou meu braço com força e me puxou de pé. Cambaleei, tonta, fraca. Não conseguia pensar direito. Tinha passado a noite acordada, tremendo, com medo do que aconteceria. Algo dentro de mim dizia que aquele dia ia ser diferente. Que ia deixar uma marca mais funda que todas as outras.
E deixou.
Me levaram para uma sala que cheirava a ferro e desespero. Havia uma cama estreita no centro, com cintos de couro. Ao lado, uma máquina que fazia um som constante, como se estivesse viva. Um zumbido mecânico, ameaçador.
— Ela vai gritar? — perguntou o homem.
— As primeiras vezes, sempre. Depois acostuma. — respondeu a enfermeira.
Fui colocada na cama à força. Os cintos apertaram meus pulsos, meus tornozelos, minha barriga. Tentei lutar. Tentei implorar. Mas tudo o que saiu da minha boca foi um som rouco, quebrado.
Um segundo homem entrou com algo nas mãos. Um pedaço de borracha.
— Abre a boca.
Balancei a cabeça em negação, desespera.
— ABRE! — gritou, enfiando à força o pedaço entre meus dentes.
Quase engasguei.
E então… os eletrodos.
Colocaram um em cada lado da minha cabeça. O metal estava frio, como se tivesse acabado de sair de um congelador. Senti o couro cabeludo arder com o contato.
O som da máquina aumentou. Um estalo.
E depois… o inferno.
Não há como descrever o que o corpo sente quando a eletricidade entra sem aviso. É como se todas as células gritassem ao mesmo tempo. Como se o cérebro implodisse por dentro.
Meu corpo se arqueou sozinho. Os músculos se contraíram com uma força que não era minha. Meus olhos reviraram. E mesmo com a borracha, eu gritei. Gritei até minha garganta sangrar por dentro. Tudo se apagava e voltava, apagava e voltava. Uma luz branca explodindo atrás das pálpebras.
Me molhei de medo. Me mordi. Senti gosto de sangue.
E por fim… nada.
*****
Acordei em minha cela, comitada, suja, com gosto metálico na boca. Os músculos doíam como se eu tivesse lutado contra demônios. A cabeça latejava. E o mais terrível: Eu não lembrava do meu nome por alguns segundos.
Só a dor era familiar.
Chorei como se minha alma estivesse em pedaços.
De repente escutei.
— Você sobreviveu. — a voz era fraca, rouca um sussurro vindo da cela ao lado.
Me arrastei até a porta, colando o rosto contra a divisória gelada.
— Quem é você? — Minha voz era apenas ar.
Silêncio.
E então:
— Simon. Simon Torton. Muito prazer Isabela.
— Sabe meu nome? — Procuro de onde vem a voz, pela pequena janela gradeada.
— Claro que sei, não sou surdo, ouvi quando te trouxeram. — escuto o barulho de correntes arrastando.
— Sou Isabela Belamont, tenho 10 anos e você Simon? — digo ficando na ponta dos pés enquanto observo as frestas das grades.
— Tenho 12 anos. Finja ser boa Isabela, sempre finja ser boa.
Fiquei em silêncio por um tempo, ainda procurando de onde vinha a voz, e refletindo sobre o que o garoto disse.
— Aparece Simon, onde você está? Quero te ver.
— Primeiro estou na cela a sua frente, segundo nem se eu quisesse podia te ver pequena, estou acorrentado.
— Acho que você não fingiu ser bonzinho. — digo esboçando um pequeno sorriso.
Espera… eu sorri? Acho que nunca fiz isso.
— Nem todos conseguem. — ele solta uma risada distante — Crises agressivas e atos de violência? Parece uma ficha ameaçadora para alguém com a voz tão doce.
— Na verdade, eu nem sei o que isso quer dizer. — digo sem saber de fato o que significa — e você por que está aqui?
