O relógio marcava 23h57 no pequeno escritório empoeirado do necrotério policial de Veridia. Maya suspirou, esticando as costas. A cidade lá fora era um borrão de luzes de néon distorcidas pela chuva constante que chicoteava as janelas do velho edifício. Um dia típico em Veridia. Lá dentro, porém, o ar era pesado, impregnado com o cheiro metálico e doce de produtos de limpeza, uma fragrância que para Maya já era tão familiar quanto o perfume de seu próprio xampu.
Ela revisava os últimos relatórios, a caneta clicando suavemente contra o papel. Havia uma estranha serenidade em seu trabalho, um contraste irônico com a morbidez do ambiente. Corpos eram apenas corpos ali, histórias findas que ela ajudava a catalogar antes de seus destinos finais. Nada mais, nada menos. Seus cabelos ruivos, geralmente presos em um coque desgrenhado, estavam começando a se soltar, algumas mechas caindo sobre seus olhos verdes enquanto ela se inclinava.
Um calafrio percorreu sua espinha, algo que não tinha a ver com a temperatura ambiente. Maya franziu a testa, olhando ao redor. As luzes fluorescentes zumbiam, e a única outra pessoa no andar, o velho segurança, provavelmente estava cochilando em sua cadeira na portaria. Era só cansaço, pensou. Ela estava ali há horas.
Terminando o último relatório, ela o colocou na pilha de saída. Mais um dia. Pegou sua jaqueta pendurada na cadeira, sentindo o tecido gasto. O som da chuva se intensificou por um momento, quase como um estrondo distante, seguido por um silêncio abrupto que era mais perturbador do que o barulho.
Maya parou. Algo estava errado. O zumbido das luzes parecia ter parado. Uma escuridão mais densa do que o normal rastejou pelos corredores. O ar gelou, e o cheiro doce no ambiente agora parecia ter uma nota diferente, algo rançoso e úmido. Seu coração começou a martelar no peito. Ela não sabia o que era, mas o instinto em seu corpo gritava: perigo.
Maya tentou se convencer de que era apenas a fadiga. Aquele turno tinha sido excepcionalmente longo, e os nervos às vezes faziam truques. Ela balançou a cabeça, forçando um sorriso para si mesma no reflexo turvo da janela. "Só o cansaço, Maya", murmurou, sua voz um sussurro no silêncio opressor.
Ela apanhou a bolsa na mesa, o som do couro roçando a madeira ecoando de forma estranha no vazio. Enquanto caminhava pelo corredor principal, o cheiro de mofo e algo indefinível, quase orgânico, se intensificou. As luzes de emergência, que deveriam ter acendido automaticamente com a queda das fluorescentes, permaneceram inertes. A escuridão era quase palpável, as sombras dançando de forma grotesca em sua visão periférica, como se o próprio ar estivesse se contorcendo.
O pânico começou a se instalar, gelado e pontiagudo. Não era apenas cansaço. Havia algo terrivelmente errado. O silêncio era o que mais a assustava, um silêncio absoluto que parecia engolir qualquer som que ela pudesse fazer. Seus próprios passos pareciam amortecidos, irreais.
Ao se aproximar da recepção, a escuridão ficou ainda mais densa. Ela estendeu a mão, tateando a parede em busca do interruptor de luz, mas seus dedos só encontraram o frio úmido da pedra. De repente, um som rasgou o silêncio: um arrastar úmido, como carne sendo puxada por um piso molhado, vindo do fim do corredor que levava à sala de autópsias.
O coração de Maya disparou, um tambor frenético em seu peito. Ela prendeu a respiração, seus olhos verdes arregalados, tentando distinguir algo na escuridão. O cheiro rançoso ficou mais forte, quase insuportável. E então, uma sombra ainda mais escura se destacou da penumbra, uma forma grande e disforme que começou a se mover na direção dela, acompanhada do som repulsivo do arrastar.
Era inconfundível agora. Não era fadiga, nem imaginação. Estava se movendo na direção dela.
