Capítulo Um – As Máscaras do Don
O som dos sapatos de couro ecoava no mármore frio do imponente fórum central. Dante Morelli, terno impecável e barba bem aparada, caminhava com a confiança inabalável de quem domina duas vidas – a do juiz justo e a do Don implacável. Ele era o homem mais temido e admirado da cidade, uma lenda que equilibrava a balança da lei com mãos firmes. Mas só ele sabia o quanto cada decisão, cada palavra, era cuidadosamente calculada para manter a ordem no submundo que secretamente liderava.
Naquele dia, a audiência fora longa e cansativa. Um caso de corrupção envolvendo políticos e empresários já estava decidido em sua mente antes mesmo de começar. Mas a encenação precisava ser perfeita. Do alto da tribuna, com voz grave e olhar severo, Dante ditara a sentença com precisão cirúrgica. Um espetáculo necessário para a plateia, e uma mensagem clara para os que ousavam desafiá-lo nos bastidores.
Quando o último papel foi assinado, ele se recostou na cadeira de couro preto, girando lentamente o anel prateado no dedo – um símbolo discreto, mas conhecido pelos que importavam. A porta de seu gabinete se abriu com a batida de sempre, e Enzo, seu braço direito, entrou com um aceno contido.
— O senhor pediu para ser avisado sobre o caso da promotora Valente – disse Enzo, depositando uma pasta grossa na mesa. – Ela não recuou. Vai recorrer.
Dante ergueu uma sobrancelha, um leve sorriso brincando nos lábios.
— Tão previsível quanto um relógio suíço – murmurou. – Traga-a até mim. Quero vê-la de perto.
Enquanto Enzo saía para cumprir a ordem, Dante se levantou, atravessando a sala até a grande janela com vista para a cidade. As luzes começavam a acender, o céu tingido de tons púrpura e dourado. Lá embaixo, as ruas fervilhavam com a pressa noturna, e ele sabia que ali, nas sombras, seu verdadeiro império pulsava.
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Isadora Valente empurrou a porta do elevador com um suspiro cansado. O dia fora exaustivo, com audiências tensas e promotores arrogantes que pareciam mais interessados em autopromoção do que em justiça. Mas ela não era assim. A lembrança de sua infância difícil, dos dias em que contou moedas para comprar pão, a mantinha firme. Cada processo que atravessava sua mesa era um campo de batalha, e ela jamais recuaria.
— Promotora Valente – a voz de Enzo soou atrás dela, e ela se virou bruscamente. – O juiz Morelli deseja falar com você.
Por um instante, o coração de Isadora disparou. Não era medo. Era raiva. Aquele homem, com seu sorriso impecável e reputação de inflexível, era o responsável por sentenças que ela considerava questionáveis. Ainda assim, ela respirou fundo, endireitando os ombros.
— Muito bem. Vamos.
Quando chegou ao gabinete dele, foi recebida por um ambiente amplo, luxuoso, com paredes forradas de madeira escura e um leve aroma de couro e whisky. Dante estava encostado na janela, e quando se virou para encará-la, Isadora sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O homem era... impressionante. Másculo, barba bem-feita, olhos que pareciam ver através dela. Mas ela não se deixaria intimidar.
— Promotora Valente – a voz dele soou baixa, quase um sussurro –, sente-se.
Ela o fez, cruzando as pernas e mantendo o queixo erguido.
— Imagino que saiba por que estou aqui, meritíssimo.
— Ah, eu sei – ele se aproximou devagar, como um predador que cerca a presa. – Você não gostou da minha sentença. Vai recorrer, não é?
Isadora manteve o olhar firme.
— Vou, sim. Porque acredito que a verdade merece outra chance.
O sorriso dele se alargou, mas os olhos permaneciam frios, calculistas.
— Verdade... – ele se aproximou ainda mais, inclinando-se para frente. – Cuidado com ela, promotora. A verdade tem mais facetas do que um diamante.
O jogo havia começado, e Isadora sabia que estava lidando com alguém muito mais perigoso do que qualquer criminoso de rua.
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Naquela noite, ao deixar o prédio, Isadora se permitiu um instante de hesitação. Olhou para trás, para as janelas iluminadas do tribunal. Algo nela dizia que a batalha que se iniciava com Dante Morelli ia muito além das audiências e dos papéis. Havia uma tensão no ar, uma promessa silenciosa de que entre eles se travaria uma luta onde as armas seriam palavras, olhares e... talvez, sentimentos que ela não ousava admitir.