— A lista é um pouco extensa, quer ouvir tudo Belinha? posso te chamar assim? — ele não espera que eu responda e continua — escuto vozes, e elas me dizem para fazer coisas ruins com pessoas que elas acham que merecem, pessoas más sabe? Também não gosto muito de pessoas, não consigo ter o que eles dizem ser empatia, as mulheres que cuidam de mim no orfanato diz que minha convivência com outras pessoas é… complicada.
— Então você é mau?
— Todos somos maus e bons, não? seu pai te colocou aqui… Não acredito que você seja mau, acho que ele é, que tipo de pai coloca a sua filha nesse lugar? Ninguém que mande alguém para um lugar como esse é para o bem. — escuto as correntes se arrastando pelo chão. — Finja ser sempre boa…até se tornar totalmente má. E quando isso acontecer seja a melhor nisso, ao ponto de todos temerem, de repulsar a sua presença.
Engoli em seco sem saber o que dizer. E depois disse:
— E se eu não conseguir?
— O que? Fingir ser boa ou se tornar má?
— Ambos.
— A sobrevivência te fará fingir ser boa, você vai aprender que doi menos se o fizer, e as pessoas lhe ensinaram a ser mau, não tem nada a ver com conseguir ou não é sobre o que as pessoas lhe oferecem e como você as retribui.
— Acho que entendi — digo em fim desistindo de ver algo e me arrastando até o chão me encostando na porta de ferro.
— Queria poder te ver.
Abraço minhas pernas em um ato desesperado de sentir algum amparo ou afeto.
— Eu também.
— Nossa que saco, essa falácia de vocês é de encher viu! — Uma segunda voz surgiu.
— Vê se me erra Morgan. — Simon diz.
— Oi Morgan eu sou…
— Isabela, eu sei, estava aqui ouvindo vocês paquerando enquanto eu tentava dormir.
— Eu não estava paquerando! Arg! — digo indignada.
— Você podia não estar, mas o frio e antissocial Simon…
— Vai a merda Morgan! Estava apenas acalmando a garota.
— E desde quando Simon Thorton acalma alguém? — Morgan diz e gargalha alto.
Senti uma fagulha naquele momento. Uma fagulha. Mas não de esperança. Aquilo não existia mais em mim, era algo mais sóbrio. reconhecimento? Como se uma parte de mim, soubesse que aquele garoto ao meu lado… ele também era feito de cacos.
Ninguém falou mais nada naquela noite.
E sonhei que não estava mais sozinha.
Não desista de si mesmo
Pois todo mundo chora
Todo mundo se magoa às vezes
Às vezes tudo está errado
EVERYBODY HURTS — R.E.M
8 anos antes
Me posiciono no centro da sala. O chão de madeira rangia sob meus pés como se me implorasse por descanso, mas eu não escutava. Eu não queria escutar. A música ainda não havia começado, mas meu corpo já conhecia os acordes. Cada músculo sabia o que fazer. Era isso que me restava: a dança. Meu refúgio, meu esconderijo.
Quando danço, sou só eu. Sem meu pai. Sem a culpa. Sem o medo.
— Isabela, cinco minutos pra fechar — avisa a inspetora com um sorriso gentil.
— Ok, posso me trocar rapidinho?
— Rapidinho, combinado?
Concordo, agradecida, e corro ao vestiário. Troco o collant e o short pelo moletom largo que me afoga o corpo, mas me protege do mundo. Solto meus cabelos e eles caem como uma cortina de silêncio até a metade das costas. Sinto-me segura atrás deles. Seguro minha bolsa e corro.
— Tchau, Lu. Até amanhã!
— Até, Isa.
Na rua, o frio me abraça com mais gentileza do que qualquer pessoa em casa. Caminho devagar, os tênis arrastando no asfalto. Eu não queria voltar. Eu nunca quero. Aquela casa me engole. A cada noite, ela devora mais um pedaço da minha alma.