O ar fedia a morte e decomposição, um cheiro que Maya conhecia bem demais de seu trabalho, mas que agora a envolvia com uma intensidade nauseante. Na escuridão quase total, a forma disforme se materializou com um arrastar úmido e repugnante. Não era uma pessoa, nem um animal. Era uma aberração.
Seus membros eram bizarramente alongados e putrefatos, a pele cinzenta e bolhosa pendendo em farrapos, revelando músculos e ossos expostos em alguns pontos. A criatura parecia deslizar mais do que andar, cada movimento acompanhado por um som úmido e asqueroso, como algo escorregando em lama. Não havia olhos discerníveis em sua cabeça disforme, apenas cavidades escuras de onde parecia emanar uma aura de fome gélida. A proximidade daquele horror fez o estômago de Maya se revirar.
Um grito se formou em sua garganta, mas ficou preso. O instinto primordial de sobrevivência tomou conta. Correr!
Ela se virou abruptamente, os tênis de trabalho guinchando no piso liso, e disparou pelo corredor principal. A escuridão parecia se alongar, e as gárgulas nos telhados góticos de Veridia pareciam rir de sua desgraça. A porta de saída, uma barreira de metal pesado, parecia um farol de esperança. Ela correu, sentindo o ar pesado em seus pulmões, o coração batendo como um tambor de guerra.
Mas ao alcançar a porta, a mão que estendeu para girar a maçaneta encontrou resistência. Trancada. Um som seco, metálico, indicava o cadeado pelo lado de fora. Desespero gelou seu sangue. A criatura se aproximava, o arrastar úmido ficando mais alto, mais próximo. O cheiro de podridão sufocava-a.
Num frenesi, Maya puxou o celular do bolso. As mãos tremiam tanto que quase deixou o aparelho cair. Digitou o número do velho guarda, Samuel, que deveria estar cochilando em sua cabine de segurança do lado de fora. A cada toque na tela, o arrastar da criatura parecia se intensificar.
"Vamos, Sam, atende!", ela murmurou, a voz rouca pelo pânico.
Do outro lado da linha, o telefone tocou algumas vezes antes de uma voz sonolenta e arrastada atender. "Alô? Quem fala? Já é hora de ir, Maya?"
"Sam! É a Maya! Tem... tem alguma coisa aqui! A porta está trancada, abre!" As palavras saíram emboladas, quase um soluço.
Houve um silêncio, seguido por um resmungo. "Algo? Ah, qual é, menina? Me acordou pra isso? Já tô indo..."
Lento. Sam era sempre lento.
Maya virou a cabeça e viu a criatura. Estava a poucos metros dela, os membros deformados se arrastando com uma lentidão aterrorizante, mas constante. Ela podia ver a pele pendurada, quase esticar a mão e tocar aquela abominação. O ar parecia pulsar com a presença daquele monstro. O fedor era insuportável. Ela podia sentir o hálito frio e úmido vindo daquela coisa.
Um estalo.
O som do cadeado sendo destrancado. A porta se abriu para dentro, revelando a silhueta do velho Sam. Maya não pensou duas vezes. Mergulhou pela abertura, tropeçando sobre os próprios pés, e caiu no chão molhado do lado de fora, a respiração ofegante.
Maya rolou no chão úmido, a respiração presa na garganta, os olhos fixos na porta aberta. O velho Sam, com sua lanterna na mão e o revólver erguido, hesitou por um segundo. A criatura, com seu corpo putrefato e membros distorcidos, arrastava-se para fora do necrotério, a escuridão da noite de Veridia parecendo engoli-la e devolvê-la em um pesadelo tangível.
Um grito gutural escapou dos lábios do guarda, um som de puro terror. "O que... o que é isso?!"
Sam, com as mãos trêmulas, disparou. O estampido do revólver ecoou na rua molhada. Uma, duas, três vezes. Os projéteis rasgaram o ar, mas o que atingiram a criatura só pareciam fazer um som abafado, como se acertassem lama densa. As balas afundaram na carne decomposta sem qualquer efeito visível, sem derrubá-la, sem sequer fazê-la vacilar. A aberração continuou sua aproximação lenta, mas inexorável.