Mas ela não era mais a menina assustada do passado. Isadora agora era promotora, uma mulher que havia lutado contra tudo para chegar onde estava. E não permitiria que um homem, por mais charmoso e perigoso que fosse, a desviasse do caminho.
Ou assim ela esperava.
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Enquanto isso, em uma casa discreta nos arredores da cidade, Dante adentrava um ambiente completamente diferente do tribunal. As paredes de pedra abafavam o som da rua. Ali, não havia juízes, apenas soldados leais. A sala estava tomada por homens de terno escuro, silenciosos, aguardando sua palavra. Matteo, seu primo e conselheiro mais próximo, levantou-se quando ele entrou.
— A reunião começou há vinte minutos – disse ele, entregando um copo de vinho. – Esperávamos que estivesse mais... envolvido.
— Eu estava cuidando de algo mais interessante – respondeu Dante, com um sorriso enigmático. – Mas agora, vamos ao que importa.
Matteo assentiu. O mapa da cidade foi aberto sobre a mesa, marcadores indicavam territórios e operações. A máfia Morelli controlava muito mais que bares clandestinos – havia imóveis, contratos públicos, e influência dentro do próprio sistema judicial. Mas os ventos estavam mudando. Uma promotora nova estava remexendo os processos antigos. Isadora Valente era uma ameaça. Ou uma oportunidade.
— Ela vai nos dar problemas? – perguntou Matteo.
— Talvez – respondeu Dante. – Ou talvez seja a chave para manter tudo como está.
Ele observava o mapa, mas sua mente ainda estava no olhar desafiador de Isadora. Uma mulher com princípios, coragem... e uma beleza inquietante. O tipo de adversária que podia virar aliada. Ou uma amante perigosa.
No silêncio da sala, Dante Morelli decidia mais que estratégias. Ele traçava destinos.
E o dela, agora, estava entrelaçado ao seu.
Capítulo Dois – Sangue e Justiça
O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelo som grave de um motor importado atravessando lentamente as ruas estreitas de um bairro afastado do centro. No banco traseiro de um sedã blindado, Dante Morelli observava as janelas apagadas das casas simples. Seus olhos estavam distantes, mergulhados nas sombras da memória. Ele não voltava àquele lugar há anos, mas naquela noite, algo dentro dele exigia revisitar o início de tudo. O lugar onde o homem se partira em dois: o juiz e o Don.
Nápoles, anos atrás
O pequeno Dante tinha apenas doze anos quando viu o pai pela última vez. Francesco Morelli era respeitado, um homem justo dentro de seus próprios códigos, mas também impiedoso quando necessário. Era o Consigliere de uma das famílias mais antigas da máfia napolitana — a Famiglia Salvatore. Durante o dia, Francesco era advogado penalista, defensor público, protetor de inocentes. À noite, tornava-se a voz de equilíbrio entre o sangue e a honra.
Naquela manhã de setembro, o som dos tiros ecoou pela viela e o menino correu para fora de casa apenas para ver o corpo do pai estendido na calçada, o terno escuro banhado de vermelho. O olhar vítreo de Francesco ficou gravado na mente de Dante como um retrato inapagável da fragilidade da justiça. Sua mãe, Antonella, desabou, mas ele não chorou. Não ali. Não diante da multidão que observava em silêncio respeitoso.
— Eles o mataram porque ele tentou fazer a coisa certa — disse Antonella, apertando o rosto do filho. — Prometa que nunca será fraco como ele.
Dante prometeu. Mas sua ideia de fraqueza e força mudaria ao longo dos anos.
Nova Iorque — 2005
A mãe o levou para os Estados Unidos, tentando romper com o passado. Dante era um adolescente brilhante, fluente em duas línguas, e entrou com mérito em Harvard, onde estudou Direito com dedicação obsessiva. Mas mesmo entre as bibliotecas e debates acadêmicos, ele jamais esqueceu de onde viera. O nome Morelli ainda carregava peso nos círculos ocultos da máfia, e velhos aliados do pai observavam o garoto com interesse. Um em especial: Luca Vitale, o último Padrino dos Salvatore.
Foi Luca quem o procurou na saída da universidade, num dia chuvoso de inverno. Dante, então com vinte e dois anos, já era conhecido pela frieza nos debates, pelo raciocínio afiado. Luca o saudou com um abraço, como se o tempo não tivesse passado.
— Estudou para conhecer as regras. Agora é hora de decidir se quer apenas segui-las... ou moldá-las, como seu pai tentou fazer.
Dante não respondeu de imediato. Mas aceitou o convite para jantar. E naquela mesa luxuosa, cercado de homens perigosos e silenciosos, viu que ainda havia espaço para justiça — uma justiça paralela, direta, muitas vezes cruel, mas infinitamente mais eficiente do que os tribunais.