— Oi, Isabela — diz uma voz atrás de mim. Viro e vejo Heitor, um colega da escola dois anos acima da minha série. Não tenho nenhuma intimidade com ele, mesmo assim ele sempre me cumprimenta. Ele vem andando de costas, jogando uma bola de basquete entre as mãos. — Estava dançando de novo?
— Estava.
— Você dança bem. Fico te observando às vezes… — ele sorri. — Estava te esperando hoje.
Seu rosto magro, olhos verdes e os cachos acobreados bagunçados não me intimidam. Mas suas palavras, sim. Ele se aproxima demais. Tropeça. Eu, por instinto, o seguro pelo braço — e ele aproveita para me puxar pela cintura. Seu sorriso cresce, e meu estômago revida com náusea.
Meus instintos gritam. Meus músculos travam. Tento me afastar.
Ele aperta mais.
— Qual é, Bela… Já faz meses que tô a fim de você. Só quero uma chance.
Ele tenta me olhar nos olhos. Eu só quero sumir. Meu pai invade minha cabeça com sua voz podre, tão alta que parece ecoar no mundo:
"Você é minha. Só eu posso te tocar. Você é meu pequeno relicário."
Meu peito aperta. Meus olhos se enchem. A respiração falha.
— Só… me solta, Heitor. Por favor…
— Tá bom, tá bom! Não precisa chorar. Desculpa, ok? Desculpa, podemos começar de novo e sermos amigos?
Ele parece genuinamente assustado. Mas isso não importa. Eu não consigo explicar. Eu nunca consigo.
— Eu… preciso ir.
Corro. Corro com os olhos embaçados. Corro como se meus pés pudessem me arrancar da pele. Ele agora também acha que sou louca. Todos acham.
Finja ser boa. Finja ser boa. Finja ser boa.
A voz de Simon. Ela vem como uma faca afiada, cortando a escuridão que meu pai deixou.
Seis meses na clínica. Seis meses de frio, silêncio, gritos abafados e vozes atrás de portas fechadas. Mas também seis meses em que duas vozes me mantiveram viva: Simon e Morgan.
Dois espectros presos comigo naquela fortaleza. Nunca vi seus rostos. Só suas palavras. Mas foi o suficiente.
Simon sempre dizia: “Finja ser boa. Faça o que eles querem. E você sobrevive.”
E eu sobrevivi.
Desde que saí, repito isso como um mantra. Todos os dias. É isso que me impede de voltar pra lá.
Mas às vezes... eu acho que eles nunca existiram, foram apenas fruto da minha cabeça.
Chego em frente de casa. Paro. O portão já está entreaberto, como um convite maldito. Sinto o cheiro do lugar antes mesmo de entrar: suor e medo. A porta está encostada. Posso entrar. Ou posso dar meia-volta.
Fico ali. Um pé dentro. Um pé fora. Coração disparado. Minha mão treme. Minha alma já sabe o que me espera. Sempre soube.
A maçaneta está fria. Minhas mãos ainda mais. Respiro fundo, como se pudesse me encher de coragem num suspiro. Mas ela não vem. A coragem nunca vem. Só a lembrança da voz de Simon, como uma réstia de lucidez:
“Finge, Isa. Finge ser boa.”
Empurro a porta devagar. O ranger é longo, sofrido, como se a casa também estivesse cansada de abrigar monstros.
O cheiro é o mesmo de sempre. A mesma podridão que gruda na pele, no cabelo, na memória. A luz da sala está apagada, mas eu já conheço esse caminho de olhos fechados. Passo sem fazer barulho, sem atrair atenção.
Sem provocar. Nunca provoque.
Minha mãe está sentada no sofá, olhos fixos no vazio, as mãos cruzadas sobre o colo como se tivesse medo de se mover. A televisão está ligada, mas no mudo. Ela me olha e sorri, um sorriso triste, quase doente.
— Boa noite, mãe — digo, sussurrando.
Ela apenas acena com a cabeça, rápido, sem voz.