Maya tentou gritar para ele correr, para fechar a porta, mas as palavras não saíam. Estava paralisada pelo horror, vendo a cena se desenrolar em câmera lenta.
A criatura estava sobre Sam em um piscar de olhos grotesco. Não houve tempo para o velho guarda reagir. Com um movimento surpreendentemente rápido para sua forma disforme, um de seus membros alongados e distorcidos – que parecia terminar em algo como uma garra feita de osso e tendão – chicoteou no ar e cravou-se no peito de Sam.
O som foi abafado, um estalo úmido que ecoou mais na mente de Maya do que no ar. A garras não só perfurou, mas também rasgou o uniforme e a carne, abrindo um buraco cavernoso no peito do guarda. Os olhos de Sam se arregalaram em uma expressão de agonia e incompreensão, o revólver caindo no chão com um baque surdo.
Não houve tempo para gritos. A criatura puxou sua garra, e o que restava do corpo de Sam tombou para trás, atingindo o chão com um som macabro e final. Mas não parou por aí. A abominação se curvou sobre o cadáver, e Maya ouviu, clara e perturbadora, a sucção úmida, o som de algo sendo extraído, consumido. Era como um animal se alimentando, mas de uma forma que desafiava a natureza, um banquete profano de carne e vida. Ela podia ver a silhueta da criatura contorcendo-se sobre o corpo do guarda, e soube, com uma certeza aterrorizante, que Sam não estava apenas morto; ele estava sendo desfeito, absorvido, sua essência se tornando parte daquele horror.
Um grito finalmente rasgou a garganta de Maya, um som de puro terror que ecoou pela rua deserta de Veridia. Ela se levantou cambaleando, o chão girando, a imagem do horror se gravando a ferro e fogo em sua mente. Precisava correr. Longe dali.
Mike chegou a Veridia sob um céu permanentemente cinzento, a chuva fina e constante parecendo lavar a cidade de qualquer calor. Dois anos haviam se passado desde que a vida o havia partido ao meio, desde que a morte de sua esposa, Sarah, levara não apenas seu amor, mas também sua vontade de empunhar a magia que sempre fora parte dele. Veridia era para ser um recomeço, um refúgio de silêncio e anonimato onde ele pudesse se esconder de si mesmo.
Seu primeiro dia foi monótono, exatamente como ele queria. Desempacotou algumas caixas, a maioria de livros e fotos antigas, e sentiu o peso do vazio em cada cômodo do novo apartamento no distrito mais antigo da cidade. À noite, a necessidade de escapar das paredes que pareciam sufocá-lo o levou a um bar qualquer, um dos muitos estabelecimentos sombrios e mal iluminados que pontilhavam os becos de Veridia. Ele pediu um uísque, depois outro, o calor do álcool tentando, em vão, derreter o gelo que envolvia seu coração. As conversas ao redor eram murmúrios distantes, e ele se permitiu afundar na solidão que buscava.
Já passava da meia-noite quando Mike finalmente se levantou para ir embora. O cheiro de chuva e algo mais, algo quase elétrico no ar, o fez puxar o casaco mais para perto. As ruas de Veridia à noite eram quase desertas, os prédios góticos lançando sombras profundas que pareciam dançar ao ritmo do vento. O som de seus próprios passos no asfalto molhado era a única companhia. Ele gostava do silêncio pesado da cidade, da forma como ela parecia abraçar sua própria melancolia.
No entanto, o silêncio foi abruptamente quebrado por um som que fez os sentidos adormecidos de Mike despertarem. Um grito. Não um grito qualquer, mas um som carregado de puro terror, que parecia arrancar a alma de quem o proferia. Ele parou, a mão instintivamente tocando o bolso interno de seu casaco, onde um pequeno medalhão, um resquício de sua vida mágica, estava escondido.