Aos vinte e cinco anos, formou-se com louvor e passou nos exames para se tornar juiz federal. Uma ascensão meteórica, elogiada publicamente, mas silenciosamente patrocinada pela mão invisível de Luca. Era a armadura perfeita: um juiz incorruptível na superfície, que julgava com precisão... e eliminava as ameaças que escapavam da lei com a frieza de um executor.
Presente — Gabinete do Juiz Morelli
A batida na porta o tirou do transe. Enzo entrou com uma pasta de couro.
— A senhora Sofia Almeida está aguardando. A advogada do caso Valente.
Dante arqueou uma sobrancelha.
— A mesma que desafiou a promotora diante da imprensa?
— Ela mesma. Sagaz, impetuosa. E... com muitos contatos políticos.
— Mande entrar.
A porta se abriu e uma mulher de presença avassaladora adentrou o gabinete. Sofia Almeida tinha olhos de lince e postura de guerreira. Usava um blazer azul-marinho justo e cabelos presos num coque impecável. Seu perfume doce e cítrico preenchia o ambiente antes mesmo de dizer uma palavra.
— Meritíssimo — ela disse com um leve aceno de cabeça. — Vim conversar sobre o caso Valente. Creio que há detalhes que precisam ser reconsiderados.
— Detalhes ou... interesses?
— Às vezes são a mesma coisa. — Sofia sentou-se sem ser convidada. — Você sabe tão bem quanto eu que os bastidores decidem mais que os tribunais.
Dante a estudava como se ela fosse um enigma. Havia algo nela que lembrava Antonella — a mesma determinação feroz, a beleza afiada como lâmina.
— E o que exatamente deseja, doutora Almeida?
— Que a promotora Valente seja retirada do caso. Oficialmente, por conflito de interesse. Extraoficialmente... bem, você entenderá com este dossiê. — Ela deslizou a pasta sobre a mesa.
Dante a abriu e leu em silêncio por alguns segundos. Fotos, transcrições, suspeitas. Todas minuciosamente reunidas.
— Isso não prova nada — ele disse com calma.
— Mas planta dúvidas suficientes. E às vezes... é tudo o que precisamos.
Ele fechou a pasta, apoiando os cotovelos sobre a mesa.
— Não gosto de ser manipulado, Sofia.
— Não estou manipulando você. Estou te dando alternativas. Como você mesmo diria: a verdade tem mais facetas que um diamante.
Houve um instante de silêncio carregado. Depois ela se levantou, ajeitou o blazer e sorriu.
— Pense com carinho. O julgamento está só começando.
Quando ela saiu, Enzo reapareceu.
— Vai ceder?
— Não — Dante respondeu. — Mas quero que investigue Sofia Almeida a fundo. Algo me diz que ela tem mais segredos que a promotora Valente.
Enzo assentiu e desapareceu. Dante voltou o olhar para a cidade lá fora. Lá embaixo, os carros fluíam como sangue em veias de asfalto. Ele havia aprendido que às vezes a justiça precisava ser afiada como uma faca e rápida como uma bala. Mas com mulheres como Isadora e Sofia no tabuleiro, ele precisaria de algo mais: controle absoluto.
E ele o teria. Como juiz. Como Don. Como Morelli.
Capítulo Três – Verdades Entre Linhas
O relógio marcava 6h47 da manhã quando Isadora Valente despertou com o som insistente do celular. Ela ainda estava deitada sobre uma pilha de pastas no sofá da sala, onde havia adormecido poucas horas antes. O cheiro de café frio impregnava o ambiente, misturado ao aroma leve de alfazema do seu travesseiro improvisado. A noite anterior fora exaustiva — revisando depoimentos, investigando documentos duvidosos e, principalmente, remoendo o olhar de Dante Morelli, que ainda a assombrava.
Ela deslizou o dedo pelo visor do celular.
— Alô? — murmurou com a voz rouca de sono.
— Promotora, aqui é o detetive Ruan. Tivemos um incidente no depósito de provas do caso Varela. A senhora precisa vir até aqui. Agora.
Isadora sentou-se imediatamente, os sentidos aguçados.
— Estou a caminho.
Ela trocou de roupa rapidamente, prendeu o cabelo num coque apertado e saiu com os sapatos ainda nas mãos. O dia mal começara e já havia sangue no ar.