A escada range sob meus pés. Um som. Apenas um. Seguro a respiração e aguardo. Nada. Talvez ele esteja dormindo.
Mas a esperança dura pouco.
— Isabela — a voz dele vem de cima. Gélida. Precisa. Cruel.
Congelo no segundo degrau. O suor escorre pela nuca. Engulo o pavor.
— Sobe. Agora.
Subo. Sem dizer nada. Sem hesitar. Como um cão bem treinado. Como ele gosta.
O quarto dele está com a porta aberta. A luz da lâmpada bruxuleante pinta monstros mais belos que ele nas paredes. Ele está em pé, de camisa social desabotoada e os olhos vermelhos, mas não de choro, de fúria.
Não entro, para próximo a porta.
— Onde esteve?
— Na escola — respondo, tentando manter a voz firme.
Ele caminha até mim devagar, como uma fera. Seus passos são lentos. Pesados. Me medem, me estudam.
— Não minta pra mim, Isabela. Você chegou tarde.
— Tive ensaio... perdi a hora — minto. Sempre minto. Como ele ensinou.
A bofetada não me surpreende. A cabeça vira, a visão escurece por um instante. O gosto metálico do sangue na boca. Mas não reajo.
Nunca reaja. Nunca chore.
— Não sou idiota. Você pensa que pode me enganar? Pensa que eu não vejo como olha pros meninos? Como rebola naquele palco nojento?
Ele me segura pelo queixo, seus dedos cravando em minha pele. Seus olhos queimam os meus.
— Você é minha. Minha. Você só existe por minha vontade. E eu sou o único que pode tocar em você. Entendeu?
Assinto. Uma, duas vezes. Meus joelhos tremem, mas não caem.
— Finja ser boa — sussurro para mim mesma, quase sem som.
— O quê? — ele pergunta, mas já se afasta. Ri, como se achasse graça.
E então vira as costas e vai embora.
Fico ali, no corredor, sozinha. A pele ainda ardendo. A alma encolhida. Meu corpo inteiro treme, mas não desmorona. Já aprendi a não desmoronar.
Volto pro meu quarto com cuidado. Fecho a porta devagar. Me encolho na cama como quem se esconde dentro do próprio corpo. Meu santuário é de lençóis gastos e almofadas rasgadas.
E ali, no escuro, me permito sussurrar:
— Simon… queria que você estivesse aqui.
E por um segundo, um só, posso jurar que ouço sua voz, distante como um sussurro de vento atrás da parede:
“ Finge ser boa… Só mais um pouco…”
Não vejo a hora de finalmente me livrar desse inferno.
********
Dias se passam e é sempre a mesma coisa.
O medo toda vez que chego.
Depois de longos minutos encarando a porta antiga, bonita demais para o horror que guarda, respiro fundo e a empurro. A fachada perfeita da casa engana qualquer um: a cerca branca, o gramado verde impecável, o balanço que dança ao vento... Tudo cuidadosamente montado para esconder o caos.
Lá dentro, minha mãe cambaleia pela cozinha. Seu silêncio é carregado de álcool e culpa. Não me olha. Não pergunta. Ela apenas existe, afogada na anestesia barata da bebida, enquanto a casa se mantém limpa, cheirosa e sofisticada. A sala ampla, com o sofá em L, o tapete claro, a televisão gigante. Tudo meticulosamente arrumado para manter as aparências. Uma prisão dourada. Um mausoléu com perfume de lar.
Dou um passo na escada e minha pele arrepia.
Ele.
— Onde você estava, Isabela? — a voz vem cortante. Surgido das sombras dos fundos da casa, meu pai fecha a distância entre nós com os braços cruzados e os olhos estreitos como lâminas.
— Estava ensaiando para a apresentação de final de ano, pai — murmuro. Olho para o chão. Nunca para os olhos dele.
Ele se aproxima devagar. Como quem observa sua presa antes de rasgar a carne.