Virando a esquina de um beco escuro, Mike viu-a. Uma figura ruiva, esbarrando nas latas de lixo, os olhos arregalados de pavor, correndo desabaladamente pela rua vazia. Maya. Ela parecia não ver nada além do pânico que a impulsionava, seus movimentos eram descoordenados, quase selvagens. Seus pulmões trabalhavam a todo vapor, em um esforço desesperador para puxar o ar úmido e gelado de Veridia. Ela estava em choque, aterrorizada.
Mike hesitou por um milésimo de segundo. Sua mente prática lhe dizia para se afastar, para não se envolver. Ele viera para esta cidade para evitar problemas, não para encontrá-los. Mas então, seus olhos, treinados pela antiga arte que ele abandonara, captaram algo mais: uma aura residual de pânico sobrenatural pairava em torno dela, uma energia sombria que não era humana.
Antes que pudesse processar o que viu, Maya tropeçou. Seu corpo esguio rodopiou e caiu no chão molhado com um baque surdo, a bolsa e o celular voando para longe. Ela soltou um gemido de dor e desespero, tentando se levantar, mas suas pernas pareciam ter falhado completamente.
Mike, que se mantinha nas sombras, sentiu um puxão. Não de seu passado mágico, mas de uma compaixão há muito tempo adormecida. Ele sabia que algo terrível a havia perseguido. E, por um instante, ele se viu no lugar dela, desamparado e aterrorizado.
Mike permaneceu nas sombras do beco, um observador frio e calculista. Seus olhos castanhos, treinados para discernir o incomum, esquadrinhavam a rua. A aura de terror em torno de Maya era inegável, e o grito de antes ainda ecoava. Ele esperou, os sentidos aguçados, pela fonte daquele pânico.
Não demorou. Do beco de onde Maya havia surgido, arrastando-se para fora do necrotério, emergiu a silhueta distorcida da criatura. Seus membros alongados e putrefatos mal tocavam o asfalto úmido enquanto ela se movia com uma lentidão aterrorizante, mas constante, na direção da mulher caída. O fedor nauseabundo de decomposição preencheu o ar noturno. A abominação estava a poucos passos de Maya, que, paralisada pelo pânico, tentava inutilmente se arrastar para longe, os olhos fixos na criatura com puro horror. Ela não conseguiria mais fugir.
Era o momento.
Mike irrompeu das sombras com uma agilidade surpreendente, movendo-se como um vulto na penumbra. Ele alcançou Maya em questão de segundos. Ela estava caída, o olhar vidrado de pavor, alheia a qualquer outra coisa além do monstro que se aproximava. Sem hesitar, Mike agarrou o braço de Maya, puxando-a para cima com uma força inesperada.
Maya soltou um arquejo de susto com o toque súbito e frio, seus olhos verdes, que antes estavam fixos na criatura, se arregalaram ao encontrar o olhar severo de Mike. Havia uma fagulha de confusão e medo misturada à surpresa em seu rosto.
"Não temos tempo para isso, vem logo, temos que correr!" Mike disparou as palavras em um tom urgente e inquestionável, a voz baixa e rouca. Ele não esperou por uma resposta. Com um puxão firme, ele a arrastou consigo, virando-se e correndo na direção oposta ao beco de onde a criatura havia emergido, adentrando as ruas labirínticas de Veridia.
A criatura soltou um som gutural, um rosnado úmido e profundo, e o som de seu arrastar úmido acelerou atrás deles.
A rua de Veridia se tornou um borrão de néon tremeluzente e sombras dançantes enquanto Mike puxava Maya em uma fuga desesperada. O som repulsivo do arrastar da criatura ecoava atrás deles, um lembrete constante de que o horror estava em seus calcanhares. Não havia destino em mente, apenas a necessidade visceral de se afastar daquela abominação.
Maya, ainda em choque, tropeçava, mas Mike a mantinha firme. Ele a puxava pelos becos úmidos e mal iluminados, seus olhos vasculhando cada sombra, cada esquina. O ar frio da noite chicoteava seus rostos, e o cheiro da chuva misturava-se ao odor rançoso que parecia impregnar a própria perseguição. Edifícios góticos imponentes erguiam-se ao redor, suas gárgulas parecendo observar a caçada com indiferença.