***
O depósito da polícia estava cercado por viaturas e policiais armados. Isadora se apresentou, mostrando o crachá, e foi conduzida ao interior do prédio. O cheiro metálico era inconfundível. Ao lado de uma porta escancarada, o corpo do agente Jorge Salles estava caído, com um tiro preciso na têmpora. Ao fundo, estantes de metal haviam sido reviradas, e várias caixas estavam vazias.
— O que foi levado? — ela perguntou ao detetive Ruan.
— Apenas uma caixa. A que continha os registros bancários do empresário Arlindo Varela, o principal réu do processo em que a senhora está atuando.
Isadora engoliu em seco. Aquilo não era coincidência.
— Isso está ligado ao juiz Morelli? — Ruan perguntou.
Ela hesitou por um segundo, mas respondeu:
— Ainda não posso afirmar nada. Mas tenho motivos para crer que estamos apenas arranhando a superfície.
***
Enquanto isso, no alto do edifício onde funcionava o Fórum Federal, Dante Morelli revisava relatórios na penumbra do seu gabinete. O telefone vibrava em silêncio. Ele atendeu sem olhar o visor.
— Fale.
— Temos um problema. A promotora Valente está mais perto do que imaginávamos. — Era a voz de Enzo, sempre eficiente.
— Ela viu o dossiê?
— Ainda não. Mas descobriu o roubo no depósito.
Dante suspirou. O jogo avançava mais rápido do que esperava.
— E a doutora Sofia Almeida?
— Pediu para vê-lo. Disse que tem novas informações.
— Traga-a.
Minutos depois, Sofia entrou no gabinete com a elegância de sempre. Tinha um leve sorriso no rosto e um tablet nas mãos.
— Meritíssimo, lamento incomodar tão cedo, mas creio que o senhor vai querer ver isso.
Ela passou o dispositivo a ele. Nele havia imagens de câmeras de segurança que mostravam Enzo entrando no depósito horas antes do crime.
— Isso foi entregue anonimamente na minha caixa de mensagens. Se vazar, o senhor está acabado.
Dante olhou para ela por um longo instante. Sofia, com sua frieza impecável, não era apenas uma peça. Era uma ameaça.
— O que você quer?
— Que retire Isadora Valente do caso. Que a afaste, formalmente. Está se tornando perigosa demais.
— Ela é perigosa porque tem razão. — Dante cruzou os braços. — Mas isso a torna valiosa.
— Não para mim. — Sofia se levantou. — Pense bem, Dante. A linha entre a lealdade e a traição é mais tênue do que parece.
Quando ela saiu, Enzo reapareceu, o rosto carregado.
— Você sabe que ela está armando algo grande.
— Todos estão, Enzo. — Dante girou lentamente o anel no dedo. — Mas ninguém joga melhor que eu.
***
Do outro lado da cidade, Isadora caminhava apressada pelos corredores do Fórum. Ela estava decidida a confrontar Sofia. Sabia que a advogada não era apenas uma articuladora política — era um dos tentáculos do sistema que corrompia a justiça de dentro para fora.
Elas se encontraram na cafeteria do prédio, cercadas por olhares discretos.
— Doutora Almeida — Isadora começou com um sorriso gélido —, gostaria de conversar sobre a segurança do nosso sistema judicial.
Sofia sorriu de volta, elegante como uma víbora.
— Sempre um prazer falar de justiça, promotora. Principalmente com quem ainda acredita nela.
— O que você fez no depósito de provas?
Sofia não se abalou.
— Está me acusando, Valente?
— Estou sugerindo. E posso provar.
— Boa sorte com isso. — Sofia se levantou. — Mas se eu fosse você, tomaria cuidado. O juiz Morelli não é o único com conexões perigosas.
***
Mais tarde, naquela noite, Dante encontrou Isadora no estacionamento subterrâneo. Ela já o esperava, braços cruzados, postura firme.
— Você sabia do roubo? — ela disparou.
— Sabia que algo aconteceria. Mas não autorizei.
— Isso te absolve?
— Não. Mas me define.
— O que você quer de verdade, Dante?
Ele a olhou com seriedade.
— Paz. Mas para isso, às vezes, precisamos de guerra.
Isadora deu um passo à frente, o rosto a poucos centímetros do dele.
— Se está jogando comigo, Morelli, vai se arrepender.
— Não estou jogando, Isadora. Estou tentando protegê-la.
— De quem? De você mesmo?
O silêncio entre eles era denso, carregado de verdades não ditas.
— De todos os monstros que você ainda não conheceu. — ele murmurou.
Isadora recuou, ainda de olhos fixos nele.
— Eu não fujo de monstros. Eu os enfrento. Um por um.
E desapareceu nas sombras, deixando Dante mais sozinho do que nunca.
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