— Acha mesmo que vou permitir essa exibição profana? Esses teus cursos só te afastam de Deus. Só destroem sua alma. — Ele ergue a mão, mas não para bater. Apenas para acariciar meu rosto. Seu toque me faz querer vomitar.
— Você é minha missão. Vou arrancar o mal de dentro de você com as próprias mãos — sussurra, a boca quase encostando na minha orelha.
Sinto o estômago revirar. Quero correr. Gritar. Mas o medo me paralisa. Me enraíza ao chão.
Minha mãe aparece cambaleando, como uma sombra mal formada.
— Não toca assim nela... — ela balbucia, as palavras misturadas ao hálito de bebida.
Ele vira o rosto devagar. Um sorriso cruel cresce em sua boca.
— Mais um dia bêbada? Você é uma vergonha. Um parasita nojento. — Ele a empurra com violência. Ela cai contra a parede, sem nem tentar reagir.
É sempre assim. Primeiro ele destroi ela. Depois me arrasta junto.
Corro. Subo para o quarto. Tranco a porta. Afundo o rosto no travesseiro tentando silenciar os gritos, os estalos, os gemidos sufocados. Minutos talvez horas se passam. E os gritos enfim cessam.
Ele sobe. Ele sempre sobe.
— Abre essa porta, sua desgraçada! — ele urra, batendo como um animal enjaulado.
Soluço. Tento me esconder debaixo da cama. Finjo ser invisível.
Finja ser boa. Finja ser boa. Finja ser boa.
— AGORA, ISABELA!
E a porta se parte. A madeira estala, se rompe. Ele atravessa o quarto como um furacão. Me agarra pelos cabelos e me puxa, me arrasta como uma boneca quebrada. Meus joelhos raspam nos degraus, queimam, sangram.
No fim da escada, minha mãe está estirada.
Seus olhos… vazios. Sem foco. Sem alma.
O grito morre na minha garganta.
— Viu o que você me fez fazer?! — ele berra, andando em círculos, murmurando coisas desconexas. — Ela me desafiou... e agora está morta! MORTA!
Me joga sobre ela. O peso da morte encostando em mim.
— Tudo por sua culpa. Tudo por causa do seu pecado! — grita com os olhos injetados, os punhos cerrados.
Tento fugir. Me arrasto. Me rastejo. Mas ele vem atrás. Com um olhar que não é mais humano.
— Agora ninguém está entre nós, meu pequeno relicário — ele murmura, agachado, tão perto que posso sentir o cheiro da loucura escorrendo dele.
A cena seguinte vem em flashes borrados. O porão. O escuro. O cheiro de mofo. O frio.Vozes distantes, choros que não são meus, que duraram pouco tempo aqui, eles sempre duram. Na parte de cima a casa pode até parecer um local santo, mas o verdadeiro inferno está aqui, nos corredores do porão do Pastor Logan Belamont.
Ele me prende, como em outras vezes. Só que dessa vez é diferente. Dessa vez é uma cerimônia.
— Você precisa ser purificada — ele diz, enquanto me amarra pelas mãos em ganchos de ferro presos ao teto.
Tento lutar. Grito. Mas não adianta.
— O mal precisa sair. Preciso fazer você nascer de novo, sem pecado. — Sua voz está calma agora. Quase serena.
Ele esfrega sal grosso em minhas costas feridas. Depois, água gelada com vinagre e urina. E ora. Ora em voz alta, gritando uma oração distorcida, clamando pela libertação da minha alma.
A dor é insuportável.
Quando ele termina me larga no chão molhado e fétido.
Arranho as paredes. Minhas unhas se partem. O sangue escorre entre meus dedos. E ele ri. Ri como se estivesse salvando o mundo.
Meu corpo treme. Minha visão escurece. E antes que eu desmaie, ouço sua última frase como um sussurro vindo do próprio inferno:
— Você nasceu para ser minha. E só minha.
Finja ser boa, Isabela. Finja ser boa.
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