Mike, apesar de seu semblante frio, agia com uma precisão instintiva. Ele guiava Maya por atalhos que pareciam surgir do nada, virando esquinas fechadas, cortando por entre depósitos abandonados e passando por becos tão estreitos que mal cabiam. Ele ouvia o som da criatura, calculando sua velocidade e seus movimentos, ajustando a rota conforme necessário. Sua mente, embora tivesse abandonado a magia, ainda possuía a acuidade de um praticante que confiava em seus instintos para a sobrevivência.
Maya mal conseguia acompanhar. Sua mente estava um turbilhão de terror, a imagem do velho Sam sendo consumido gravada a ferro e fogo em sua retina. Ela não entendia o que estava acontecendo, quem era aquele homem que a arrastava, ou o que era aquela coisa horripilante que os perseguia. Tudo o que existia era o pânico cru e a necessidade de não parar de correr.
Eles irromperam em uma praça pequena e esquecida, com uma fonte seca no centro. O som de passos pesados atrás deles fez Mike virar a cabeça por um instante. A criatura estava mais perto do que ele gostaria, a silhueta disforme se destacando contra a luz fraca de um poste quebrado. Seus movimentos eram lentos e grotescos, mas sua persistência era assustadora.
"Por aqui!" Mike puxou Maya para uma viela ainda mais escura, que serpenteava entre dois prédios antigos. O espaço era claustrofóbico, e o cheiro de mofo e esgoto era quase sufocante.
A viela escura, que parecia uma promessa de escape, revelou-se um beco sem saída. Paredes altas de tijolos úmidos e musgosos erguiam-se à frente, uma barreira intransponível. Maya soltou um gemido de desespero, o ar rarefeito, a respiração presa na garganta. O eco do arrastar úmido da criatura se amplificava, cada vez mais perto, sufocando-a.
Mike virou-se abruptamente, puxando Maya para trás de si. O que ele viu o fez sentir um frio na espinha que nada tinha a ver com a chuva de Veridia. A abominação, com seus membros putrefatos e sua forma grotesca, estava ali, preenchendo a abertura do beco, bloqueando a única saída. Os olhos invisíveis, ou as cavidades onde deveriam estar, pareciam fixos neles, exalando uma fome palpável. O cheiro de decomposição era esmagador, quase físico.
Não havia mais para onde correr. O medo, que Mike havia mantido sob controle, ameaçou se descontrolar. Mas então, a frieza que o definia por fora tomou conta. Ele havia jurado. Jurou jamais tocar naquele poder novamente, não depois de Sarah. Mas olhando para o horror à sua frente, e para o terror no rosto de Maya, ele soube que não tinha escolha.
Uma chama pálida, quase invisível, começou a tremeluzir na palma da mão estendida de Mike. Não era a mesma facilidade de antes, a magia parecia resistir, pesada com os anos de abandono e a dor que a selou. Mas ele forçou. Com um esforço visível em seu semblante, os músculos de seu maxilar tensos, a chama pálida se intensificou, crepitando e ganhando volume, até se tornar uma bola de fogo compacta e vibrante, irradiando calor na frieza do beco. A luz laranja e bruxuleante dançava nas paredes úmidas, lançando sombras grotescas.
A criatura, ao ver a luz e sentir o calor, soltou um urro disforme, um som que parecia rasgar o próprio tecido da realidade, cheio de agonia e repulsa.
"Fecha os olhos!", Mike rosnou para Maya.
Com um movimento preciso e um grito de raiva contida, ele arremessou a bola de fogo.
O projétil incandescente atingiu a criatura em cheio. O impacto foi esmagador. O urro da abominação se transformou em um grito prolongado e grotesco de agonia pura, um som que ecoaria nos pesadelos de Maya por muito tempo. O corpo putrefato da criatura foi imediatamente consumido pelas chamas. A pele cinzenta bolhosa estalou e se contraiu, os membros alongados se retorceram e a carne decomposta se desfez em uma explosão de calor e luz. O cheiro de podridão foi substituído por um odor acre de carne queimada e algo mais, algo químico e sobrenatural, que picava as narinas.
Em instantes, o horror se tornou uma mera lembrança fumegante. O fogo dançou por alguns segundos sobre o local onde a criatura estivera, e então diminuiu, deixando para trás apenas uma pequena pilha de cinzas escuras no chão molhado do beco. Nenhum rastro, nenhuma sombra, apenas a prova do que havia acontecido.
O calor das chamas recuou, deixando o ar ainda mais gelado e o silêncio do beco ainda mais pesado. Mike ofegava, a mão que conjurou a magia tremendo levemente. Sua energia estava drenada, e o gosto amargo do poder há muito esquecido preenchia sua boca.
Maya, que havia fechado os olhos ao comando de Mike, agora os abria lentamente, os olhos verdes cheios de lágrimas e confusão. Ela olhou para a pilha de cinzas, depois para Mike, o que havia ali havia desaparecido.
O calor residual da magia de Mike se dissipava, e o cheiro acre de cinzas pairava no ar. Ele respirava pesadamente, o braço que conjurou a chama tremendo levemente. A pilha de cinzas escuras no chão era a prova irrefutável do que havia acontecido, e o peso de ter quebrado seu juramento pesava em sua alma. Sua mente, um turbilhão de pensamentos amargos, já estava formulando a próxima ação: partir. Deixar Maya, deixar Veridia, e desaparecer novamente na escuridão.
Ele estava prestes a se virar, a se afastar daquela mulher que o arrastara de volta para o mundo que ele tanto queria esquecer, quando uma mão trêmula e surpreendentemente forte o segurou pelo braço.
Maya.
Os olhos verdes dela estavam marejados, mas não apenas de lágrimas. Havia um terror tão profundo que parecia arrancar o ar de seus pulmões, e uma súplica tão crua que atingiu Mike em um lugar que ele pensou estar morto.
"Não... não me deixa", a voz dela saiu embargada, um sussurro desesperado que implorava mais do que falava. Sua mão apertava o braço dele, como se sua vida dependesse daquele contato. "Por favor... eu... eu não tenho para onde ir."
Mike tentou puxar o braço, o olhar frio e a expressão fechada. "Você estará mais segura sozinha, garota. O que quer que esteja atrás de você, não é algo que eu... não é problema meu." As palavras soaram vazias até para ele.
Mas Maya se agarrou a ele, as unhas cravando-se levemente no tecido de sua camisa. "Eu não vou perguntar nada! Eu juro! Sobre... sobre aquilo!" Ela balançou a cabeça, apontando para a pilha de cinzas com a cabeça, os olhos arregalados. "Eu juro que não pergunto sobre a sua... arma. Só não me deixe. Eu não posso ficar sozinha."
A súplica era genuína, o medo dela era palpável, e por um instante, o olhar de Mike vacilou. A frieza cedia, minimamente, diante da fragilidade de Maya. A responsabilidade que ele tentava evitar, agora era um fardo pesado em seus ombros.
Mike hesitou. Seus olhos castanhos, antes tão gélidos, varreram o rosto aterrorizado de Maya, e a imagem do corpo desfeito de Sam surgiu em sua mente. A súplica dela era um espinho. Ele viera para Veridia em busca de uma fuga solitária, e agora, no seu primeiro dia, estava enredado em algo que desafiava toda a sua vontade de se isolar.
Com um suspiro quase imperceptível, Mike finalmente cedeu. A frieza retornou ao seu olhar, mas havia um novo, e relutante, propósito.
"Tudo bem," ele disse, a voz baixa e rouca. "Você pode vir para o meu apartamento. Apenas por esta noite, ou até que você se acalme." Ele soltou o braço dela, mas não se afastou. A decisão era puramente pragmática; ele sabia que deixá-la sozinha nas ruas de Veridia, depois do que presenciou, era um convite para mais problemas, tanto para ela quanto, inevitavelmente, para ele.
Maya hesitou. Em outras circunstâncias, a ideia de ir com um estranho para seu apartamento, um homem que acabara de demonstrar poderes que desafiavam a lógica, seria impensável. Seus instintos gritavam alerta. Mas o horror daquela noite, a imagem da criatura, a morte brutal de Sam, tudo isso esmagava sua capacidade de raciocínio lógico. A realidade era muito mais aterrorizante do que qualquer preocupação com um desconhecido. Sozinha, ela não tinha chance. Com ele, talvez.
"Eu... eu aceito," Maya respondeu, a voz ainda trêmula, mas firme na resolução. Ela o observou, a incerteza ainda presente em seus olhos.
Mike, percebendo a hesitação dela, que era uma clara preocupação com suas intenções, lançou-lhe um olhar que era, para ele, o mais próximo de uma promessa que conseguiria fazer. "Não vou fazer nada de estranho. Não precisa se preocupar." Era uma garantia simples, direta, desprovida de emoção, mas que, no contexto daquela noite, soava como um alívio para Maya.
Com um aceno de cabeça, Mike se virou e começou a andar, presumindo que ela o seguiria. O perigo imediato havia passado, mas o mistério e a estranha conexão entre eles apenas começavam a se desenrolar sob as luzes sombrias de Veridia.
Mike liderava o caminho pelas ruas úmidas e escuras de Veridia, seus passos firmes e decididos, enquanto Maya o seguia, ainda trêmula e em estado de choque. O som do arrastar da criatura e o cheiro de decomposição já não estavam lá, substituídos apenas pelo eco da chuva e pelo silêncio opressor da madrugada. O beco sem saída ficava para trás, e com ele, a lembrança fumegante do que havia sido aniquilado.
O trajeto até o apartamento de Mike foi um silêncio tenso. Ele não fez perguntas, e Maya estava grata por isso. Sua mente ainda processava as imagens horríveis: o corpo de Sam sendo consumido, a criatura disforme, e a chama que irrompeu da mão de Mike, dissipando o terror em cinzas. Ela lançava olhares furtivos para o homem à sua frente, sua silhueta alta e sombria contra as luzes distantes. Ele era um completo estranho, um mago, um salvador. Era uma mistura assustadora de alívio e pavor.
Mike, por sua vez, estava imerso em seus próprios pensamentos. A frieza que sempre cultivava como escudo havia sido perfurada. O custo de ter usado a magia novamente era pesado, uma dor surda em sua mente e um aperto em seu peito. Ele tentava ignorar o tremor residual em sua mão e o formigamento em suas veias, sinais de um poder que ele havia prometido enterrar. Levava Maya para o seu abrigo temporário, mas não por caridade; era uma necessidade pragmática, para evitar que o caos daquela noite o seguisse.
Eles atravessaram o centro da cidade, o Parque Ébano visível à distância, suas árvores centenárias parecendo sentinelas silenciosas na penumbra. Não houve mais sinais da criatura, nem de qualquer outro perigo. A cidade parecia ter retornado à sua melancolia habitual, indiferente ao horror que acabara de se desenrolar.
Finalmente, Mike parou diante de um prédio antigo e imponente, com detalhes góticos esculpidos em sua fachada. Era um dos muitos que pontuavam os distritos mais velhos de Veridia, escuro e discreto. Ele abriu a porta pesada, e o rangido ecoou no saguão silencioso.
"É aqui", ele disse, a voz baixa, sem se virar.
Maya entrou, seus olhos verdes varrendo o interior. O lugar era limpo, mas espartano, com um cheiro de tinta fresca misturado a algo antigo, quase empoeirado. O peso de sua situação a atingiu novamente. Estava em um lugar desconhecido, com um homem desconhecido que havia conjurado fogo com as próprias mãos, e tudo o que ela sabia de sua vida havia desaparecido.
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